Folha de S. Paulo,
28 de
fevereiro de 1971
Dois pesos e duas medidas
O
conhecido hino "Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat" —
cântico majestoso, de glória e de triunfo, mil e mil vezes executado nas
igrejas do Brasil e de todo o mundo, para proclamar a realeza universal
do Redentor — era, até há pouco, a sinfonia usada nas emissões da Rádio
Vaticana.
Nada
mais adequado. Apesar disto, ou talvez por isto, a grandiosa aclamação
acaba de ser substituída pelos dirigentes da emissora, por outra mais "aggiornata",
em estilo "rock", e obediente à linha traçada na peça "Hair". É a canção
"Jesus Cristo superastro", de autoria dos ingleses Andrew Lloyd e Tim
Price.
Assim, Nosso Senhor Jesus Cristo, que é por todos os títulos Rei do
Universo e da Humanidade, e que, aliás, a si mesmo se proclamou Rei (S.
Lucas, XXIII, 3), passa de Soberano supremo para mero ator, um ator que
só se diferencia dos outros por ser maior do que eles. Um superator.
Admitido este novo título, quase se diria que a Vida, Paixão e Morte de
Nosso Senhor Jesus Cristo foi mero teatro. Um superteatro!
A
notícia, tão desconcertante que parece falsa, é, entretanto,
inteiramente digna de fé. Publicou-a a insuspeita revista "Ecclesia" de
Madri, em sua edição de 23 de janeiro último.
* * *
O
bispo d. Valdir Calheiros vem, de há muito, despertando inquietação na
opinião pública, em razão de suas atitudes face à agitação social.
Presentemente, está em curso um inquérito instaurado contra ele, como
suspeito de subversivo pelas autoridades militares de Barra Mansa.
Tal
inquérito está exposto, evidentemente, às incertezas inerentes a
qualquer investigação. Tanto poderá concluir pela inocência como pela
culpabilidade do prelado. Depende tudo dos fatos que se apurarem. E para
que a apuração seja imparcial e objetiva, é de se esperar que seja feita
segundo as melhores normas do direito, assegurada ao prelado indiciado
toda a liberdade de defesa. É o que os amigos de d. Valdir — e mesmo o
grande público — têm o direito de pedir, e até de exigir.
Parece-nos que foi muito além disto a carta enviada ao bispo de Volta
Redonda pelos diretores da CNBB, durante a recente reunião desse
organismo eclesiástico em Belo Horizonte. Pois naquela missiva, se
prejulgam os resultados do inquérito, e antes mesmo de conhecer os fatos
que este venha a apurar, os autores dela afirmam: "Não podemos aceitar a
acusação que lhe é assacada (a d. Valdir), de subversivo. Não
acreditamos que esteja v. excia. a serviço dos que pretendem a derrubada
do governo" etc.
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Por que afirmar, "a priori", a impossibilidade de d. Valdir Calheiros
ser subversivo? Por ser ele bispo? Em que tratado de Teologia se lê que
um bispo, pelo simples fato de ter recebido a plenitude do sacerdócio,
fica ao abrigo deste ou de outros pecados?
* * *
Que
um bispo possa apoiar a subversão, a coisa é aliás evidente. E daí a ser
subversivo, não é tão grande a distância.
O
padre Comblin, por exemplo, é um subversivo. O documento revolucionário
de que ele é autor, escandalizou o Brasil inteiro. Ora, que medida tomou
d. Helder para coarctar a pregação subversiva do pe. Comblin? Nenhuma,
absolutamente nenhuma. Pelo contrário, deu-lhe uma cátedra no Instituto
Teológico de Recife, e ali o mantém contra ventos e marés. O que é claro
sinal de apoio. O mesmo d. Helder — observe-se de passagem — a quem, com
desconcerto de todo o país, a direção da CNBB deu, por sua vez, uma
prestigiosa prova de confiança, incumbindo-o de ser o relator, para toda
a imprensa, rádio e televisão, dos resultados da reunião de Belo
Horizonte.
Alguém pode não gostar deste comentário. Refutá-lo, porém, não pode.
Pois os fatos em que ele se baseia são evidentes. E óbvias as
conseqüências que deles decorrem.
