Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 31 de janeiro de 1971

 

Churchill, o avestruz e a América do Sul

 

Caíram sobre o acordo de Munique todos os destroços, toda a fuligem e toda a poeira destas três últimas décadas, tão cheias de tragédias, de vibrações e de olvidos. Parece-me, entretanto, impossível desenvolver, neste artigo, o meu raciocínio, sem uma referência àquele fato histórico. Assim, relembrá-lo-ei de modo mais conciso.

Naquele já tão longínquo ano de 1938, a Europa estava politicamente dividida em três blocos de nações: 1) o eixo Roma-Berlim, nazi-fascista; 2) a França e a Inglaterra democráticas; 3) os neutros. Aparentemente fora do jogo, se situavam três grandes potências, que a tragédia, ao cabo de algum tempo, ia envolver a fundo, isto é, a Rússia semi-européia e semi-asiática, o Japão, no Extremo oriente, e, do outro lado, os Estados Unidos.

No plano internacional, havia, entre o bloco teuto-italiano e anglo-francês, uma radical oposição de desígnios e de interesses. A considerar essa oposição somente em seus aspectos europeus, a Alemanha nazista objetivava a incorporação dos territórios de língua alemã pertencentes à Tchecoslováquia ("Sudetenland") e à Polônia ("corredor" de Dantzig). O "Ruhrgebiet" e a Áustria já haviam sido anteriormente anexados. Uma vez fortalecido por todas estas conquistas, Hitler se consideraria em condições de destroçar a França e a Inglaterra, tornando-se assim senhor da Europa. Paralelamente, Mussolini visava uma expansão territorial que desse à Itália — a Roma ressurrecta — uma hegemonia inteira sobre toda a orla do antigo "Mare Nostrum" romano, isto é, o Mediterrâneo. Claro está que a França e a Inglaterra não aceitavam nem um, nem outro plano, e se empenhavam na manutenção do "statu quo".

A esta profunda causa de desacordo entre os que, segundo a linguagem hodierna, se chamariam os "quatro grandes" da Europa não comunista, se somavam outras. Duas delas vêm especialmente ao caso deste artigo.

A Alemanha e a Itália estavam sujeitas a regimes totalitários. A França e a Inglaterra eram democráticas. Esta diferença de regimes importava em outras dissonâncias na mentalidade, nas aspirações, no estilo de vida e de ação, opondo os povos e as equipes políticas de um bloco aos povos e equipes políticas de outro. Isto, obviamente, provocava incompreensões e antipatias de parte a parte, profundamente nocivas à causa da paz.

A esta causa de desavenças some-se outra, que dela deriva mais ou menos como um corolário: as falanges nazistas e fascistas estavam ébrias do patriotismo belicista. Para elas, o bem comum não consistia na tranqüilidade, na fartura e na despreocupação da vida quotidiana, porém na glória e no poder conquistados na euforia da agressão, da guerra e da morte heróica. Pelo contrário, as equipes dirigentes da Inglaterra e da França professavam um pacifismo tão cego e tão fanático quanto cego e fanático era o belicismo do outro lado. E importantes setores da opinião pública, em ambos os países, estavam absolutamente dominados por esse pacifismo "à outrance". Para eles, só o que contava eram os deleites da vida civil. A glória militar lhes dizia pouco. E a guerra se lhes afigurava o sumo mal.

É próprio ao belicismo fanático delirar e agredir. É próprio ao pacifismo fanático fechar os olhos, ceder, recuar.

Substancialmente, proveio deste conjunto de fatores o acordo de Munique. Hitler manifestara o propósito de invadir a região dos sudetos, em território tcheco. Mussolini o apoiava. Os "premiers" da Inglaterra e da França, Chamberlain e Daladier, se sentiam obrigados, por uma velha aliança, a apoiar a Tchecoslováquia ameaçada. A guerra parecia iminente. Hitler prometeu, então, não invadir as regiões "alemãs" da Polônia, desde que a França e a Inglaterra violassem a palavra empenhada à Tchecoslováquia e reconhecessem a anexação dos sudetos.

