Folha de S. Paulo,
17 de
janeiro de 1971
Sobre
um D. Helder argentino
Apresento, hoje, ao público, uma carta do jovem advogado e escritor
Cosme Beccar Varela Filho, presidente do conselho Nacional da Sociedade
Argentina de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. Algumas palavras
a respeito do brilhante líder da TFP argentina permitirão ao leitor
aquilatar melhor o alcance da missiva.
Cosme
Beccar Varela Filho — Cosmin, para a vasta roda dos que o conhecem e
admiram — exerce a profissão de advogado num dos maiores escritórios da
capital platina, o “Estudio Beccar Varela”, fundado por seu avô.
Desde
cedo, Cosmin iniciou sua vida pública nos meios nacionalistas portenhos,
tendo fundado, com um valoroso grupo de amigos, a revista “Cruzada”, de
inspiração marcadamente católica e tradicionalista. O nacionalismo
argentino não satisfez a esse pugilo de jovens, que se destacou então
dele, constituindo, no ano de 1967, a TFP argentina. E “Cruzada” passou
a se intitular “Tradición, Familia, Propiedad”. Vem daí o florescimento
da TFP no país irmão, pela sua expansão não só em Buenos Aires, como em
diversas outras cidades.
Ao
longo dessa luta, que comportou campanhas memoráveis de âmbito nacional,
Cosmin se revelou jornalista de têmpera e conferencista notável. Em seu
recente livro “El Nacionalismo, una incógnita en constante evolución” (Ediciones
Tradición, Familia, Propiedad, Buenos Aires, 1970, escrito em cooperação
com uma valente equipe de investigadores e eruditos) Cosme Beccar Varela
Filho se revelou um escritor límpido e atraente, um robusto homem de
pensamento, um argumentador com lógica de ferro e um batalhador à altura
das melhores tradições de pugnacidade do sangue castelhano que lhe ferve
nas veias.
*
* *
De
Cosme Beccar Varela Filho recebi a seguinte carta, valiosa pelas
importantes informações que contém:
“Passando minhas férias nesta laboriosa São Paulo, a qual tanto quero,
fui surpreendido pela leitura de uma nota publicada no jornal “O Estado
de S. Paulo” do dia 8 do corrente, sob o título “Está dividida a Igreja
argentina”. Em tal nota se mencionam algumas opiniões do bispo de La
Rioja, Argentina, Mons. Enrique Angelelli, sobre a sociedade Argentina
de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, cujo Conselho Nacional
tenho a honra de presidir. Penalizou-me ver como o inteligente público
paulista está sendo inexatamente informado a esse respeito, e por isso
resolvi escrever-lhe esta carta, pedindo a V. Sa. lhe dê publicidade,
caso julgue oportuno e conveniente.
“A
parte verdadeira da notícia é que a Igreja argentina está dividida. Como
católico, sou obrigado — com tristeza imensa — a reconhecê-lo. É fato
notório que existe, nos meios católicos de meu país, um movimento
chamado “progressista”, profético, igualitário e pró-comunista, que
procura, com fraudes, violência, e até com medidas de um certo
autoritarismo totalitário — evidenciado quando algum de seus membros
consegue apoderar-se de um cargo hierárquico — impor uma “Igreja-Nova”,
sobre as ruínas das instituições, leis, doutrinas e costumes da Igreja
verdadeira, a Igreja de sempre, a qual denominam, depreciativamente, de
“constantiniana”.
“A
Igreja é universal, e todos os problemas que a afligem, em qualquer
parte do mundo, não são alheios à preocupação de nenhum católico. A esse
título, atrevo-me a dizer que o publico brasileiro tem um exemplo
notório do que seja esta corrente, chamada “progressista”, no
vedetístico d. Helder Câmara.
“Na
Argentina, um dos Helder Câmara que temos o infortúnio de possuir é
Mons. Enrique Angelelli, bispo de La Rioja. Diga-se isto para situar o
personagem.
“La
Rioja é uma das províncias mais tradicionais do Norte argentino, o qual
por sua vez é a região mais tradicional do país. Nela pregou aos índio
São Francisco Solano, santo missionário da época da colonização, que
suavizava a barbárie de seus catecúmenos tocando melodiosamente seu
violino...