* * *
Tenho
a tal propósito mais uma reflexão a fazer.
Quando se tratou do processo dos padres dominicanos implicados no caso
Marighela e em outras atividades subversivas, o público se voltou
horrorizado para os bispos das circunscrições eclesiásticas em que eles
haviam atuado, aguardando dos prelados uma severa palavra de reprovação
para o escandaloso procedimento dos religiosos. À pergunta muda mas
aflita do público, os bispos responderam com a mais glacial serenidade:
por ora nada podemos dizer, pois só quando terminar o processo
competente, estarão devidamente provados — ou não — os fatos delituosos.
Então, e só então, nos pronunciaremos.
Por
que, indago, não vale a mesma regra para o caso de d. Valdir? Por que,
em se tratando do trêfego bispo de Volta Redonda, antes mesmo de ter
chegado ao termo o inquérito, os bispos já prejulgam a questão?
* * *
Dois
pesos e duas medidas... O brasileiro que observa os recentes
acontecimentos da Polônia é levado a pensar: "cá como lá, más fadas há".
Pois nada mais contraditório do que, de um lado, a atitude conciliatória
dos bispos poloneses para com o regime comunista imperante naquele país,
e, de outro lado, a atitude provocadora e façanhuda da esquerda católica
nos países não comunistas.
Vamos
aos fatos. Como é notório nos jornais, o regime comunista chegou, na
Polônia, a uma verdadeira catástrofe. A produção decai, a população
cresce, os preços sobem e os salários continuam imóveis.
Se
tal se desse em algum país livre, a esquerda católica promoveria
passeatas, instigaria greves e sopraria distúrbios. Se o governo
reagisse, não faltaria algum d. Helder para responsabilizar o regime e
as estruturas, em entrevistas vedetísticas.
Pelo
contrário, esmagadas as greves em Gdansk, Lodz etc., o que faz o
episcopado polonês? Não pediu mudança de regime nem reforma de
estrutura. Tentou aplacar os ânimos, tornando fácil a manutenção das
autoridades comunistas.
Assim, em documento lido em todas as igrejas da Polônia, e assinado pelo
cardeal Wyszynski, afirma o episcopado: "Queremos cooperar com todos os
filhos deste país, pois chegou o momento de repartir o pão da
reconciliação".
Nos
países comunistas, quando há fome, o problema se resolve com o "pão da
reconciliação". Nos países não comunistas, quando há fome, o problema se
resolve com subversão...
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Dois pesos e duas medidas, não é?
* * *
Mais,
nos países não comunistas, os Comblins pregam a desconfiança contra
todos os detentores do poder. Na Polônia, no mesmo documento, o
Episcopado inculca a esperança na equipe comunista que está no governo:
"novo clima surge na Polônia" com o atual governo, dizem os bispos, e
"aparece uma luz de esperança".
Estas
palavras são de meados deste mês. De lá para cá, só se ouviu falar de
fome, de novos descontentamentos, de ameaças de invasão russa etc.
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No
que fica então a "luz de esperança"?
Preferiram os bispos — pelo menos até agora — guardar a respeito um
prudente silêncio.
* * *
No
Brasil, apesar do excelente índice de desenvolvimento alcançado pelos
governos, os subversivos pedem a derrubada do regime, e a aplicação
imediata das tristemente famosas reformas de base.
Na
Polônia, o novo governo declarou oficialmente que não aumenta os
salários porque não há dinheiro para tal. E recomenda em lugar de maior
salário, mais trabalho.
Por
fim, a Rússia teve de mandar algum reforço financeiro para permitir uma
pequena alta dos salários e evitar uma insurreição geral. Mero
paliativo, pois a Polônia não pode viver perpetuamente de suprimentos
econômicos da Rússia.
Entretanto, não nos consta de uma só voz católica que se levante, nos
meios chegados ao Episcopado polonês, para reclamar a queda do regime
comunista. E nos países capitalistas, ainda que tudo esteja certo, o
regime é errado. Ou seja, ainda que os frutos do comunismo sejam maus, o
regime é bom. E nos países não comunistas, ainda que os frutos sejam
bons, o regime é mau.