Folha de S. Paulo,
3 de janeiro de
1971
"Taquinerie"
O
tema se impõe. Não há como fugir dele. É preciso dizer alguma coisa —
qualquer coisa — sobre a passagem do ano. E como o assunto é dos mais
batidos, resolvi tratá-lo apenas de raspão.
Realmente, meu tema essencial bem pode ser o leitor que correr os olhos
por estas linhas. Deixarei em plano secundário a passagem do ano.
O
processo é excelente, se não para escrever um bom artigo, pelo menos
para atrair sua atenção, meu caro leitor.
Explico-me. Certo escritor francês costumava afirmar que encontrara o
meio de graduar a duração das visitas que lhe faziam. "Se quero reter o
visitante, dizia, eu lhe falo sobre ele; se o quero fazer sair, falo-lhe
sobre mim".
Aplicado o processo à imprensa, espero que escrevendo sobre o próprio
leitor, eu o atraia. Tanto mais quanto este é um tema-surpresa.
Imaginava o leitor ontem ao deitar-se, que pela manhã leria um artigo
sobre ele mesmo na "Folha"?
Para
escrever sobre o leitor sem fugir do tema obrigatório — a passagem do
ano — enuncio da seguinte maneira o meu assunto: "o leitor e a passagem
do ano". É uma solução simples e cômoda. Sobretudo para o leitor. Porque
ler é bem mais simples e cômodo do que escrever. Isto por mil razões. A
mais palpável delas talvez seja a de que o leitor pode parar o artigo
pelo meio, e jogar de lado o jornal. Enquanto o articulista, custe o que
custar, tem de levar seu artigo até o fim. Senão o jornal não o publica.
Pelo menos este é o costume.
Mas
eis que estou tomando o caminho errado: começo a falar de mim.
Rapidamente entro no rumo certo.
Leitor, leitora, falemos não de mim, mas do senhor, da senhora. Este,
sim, é o assunto essencial. O assunto palpitante que ao senhor ou à
senhora tão facilmente prende a atenção.
Essa
"entrée en matière" não lhe causou certa estranheza? Examine-se. Creio
que até várias.
Se o
senhor ou a senhora não as explicitou, ofereço-lhe meu auxílio na faina.
Em
primeiro lugar, essa generalização. É bem verdade, dirá quem me ler, que
a grande maioria dos homens gosta mais de se pôr no centro da conversa,
do que de ali deixar os outros. Mas a generalização que acabo de fazer
não será excessiva? Não haverá exceções?
A
este respeito, não brigaremos. Concedo, desde já, que há exceções. São
as honrosas exceções que convém ressalvar sempre que se faz um pouco de
"humour". E para que a paz entre nós seja perfeita, acrescento que o
senhor, meu leitor, a senhora minha leitora, sim, precisamente o senhor
ou a senhora que neste instante me lê constitui uma dessas honrosas
exceções. Não está tudo arranjado?
Sim,
responderá alguém, este ponto ficou perfeitamente esclarecido. Vejo que
o articulista é um homem cortês e objetivo. Principalmente objetivo.
Porém senti outra estranheza. É o emprego da expressão francesa "entrée
en matière". O Dr. Plinio tem destas (oh, e se fossem só estas!). Ele
não se dá conta de que é antiquado usar expressões francesas desse
gênero, quando hoje o monopólio em circunstâncias destas pertence ao
inglês.
É
verdade. Mas o que querem? Eu, que passo em certos círculos — dos
progressistas, da "saparia", dos demo-cristãos etc. — por um homem
autoritário, eu acho o cúmulo do autoritarismo proibir, de um lado,
alguém escolher expressões em uma língua célebre, clara, elegante, cheia
de matizes e espirituosa, e constituir, de outro lado, um monopólio
absoluto para outra língua. Ainda que esta última seja a de Shakespeare.
O mínimo que posso dizer, a este respeito, é que aprecio a variedade.