Neste lance, a diferença dos "delírios" era patente. Para os ditadores do eixo, a palavra dada não tinha importância. Romper-se-ia a qualquer momento, para a realização dos fins gloriosos (!) da expansão imperialista. O fim embriagava e levava à justificação dos meios. Para os "delirantes" pacifistas, era a hora de meter a cabeça na areia, de crer na palavra de Hitler, de fechar os olhos ao que havia de vergonhoso no abandono da Tchecoslováquia, de reconhecer a anexação dos sudetos, e de imaginar, totalmente, que a imolação desta vítima saciaria definitivamente a sede de conquistas do frenético ditador alemão. Assinou-se, assim, o acordo de Munique.

Hitler e Mussolini saíram triunfantes das negociações.

Da esquerda para direita: Chamberlain, Daladier, Hitler, Mussolini e Ciano
após a assinatura do Acordo de Munique
 

Chamberlain e Daladier voltaram aos respectivos países com o bom nome nacional enxovalhado, mas julgando que tinham salvo a paz. À sua chegada, foram ovacionados por multidões imensas, que lhes agradeciam esse tão grande "benefício".

De seu canto, o velho Churchill — pois ele já transpusera o limiar da velhice quando começou a grande odisséia de sua vida — apostrofou Chamberlain e seus entusiastas com estas palavras definitivas: "Tínheis a escolher entre a vergonha e a guerra; escolhestes a vergonha e tereis a guerra".

 

Meses depois de Munique, a Alemanha invadia a Polônia. A guerra começava...

* * *

Estendi-me tanto sobre estes fatos históricos porque Munique não foi apenas um grande episódio da História deste século. É um acontecimento-símbolo na História de todos os tempos. Sempre que haja, em qualquer tempo e em qualquer lugar, um confronto diplomático entre belicistas delirantes e pacifistas delirantes, a vantagem ficará com os primeiros e a frustração com os segundos. E se houver um homem lúcido a considerar o confronto e a frustração, censurará os Chamberlains e os Daladiers do futuro com as palavras de Churchill: "Tínheis a escolher entre a vergonha e a guerra: escolhestes a vergonha e tereis a guerra".

* * *

Pois afirmo que a América do Sul de 1971 está em situação análoga à da Europa de 1938. Acha-se a caminho de uma explosão que a poderá sacudir inteira, da Colômbia ou Venezuela até o Uruguai ou a Patagônia, percorrendo evidentemente, de Norte a Sul, o Brasil. E nesse caldeirão em crescente ebulição, há governos e correntes de opinião que deliram de febre belicista, como também correntes de opinião e governos que deliram de febre pacifista.

Também na América do Sul de nossos dias, o belicismo delirante é representado claramente por dois governos dominados por uma seita político-filosófica disposta a tudo. Falo dos governos cubano e chileno. E refiro-me a Cuba como se fosse sul-americana pela importância da ação subversiva que promove em todo o Continente. Estou insuficientemente informado sobre o governo da Bolívia, mas observadores políticos há que a incluiriam neste rol. Em matéria de correntes de opinião, o belicismo delirante conta, é óbvio, com os PCs de todo tipo, os tupamaros uruguaios e não uruguaios etc.

É claro que, escrevendo a respeito do ano de 1971, não emprego o termo "belicismo" no sentido exato que ele tinha no cenário político de 1938.

Assim, o objetivo dos atuais belicistas delirantes da América Latina não é uma guerra do Chile e Cuba contra o Brasil ou qualquer outro país. Tal eventualidade me parece muito improvável, pelo menos a breve prazo. Mas em 1971, não só com guerras que se conquistam nações. Se amanhã, por exemplo — e Deus disto nos guarde — o Uruguai se tornar comunista, será "ipso facto" colônia da Rússia ou da China. E isto sem que qualquer destes países tenha mandado a nosso continente um só soldado. O Uruguai terá caído como caiu o Chile: por uma sinistra coalizão com os comunistas, de clérigos esquerdistas, burgueses "sapos", pedecistas, socialistas, progressistas e militares da linha mole. É assim — repito — com apoios deste tipo, que hoje se conquista uma nação. O belicismo pode, hoje, alcançar muitos de seus fins pelo exercício dessa complicada forma de conquista.

