Folha de S. Paulo,
24 de
janeiro de 1971
O tribunalzinho
O
leitor que deseje medir, com toda a precisão, o alcance da matéria de
que tratarei em seguida, deve — por um momento — desviar sua atenção de
todos os assuntos de ordem geral e fixá-la no pequeno mundo concreto no
qual transcorre sua vida quotidiana. Pense num bloco de 200 pessoas,
formado pelos que residem em sua casa e nas cercanias. Em uma grande
cidade, um grupo como este se distribui, não raras vezes, em um
quarteirão ou pouco mais. Nos bairros lotados com edifícios de
apartamentos, 200 habitantes se espraia, naturalmente em área algum
tanto maior.
Imagine o leitor que cada uma dessas áreas — maiores ou menores — seja
transformada em uma republiqueta de fronteiras definidas e regidas por
autoridades próprias. E que essas autoridades tenham por missão intervir
ativamente na vida de todo o mundo, e decidir as questiúnculas da vida
de todos os dias.
Exemplifico. Há alguma briguinha entre famílias? O assunto pode ser
levado para o tribunal da "republiqueta", a fim de se decidir a quem
assiste a razão e punir o culpado. Aparece algum problema de águas entre
vizinhos? Mais uma vez recorre-se ao tribunalete da "republiqueta", para
averiguar quem tem razão e infligir penas ao responsável. Um menino faz
na rua um barulho, que é — ou algum morador supersensível reputa —
excessivo. Entra novamente em função o tribunalzinho, a ver quem tem
razão, e, conforme o caso, a castigar o menino e seus pais. Alguém é
suspeito de haver bebido demais? Tribunalzinho nele. Sussurra-se na
vizinhança que o pai ou a mãe abandonou o lar? O tribunalzinho intervém
logo para investigar o fato, apurar de quem é a culpa, punir o faltoso e
dar melhor destino às crianças. Enfim, por qualquer boato, qualquer
rusga, ou qualquer nuga, o tribunalzinho lá está, pronto a agir.
Quais
as penas aplicáveis a quem tenha cometido algum destes crimes, por
exemplo, deixar escorrer água no quintal do vizinho? Oh, em geral, penas
pequenas. Uma multa proporcional à renda do criminoso. Ou pequenos
trabalhos forçados, mais humilhantes do que fatigantes. Por exemplo,
varrer as ruas durante três domingos consecutivos. Ou arranjar os
jardins públicos. Ou atuar como guarda noturno. O suficiente para
aborrecer o réu, cansá-lo, e tornar patente aos conhecidos — surpresos
de o verem repentinamente transformado em varredor de rua, jardineiro ou
guarda noturno — que ele foi posto de castigo pelo tribunalzinho.
Naturalmente, o tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça está
longe. Por isto, nem todas as penas aplicadas pelos ditos tribunaizinhos
serão tão brandas. Nos dias em que os componentes desses microorganismos
judiciários estiverem mais mofinos, poderão também mandar o réu para
alguma colônia agrícola, e executar trabalhos rurais pesados. Porém,
provavelmente, nem todas as penas serão assim...
* * *
Claro
está que um tribunal, ainda que seja um mero tribunalzinho, necessita de
um cartório. Tribunal e cartório não vão sem funcionários. E tudo isto
precisa de locais de trabalho.
Assim, em cada distrito de 200 habitantes haverá que reservar algumas
salas para esses corpúsculos judiciários. E será prudente o cidadão que
passe todos os dias por esse local, a ver se há alguma queixa, fundada
ou não, contra ele. Se não houver, graças a Deus! Se houver, o acusado
já poderá ir contratando advogado, coletando provas etc. Quem sabe se
assim e apenas com os gastos para o rábula e o processo, consegue passar
seu domingo em casa, sem varrer ruas.
* * *
Como
constituir esses tribunais? De modo perfeitamente democrático. Abaixo os
austeros juizes diplomados em Direito, que formam uma oligarquia de
privilegiados. Cada tribunal deve ter três membros, dois dos quais
eletivos. Sim. Eleitos pelo bom povinho dentre as fileiras do mesmo bom
povinho. Em outros termos, a escolha estaria a cargo de comitês
populares, de sindicatos, de colonos nas fazendas etc. Só o presidente
seria bacharel. E nomeado pelo governo.
Assim, as coisas se simplificariam. Era só cultivar assiduamente as boas
graças dos juizes e dos que os escolhem, para se conseguir uma vida
tranqüila.