“Todos os anos, se realiza em La Rioja uma tradicional procissão em
honra do patrono da cidade, São Nicolau , bispo de Bari. Há um momento,
na celebração, em que a imagem do Santo, carregada piedosamente por
homens do povo, se encontra nas ruas com outra procissão, que vem
trazendo uma imagem do Menino Jesus vestido de alcaide, título que lhe é
reconhecido tradicionalmente pela devoção da população de La Rioja. Ao
se dar esse encontro, os portadores da imagem de São Nicolau fazem com
que esta se incline em sinal de submissão a Quem é o Soberano do Céu e
da Terra. Esses fatos — e outros haveria para mencionar — dão a V. Sa.
uma idéia do ambiente tradicionalmente religioso de La Rioja.
“Pois
é nessa província que se situa a diocese de Mons. Angelelli! Pode-se
imaginar a insatisfação que a atuação desse prelado está produzindo na
população.
“Uma
caravana da Sociedade Argentina de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade, composta por sócios e militantes de três províncias, bem
como de Buenos Aires, esteve em La Rioja difundindo um livro que acaba
de ser publicado pela Comissão de Estudos da TFP, intitulado “El
nacionalismo, una incognita en constante evolución”. Esse livro se
destina a denunciar a nocividade do movimento cultural e político
argentino chamado “nacionalismo”, que não é senão um fascismo
tresnoitado, pronto a servir de instrumento à onda socialista que ameaça
lançar-se sobre meu país, como aliás sobre toda a América Latina. Junto
com esse livro, vendiam-se exemplares do número de junho-julho de 1969
do jornal “Tradición, Familia, Propiedad”, contendo os artigos das
revistas “Approaches”, de Londres e “Ecclesia” de Madrid,
respectivamente sobre o IDOC e os “grupos proféticos”.
“O
entusiasmo do povo de La Rioja por essa campanha foi notável. Basta
dizer que os propagandistas da TFP recebiam almoço, jantar e até
alojamento nas residências de famílias das 23 cidades ou povoados da
província — e inclusive da própria capital de La Rioja — que visitaram
durante os 45 dias que durou sua permanência lá. Os sócios e militantes
da TFP festejaram o Natal com um jantar abundante, todo ele provido
espontaneamente pelas famílias riojanas, as quais levaram esses
presentes à casa em que se alojavam nossos propagandistas.
“Quem
lhe escreve a presente teve a alegria de participar dessa campanha
pronunciando uma conferência em La Rioja, à qual assistiu um público que
superlotou o salão nobre do Museu Provincial, com capacidade para 300
pessoas sendo ainda numerosas as que, não conseguindo lugar no salão, a
ouviram de fora. Segundo os encarregados da guarda do salão, no qual se
realizam praticamente todas as conferências dessa cidade, nunca se havia
visto ali uma assistência tão numerosa.
“Entre os assistentes se encontravam três agitadores esquerdistas e uns
15 comparsas. Tentaram eles produzir um escândalo, mas o próprio público
os fez calar. Retiraram-se dando vivas ao bispo Angelelli e a Perón, e
gritando morras à oligarquia.
“Cabe
aqui dizer que a conferência foi apenas uma exposição doutrinária sobre
o artigo de ‘Ecclesia’, sobre os sacerdotes do Terceiro Mundo — grupo
que se declarou oficialmente partidário de um ‘socialismo
latino-americano’, e que mal tenta velar sua acentuada inclinação à ação
violenta — e sobre o nacionalismo argentino. A exposição tornava claro
como todo esse conjunto de atividades representa um grave perigo para a
Argentina, muito especialmente no momento em que os 4 mil km de nossa
fronteira com o Chile ficaram permeáveis à penetração comunista, e em
que a Bolívia não oferece garantias de ter um política anticomunista,
até bem pelo contrário.
“Mons. Angelelli não foi mencionado em momento nenhum. Tampouco se
acusou os sacerdotes do Terceiro Mundo de serem comunistas. Não nos
consta que não o sejam. Entretanto, não dissemos a respeito de uns e
outros o que informa a notícia de ‘O Estado de S. Paulo’.
“Foi
Mons. Angelelli que tomou a iniciativa do ataque, assumindo posição
contra a caravana da TFP no próprio dia em que ela entrava em La Rioja.
