Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

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14 de fevereiro de 1971

Farsa, salame e herói

De uma leitora anônima:

"A respeito do Chile, peço-lhe a gentileza de uma elucidação. — Allende é o propulsor da investida contra a propriedade privada, ou é um moderno, forçado por extremistas a um papel ao qual seu temperamento repugna. Vejo no comportamento dele sintomas que parecem justificar uma e outra hipótese. E daí sentir-me perplexa.

"Vamos aos fatos. No período de instalação de seu governo, até pelos próprios opositores foi Allende saudado como um moderno. Parecia ser a garantia contra uma radicalização total e rápida. Teve assim as simpatias, pelo menos relativas de toda espécie de empresários, fazendeiros, comerciantes e industriais. Dele esperavam que julgasse os terroristas do MIR, e evitasse as reformas violentas.

"Esta primeira imagem não tardou a se esvair. Ele anistiou terroristas do MIR, cruzou os braços diante das invasões de fazendas, e ‘ipso facto’ estimulou uma reforma agrária ilegal e violenta.

"Agora, Allende parece desejoso de recobrar sua primeira face. Se bem que acelere a desapropriação de fazendas com mais de 80 hectares, garante as outras contra as ocupações ilegais e a reforma confiscatória. Assim, sujeita a ritmo lento a execução do programa agrário dos socialistas e marxistas. E, ao mesmo tempo, se volta contra o novo secretário-geral do Partido Socialista, Carlos Altamirano, o qual discorda do que é ou parece ser a ‘moderação’ de Allende.

"Peço ao senhor que me explique quais as rivalidades individuais e os choques doutrinários que ocasionam tanta confusão, e qual, dentro desta confusão, a meta de Allende".

* * *

Tenho a impressão de que a missivista é professora, tal a clareza e a concatenação com que narra os fatos, e a precisão com que enuncia as perguntas.

Dito isto, passo a responder, retificando desde logo o pressuposto que, em sua pergunta, a simpática professora admite como líquido.

O Partido Socialista, ao qual pertencem Allende e Altamirano, é oficialmente marxista. Comunista, portanto.

Assim, os acontecimentos internos do Partido de Allende e Altamirano não devem ser julgados — como faz a missivista — segundo os critérios válidos para partidos liberais e burgueses, mas segundo os que são adequados a partidos totalitários. Um partido democrático é, internamente, uma miniatura de democracia liberal, e nele seus membros atuam com a elasticidade de movimentos inerente a esse regime. Os partidos totalitários soem ser, em sua vida interna, uma miniatura de Estado ditatorial, em que a razão dos acontecimentos deve ser procurada muito mais na decisão suprema de um ditador, do que no entrechoque das opiniões ou das ambições individuais.

Isto posto, a verdadeira pergunta não deve ser qual o papel de Allende, mero títere como são, em geral, os comunistas de ribalta. O que realmente importa indagar é se o comunismo tem algum proveito com os vaivéns de Allende, e qual seja esse proveito. Só mediante o esclarecimento deste problema se pode descobrir o sentido da atuação do presidente do Chile.

Passo, pois, a este ponto.

* * *

Em política — no Chile, como no Brasil, ou em qualquer outro país — não basta derrubar o adversário. Duas condições são indispensáveis para que seja efetiva uma vitória: a) que o vencido seja despojado de qualquer possibilidade de reação; b) que o vencedor não saia tão debilitado da luta, que lhe faltem meios de resolver os mil problemas inerentes ao exercício do poder.

Tendo ascendido ao cargo supremo, cabe a Allende, o presidente reformista, derrubar o empresariado rural, industrial e comercial. Fazê-lo a pau e fogo talvez fosse fácil. Mas disto resultariam descontentamentos profundos, ressentimentos insopitáveis, reações de desespero de alcance incalculável. E um óbvio enfraquecimento do governo.

Então, a verdadeira fórmula para obter sobre os empresários — e também sobre a clara maioria dos chilenos, que é anticomunista — uma vitória sólida, consiste em induzir os próprios descontentes a aceitar as reformas com resignação.