Talvez essa minha obstinação em não obedecer ao monopólio imposto pela
moda cause surpresa. Neste caso, permita o leitor ou a leitora que eu
lhe cochiche no ouvido uma pergunta. Oh sim, cochichada bem baixinha,
para não atrair sobre mim as mil censuras dos incondicionais da moda, de
todas as modas: quem é autoritário, no caso, eu, que me reservo uma
legítima e inofensiva liberdade, ou a moda que me quer pôr em algemas?
—
Sim, sim, vá lá. Mudemos de assunto, dirão muitos leitores ou leitoras.
Mas há outra objeção, acrescentarão. Implicou-nos o trato cerimonioso de
"senhor" ou "senhora". Por que escrever assim? Os tratamentos de senhor
e senhora vão desaparecendo da publicidade como dos usos sociais. O
"você" invade tudo. Do que adianta, então, aferrar-se a fórmulas
cerimoniosas. Já empoeiradas?
— Meu
leitor, ou minha leitora, quer chegar às últimas conseqüências do que
disse? Se os usos vão varrendo o "senhor" e a "senhora" do vocabulário,
isto é sintoma de uma transformação muito mais profunda, que vai
varrendo da terra todos os senhores e todas as senhoras. Pois enquanto
houver autênticos senhores e autênticas senhoras neste mundo, não haverá
como não chamar de senhor e senhora.
Ora,
o mundo será terrivelmente vulgar, a vida insuportavelmente banal, no
dia em que não haja mais na terra autênticos senhores, nem genuínas
senhoras. Será o mundo dos "camaradas". O de Fidel, Allende e
congêneres.
Resistir contra a tendência ao emprego exclusivo do "você" é resistir a
um verdadeiro rebaixamento do gênero humano.
O
leitor, a leitora quer uma prova? Imagine como se sentiria ofendido se
alguém lhe dissesse que não é, nunca foi, não será jamais um verdadeiro
senhor, uma senhora deveras. É lógico sentir-se tão ofendido em tal
caso, e sustentar ao mesmo tempo que há um rebaixamento para o gênero
humano em que jamais algum homem ou alguma mulher possa ascender à
condição de senhor ou senhora?
Aliás, longe de mim a afirmação de que meus leitores não são, todos,
verdadeiros senhores, e minhas leitoras não são, todas, verdadeiras
senhoras. São. E neste ponto não há, não pode haver exceção. E é
precisamente por isto, que os tratei de senhor e senhora...
Acabo
de consultar o relógio. Marca 23h42. Meu relógio é antiquado. Não indica
o dia, mas só as horas. Eu sustento, entretanto, que mesmo com um
relógio assim é possível a alguém saber em que dia do mês está. Sei, por
exemplo que escrevo na noite do dia 30. E às 23h45 vem ainda ver-me um
amigo para tratar de um assunto. O assunto, aliás, é ele próprio... mas
garanto que lendo na "Folha" esta insinuação não ficará zangado.
Seja
como for, preciso terminar. Tanto mais quanto já estou excedendo o
limite de 6 páginas à mão...
Sou
obrigado a parar. E parar no começo do artigo, pois só agora ia entrar
no assunto: o leitor e a passagem do ano.
Para
me justificar, não encontro senão um argumento. E bem esfarrapado,
concordo. Mas como fazer, senão tenho outro? Enfim, eis minha razão. Por
insegurança, apresento-o em forma interrogativa: por ocasião de um mero
começo de ano não cabe bem um simples começo de artigo?
Mas,
dirá o senhor ou senhora que me ler: — E eu, o artigo é sobre mim? Estou
logrado ou lograda! Este logro seria bom para o 1º de abril. E não para
um artigo a propósito do 1º de janeiro.
—
Sejamos conciliatórios. Prometo não escrever um artigo-logro no dia 1º
de abril.
E
faço votos — estes muito de coração — para que a Providência favoreça
todos os leitores e cada um deles no ano de 1971. Desejo-lhes toda a
espécie de graças no ano novo. Por exemplo, a de que este não venha a
ser, como tantos outros, um longo e contínuo 1º de abril.
Estes
votos, já o disse, são sérios. Pois em matéria de prece não se brinca.
O
resto é "taquinerie". Se alguém não souber — ou não se lembrar de
momento — o que esta palavra quer dizer, procure um dicionário de
francês...