Assim, comparados os belicistas sul-americanos de 1971 a seus congêneres europeus de 1938, passo a examinar as analogias e as dessemelhanças entre os de nosso Continente, em nossos dias, com os da Europa de há 33 anos.

O que é esse neopacifista avestruz de 1971? É o que fecha os olhos para o perigo interno, como o de 1938 os fechava para o perigo externo.

O avestruz de hoje é um indivíduo que só pensa em progresso econômico. Para ele, o desenvolvimento resolve tudo.

E por isto acha que o comunismo — pelo menos no Brasil, cujo desenvolvimento material é realmente notável — não terá possibilidade de vencer. Assim, a fórmula do avestruz consiste em pleitear para os comunistas, se não toda, pelo menos boa parcela de liberdade, desde que não façam muito barulho. Em recomendar que se concedam aos vermelhos bons cargos públicos e privados. Desde que não façam propaganda estrepitosa de sua seita. O avestruz de hoje pensa aplacar os comunistas pondo-lhes em mãos estes meios de ação, como Chamberlain e Daladier pensavam aplacar Hitler, deixando-o assenhorear-se de novas províncias que lhe aumentavam o poder. Uns e outros, os de 38 e os de 71, confiam na tática de aplacar onças dando-lhes sangue a beber...

Há, hoje avestruzes que vão mais longe. Sonham com aplacar o comunismo apoiando parte das reformas... que os comunistas julgam marcos necessários para a escalada do poder. Repito: é precisamente como sossegar uma onça dando-lhe sangue para beber...

Claro está — diga-se de passagem — que o avestruz detesta a TFP. Por que? Porque os comunistas a detestam. E é preciso reduzir ao silêncio e à inação tudo que desagrade o comunismo.

Como, então, espera o neo-avestruz eliminar o comunismo, se lhe dá alimento tão estimulante para cevar-se? — Tirando-lhe o ar. Na prosperidade, o comunismo, por mais bem cevado que seja, morreria por falta de clima próprio. E assim, cedendo e recuando, comodamente, cobrindo-se displicentemente de vergonha, e enchendo, entrementes, agradavelmente os bolsos, vai o avestruz vivendo. E enquanto põe sua esperança na profilaxia anticomunista da riqueza, o avestruz não vê, não quer ver, a seu lado, o pulular de clérigos e burgueses perfeitamente bem cevados, e biliosamente comunistas, que vão abrindo o caminho — conscientemente ou não — ao adversário. Isto não espanta o avestruz. É natural. Avestruz é avestruz.

Sim. E onça é onça. Quando a onça comunista se tiver cevado à vontade comendo a carne e os ossos da sociedade atual, comerá o avestruz!

Enquanto isto não se der, o avestruz continuará com a cabeça metida na areia. Sem olhar a trama que de Moscou e Pequim, passando por Havana e Santiago, se urde no país e fora dele. Levando sua vidinha, e recitando o seu credo: "Creio num só Deus, o dinheiro onipotente, criador da fartura e da tranqüilidade" etc.

* * *

Foram milhões de avestruzes destes que, por sua imprevidência, recusaram ver o perigo no Chile, cruzaram os braços, desalentaram as resistências contra a coalizão clérigo-"sapo"-comunista, e propiciaram assim a catástrofe que, sem eles, teria sido impossível.

São os avestruzes do Brasil e de alhures, por toda a América Latina, que criam o verdadeiro perigo.

Não fossem eles, o comunismo, com sua periferia de esquerdistas de sacristia ou salão, seria um pigmeu em nosso Continente. E Allende jamais teria um pigmeu em obscuro senador extremista.

Se se deixar o campo livre aos avestruzes, não haja dúvidas. Chegaremos, cedo ou tarde, a alguma Munique sul-americana. Escolheremos a vergonha para fugir da luta. E depois cairemos num pandemônio.

* * *

O que fazer, então? — O contrário do que faz o avestruz. Criar um estado de continua alerta contra o avestruzismo e seus perigos. Pregar a lucidez, a previdência, a luta ideológica, onde o avestruz pratica a política dos olhos fechados, da despreocupação tonta, da inércia ideológica frívola e das concessões imprudentes.

Repito. O grande perigo do momento não é o comunismo, nem o esquerdismo em si. É o "avestruzismo".


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