Como criar tal resignação? Uma pessoa só se resigna a um mal, quando se persuade da impossibilidade de o evitar, ou quando o prejuízo da aceitação é menor que o da reação. Por exemplo, um proprietário só não expulsa de casa um intruso, se reconhece não dispor de meios para isto, ou se receia sofrer, depois da expulsão, alguma vingança terrível.

Assim, convém a Allende incutir nos partidários da propriedade privada ambos os sentimentos: o da impotência para resistir, e o do medo de conseqüências piores, em caso de resistência — ainda que legal e pacífica.

A fim de chegar a este duplo resultado, é preciso, de um lado, incutir muito medo, no adversário, do que sucederá se cair Allende. Para isto servem Altamirano e o MIR. E é preciso, de outro lado, obter alguma simpatia do adversário, garantir-lhe que não se lhe tirará tudo, se aceitar de bom grado a derrota etc. Isto também não é difícil. Fá-lo a quinta coluna metida nos meios empresariais. O difícil, o impossível, é desempenhar ao mesmo tempo, os papéis de vencedor bicho-papão e de vencedor bonzinho.

Qual a saída? É desempenhar sucessivamente um e outro papel.

Assim, minha leitora vê quanto convém ao comunismo, que Allende tome alternativamente os papéis de bicho-papão onipotente, que pode quebrar tudo e todos com um decreto, e de bonzinho, que só quebra pela metade, e que faz uma força terrível contra os que o querem obrigar ao quebra-quebra total.

A pobre vítima, se não perceber o jogo, acabará por defender Allende contra os "quebradores" mais terríveis do que este (Altamirano e o MIR), e por lhe entregar resignadamente metade das penas, para conservar a outra metade.

Poderia estar mais claro o jogo de Allende?

* * *

Insistimos sobre os dois instrumentos necessários para que Allende ganhe esta partida.

Antes de tudo, comparsas sanhudos, com ares de estarem prontos para derrubar Allende e fazerem, num só lance, as reformas mais radicais. Esses comparsas são Altamirano e o MIR.

O outro instrumento é a "quinta-coluna" influente na classe vencida, que ajuda o jogo disseminando, de ouvido em ouvido, informações "reservadas", que apontam Allende como "bom praça", pesaroso de ser obrigado a perseguir os empresários, e disposto a ser brando nas reformas.

Não é difícil conseguir Altamiranos, "MIRs" e quintas colunas. A História de todos os tempos o prova.

Napoleão, por exemplo, quis impor aos adversários da Revolução que aceitassem o Estado igualitário gerado por esta. Para tanto, teve quem lhe fizesse o papel de Altamirano. Foi a corrente dos jacobinos (os terroristas do tempo). O corso a continha com pulso de ferro. Se ele caísse, o jacobinismo renasceria. Diante do horror desta perspectiva, a direita se resignava ao demagogo fardado. "Pari passu", seus agentes iam cochichando nos salões da nobreza que Napoleão a estimava, e só lhe impunha sacrifícios para não exacerbar os jacobinos. Assim, a direita se resignava a perder mais do que a metade de suas penas...

É claro que nem todo o mundo se deixa enrolar pela manobra. Alguns dentre os vencidos resistem à farsa.

Daí resulta mais uma preciosa vantagem do jogo: divide o adversário. "Divide e impera", ensinava Maquiavel. Os que se resignam sobrevivem um pouco. Os que não se resignam têm de enfrentar, isolados e enfraquecidos, dura e incerta luta.

Esta tática de dividir o adversário, para o devorar aos poucos — tão favorecida pela comédia que acabo de descrever — tem um nome. O líder vermelho Rakosi a levou, na Hungria, à maior perfeição. Ele a chamou de "tática do salame". Ninguém come de uma vez um salame inteiro. Cortando-o em pedaços, sim. É até agradável. Assim, os comunistas retalham e devoram seus adversários.

O líder comunista húngaro Matyas Rakosi, que designou a "tática do salame"

* * *

-- Qualquer resistência a esse processo é impossível? — Só a resistência moral, levada a cabo com prestígio e força, pode atrapalhar muita coisa. Disto é prova Mindszenty, o cardeal-herói.

Terá o Chile algum Mindszenty com ou sem batina? Esperemos. Pois sem heróis nenhum povo de hoje sobrevive...


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