O bispo emitiu, na ocasião, um comunicado no qual dizia que a TFP não
falava oficialmente em nome da Igreja. Essa afirmação continha uma
insinuação absurda e malévola, pois nunca a TFP havia pretendido tal
coisa. A insinuação era útil, entretanto, para o fim de desprestigiar a
TFP, dando a entender — falsamente — que esta não é fiel à doutrina
católica.
“Apesar de tal comunicado, o apoio do povo riojano à TFP foi quase
total. A TFP apresentou ao bispo, de público, uma defesa cortês, mas
firme, e aproximadamente 700 riojanos, em 10 dias, aderiram com suas
assinaturas ao nosso comunicado. O bispo Angelelli, com todo o seu
poder, não teve outro apoio senão do diário esquerdista local, de dois
elementos nacionalistas, e de uma associação sem membros — pois só
assinaram duas pessoas, as quais, segundo se diz eram seus únicos
componentes e jogavam com o nome da entidade.
“Tudo
isto me pareceu necessário levar ao conhecimento de V. Sa. por respeito
ao público da capital paulista tão mal informado sobre o assunto pela
notícia de ‘O Estado de S. Paulo’. E há mais. Pois a própria notícia
transcreve, entre aspas, dois supostos parágrafos do discurso de Mons.
Angelelli, que estão inexatamente transcritos.
“Primeiramente, diz o ‘Estado’, que o bispo denunciou publicamente o
governo ‘por tolerar as atividades da organização ultradireitista
denominada ‘Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade —
TFP’.
“Segue, junto a esta a versão integral do discurso de Mons. Angelelli,
publicada no diário ‘La Unión’, de Catamarca, de 3 do corrente. V. Sa.
verá que essa frase não existe. O que, sim, existe, é uma confissão de
Mons. Angelelli de haver pedido uma intervenção da força do Estado
contra a TFP, e também a ameaça de ‘recorrer ao exercício de um doloroso
dever pastoral na aplicação de penas canônicas’ (sic). As penas
canônicas sabiamente estabelecidas pela Igreja, não podem ser aplicadas
sem justa causa, a menos que a autoridade exorbite de suas funções. Tal
é o caso de que nos ocupamos. As duas atitudes do bispo são reveladoras
de uma disposição despótica e violenta contra a TFP. O governo,
naturalmente, não o ouviu.
“Mais adiante, acrescenta o ‘Estado’ que o bispo lamentou fossem
perseguidos como criminosos os que reagiram contra ‘a agressão e
provocação dessa Sociedade que usa o nome cristão para encobrir seus
objetivos escusos’.
“Também não figura essa frase no texto do discurso. Aparece, isso sim,
uma defesa dos que ‘reagiram’ contra a TFP . Cabe explicar que essa
‘reação’ consistiu em pôr, certa noite, uma bomba — que não explodiu —
sob a ‘perua’ da TFP, e, logo depois, uma segunda bomba incendiária que,
esta sim, explodiu, danificando seriamente o veículo usado pela
caravana. E acrescenta Mons. Angelelli que a se continuar perseguindo os
‘reaccionadores’ — para não os chamar de ‘reacionários’ — ‘depois
lamentar-nos-emos pelo fato de um povo, cansado de não ser ouvido,
recorrer à violência!’ (sic).
“O
curioso é que o discurso do bispo tem como ‘lema’ as seguintes palavras,
com as quais termina: ‘Todo homem é meu irmão’. Seria preciso talvez
acrescentar: ‘menos os da TFP, e os que com esta simpatizam’...
“Em
todo caso, o progressismo e o fascismo nacionalista encontraram em Mons.
Angelelli um bom servidor já que a necessidade da TFP de se defender de
seus ataques — pessoais ou através de seu clero e outros íntimos —
desviou um tanto a tônica principal da campanha. Para não falar do
proveito que a atitude do bispo representa para o comunismo, que é o
único a sair ganhando com as campanhas de desprestigio intentadas contra
a TFP. Esta, aliás, apesar de tudo — digo-o para consolo e alegria dos
bons — continua crescendo na Argentina.
“Com
todo o meu afeto e estima, despeço-me rogando que faça chegar minhas
saudações à heróica e benquista TFP brasileira, cujo Conselho Nacional
tão dignamente V. Sa. preside”.