Num
prédio de apartamentos, por exemplo, seria inteiramente normal que o
zelador fosse eleito juiz da republiqueta de 200 cidadãos. Seria então
suficiente que os moradores tivessem a cautela de não aborrecer em nada
esse influente cidadão, sua esposa e seus filhinhos, para já contarem
com uma voz no tribunal.
Em
suma, tudo se arranja facilmente.
* * *
Agora
pergunto ao leitor: gostaria o senhor de morar em uma republiqueta
assim? Se nela morasse, o que sentiria? Bem-estar, segurança,
tranqüilidade e desafogo?
Eu,
por mim, sentiria precisamente o contrário. Ou seja, a sensação de ter
sido transformado, da noite para o dia, em uma criança de 10 anos,
internada em algum instituto correcional.
* * *
Mas
perguntará o leitor, a que conduz toda essa lorota? Para que imaginar
tudo isto?
A
resposta é simples. Este é o regime que vai ser instaurado no Chile. O
país será assim transformado num imenso conglomerado de republiquetas
bastante pequenas cada uma para que todo cidadão seja vigiado em seus
mínimos gestos e perseguidos por uma saraivada de humilhações e
picuinhas caso desagrade ao PC.
Digo
que este é o futuro do Chile, baseando-me não em boatos mais ou menos
vagos, mas em entrevista dada ao maior diário chileno "El Mercurio",
pelo subsecretário da Justiça do governo Allende, José A. Vieira Gallo.
Bem como de uma entrevista do ministro da Justiça do Chile, Lisando
Cruz, publicada em "La Prensa" de Buenos Aires. O jurista Oscar Alvarez,
que assessorava o ministro, explicou que "os novos tribunais se
inteirarão das denúncias formuladas pelos vizinhos, e como exemplo citou
problemas de águas, meninos que provocam distúrbios nas ruas, rixas
familiares, embriaguez, pais que abandonam seus lares etc. No que diz
respeito às penas, esclareceu que flutuarão desde uma admoestação até
"trabalhos forçados", como varrer ruas três domingos seguidos, arranjar
jardins públicos ou cumprir turnos de vigilância noturna. Além disso,
serão aplicadas pequenas multas, que terão "relação direta com os
rendimentos do culpado" ("La Prensa", 8-1-71).
"La
Nación", também da capital portenha, transcrevendo a entrevista,
acrescenta um pequeno detalhe: a penalidade imposta pelos tribunaletes
poderá ser uma repreensão pública (um pito, portanto, quando não
cadeia). Que tal, leitor? O que prefere? Pito em público? Cadeia?
* * *
Tudo
isto seria tragicômico, se não fosse perfeitamente trágico. Pois —
insisto — o sistema será aplicado em regime comunista, por juizes
comunistas, e dará assim ao PC meios para intervir, a todo o momento,
nos lares de todos, na vida privada de todos, e arrasar com qualquer
cidadão que não se declare comunista entusiasmado... Porque nada mais
fácil do que levantar uma onda de cochichos incessantes contra um
cidadão, a partir dos cochichos abrir contra ele vários processos, e
enredá-lo assim numa perseguição judicial sem saída.
* * *
Já
ouço o coaxar do "sapo", empresário rico e esquerdista bilioso, a me
objetar: o que temos nós, brasileiros, com o Chile?
Nada,
senão essa "pequena" coisa: a solidariedade cristã. — Porém, não dou
esta resposta ao "sapo". Ele não a entende.
Assim, respondo em outros termos. Os adeptos desses tribunais populares
enxameiam no Brasil, e atuam por impô-los aqui. São essa legião de
esquerdistas católicos, que dia e noite tramam a derrubada da autoridade
na Igreja, no Estado e na sociedade, sob pretexto de emancipação humana,
luta contra o paternalismo etc. Eles desejam o regime infamante desses
tribunaletes, que reduzem todo homem à condição de um menor de idade,
maltratado e perseguido.
* * *
Vejo
o "sapo" encolerizar-se, enrubescer, e me perguntar com olhar chispeante:
— Mas desejam mesmo?
—
Sim. É esta uma das reivindicações do famoso manifesto Comblin: a
abolição dos tribunais regulares e sua substituição por tribunais
populares.
E,
como se sabe, uma poderosa corrente apoia o padre Comblin. — Pois de
outro modo não se explica a perfeita, invariável e enigmática
incolumidade de que goza.
* * *
Então, "sapo", eu lhe pergunto: o problema é só chileno?
E a
vós, esquerdistas católicos fanáticos do anti-"paternalismo", eu vos
convido a me responder: não é delirantemente "paternalista" este projeto
de Allende?
Onde, então, o vosso protesto contra ele?