Folha de S. Paulo,
6 de dezembro de
1970
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Nunca
deixe, meu caro leito, de dar um bom conselho. O mais das vezes, essa
sua ação louvável lhe trará frutos amargos: indiferença, antipatia, ou
até revolta. Pois, em geral, os conselhos autenticamente bons não são
fáceis de seguir. E a pessoa medíocre, a quem se mostra como única
solução para o problema que a aflige, um dever árduo a cumprir, ou um
esforço penoso a realizar, sente-se como que agredida. Ora, segundo a
Escritura, o número dos estultos é infinito. E a mediocridade revoltada
contra a grandeza do dever ou da luta não é senão uma forma de
estultice...
Entretanto, nas poucas vezes em que o bom conselho é atendido, dele
podem brotar tais mananciais de água viva, que, apesar de tudo, é
compensatória a fidelidade ao duro hábito de dar bons conselhos.
* * *
Assim
é que, antes ainda da abolição da escravatura, um pobre preto, velho e
analfabeto, teve a iniciativa de procurar algumas senhoras, suas
conhecidas, a fim de lhes oferecer um bom conselho. Sugeria-lhes ele que
fundassem uma Associação de Damas de Caridade, para alívio dos
necessitados.
O
conselho importava em árduos deveres: reuniões periódicas, oração,
coleta de esmolas, confecção de objetos para os pobres e, por fim,
visitas pessoais aos indigentes, a fim de lhes distribuir todas estas
esmolas.
Bem
entendido, o último termo desse ciclo de deveres era também seu apogeu,
isto é, a visita. Esta afirmação era verdadeira para a São Paulo pacata
e pequenina de há 80 anos. E vale ainda muito mais para a São Paulo
imensa, agitada e complicada de hoje, na qual um minuto perdido pode
importar num desastre e uma travessia pelas ruas pode ser uma odisséia.
É sempre um sacrifício para a Dama de Caridade abrir um parêntese em
suas atividades domésticas ou sociais, roubando um pouco de tempo a seu
esposo, a seus filhos, ou a seus prazeres, para entrar em um casebre, um
cortiço ou um porão, em visita a um doente pobre. Mas o sacrifício paga
a pena. Pois a Dama de Caridade não leva a seu assistido apenas o
auxílio tão precioso de uma esmola material. Leva-lhe muito mais, isto
é, o calor de uma presença, o alento de um sorriso, a esmola de uma
prosinha, o estímulo de uma palavra de esperança.
E
isto vale muito. Por sua presença, a Dama de Caridade dá ao enfermo a
convicção de que no mundo ainda existe esta flor raríssima e
inestimável, que é a compaixão desinteressada. Falo aqui da compaixão
genuína, que é a participação do rico na dor do pobre, da pessoa
saudável no sofrimento do enfermo, da pessoa cercada de afeto e de
prestígio, no isolamento e no abandono daquela a quem ninguém procura.
Uma compaixão que não tem por objetivo qualquer interesse eleitoral,
qualquer desejo vaidoso de se fazer notar pela bondade para com os
pobres. Uma compaixão que vai diretamente de pessoa a pessoa, e que
existiria por inteiro ainda que não houvesse lutas de classe a prevenir,
nem questões sociais a resolver. Uma compaixão que não é um
sentimentalismo romântico, e que continua a mesma ainda quando o pobre
se mostra mal-humorado e desagradecido. Uma compaixão que não se limita
à terra mas prepara para o Céu, proporcionando ao pobre o ensino da
doutrina de Jesus Cristo, e aproximando-o dos Sacramentos.
Tudo
isto se engloba sob a designação áurea – e que em nosso século de ferro
vai parecendo dolorosamente antiquada – de caridade cristã.
Talvez seja suave visitar algum pobre doente de quando em vez. Mas
fazê-lo sempre, metodicamente, enfrentando a chuva e o bom tempo,
levando-lhe esmolas obtidas com dificuldades, e falando-lhe de suas
dores ainda quando nossa alma sangra com as nossas...
Voltando ao bom preto analfabeto, por certo percebeu ele quanto era
árduo o conselho que dava às senhoras, suas conhecidas, naqueles remotos
idos do Brasil imperial.
Mas
em sua alma havia o fogo comunicativo da caridade cristã. Ele persuadiu,
entusiasmou e arrastou. Seu conselho foi ouvido.
E em
conseqüência, em setembro de 1887 se reuniram, em uma das dependências
da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no largo do Paiçandu, as
primeiras Damas de Caridade de São Paulo.
* * *
De
então para nossos dias, como um rio que se alarga à medida que corre, a
boa obra inspirada pelo simpático e iletrado conselheiro não tem feito
senão crescer.
Segundo o seu último relatório – o de 1969 --as Damas de Caridade de São
Vicente de Paulo da Cidade de São Paulo são 840. Assistiram elas, só
naquele ano, mais de 13 mil pobres, distribuindo-lhes em esmolas mais de
700 mil contos. De alimentos, distribuíram 253.399 quilos, e de leite,
43.152 litros. As peças de roupa dadas naquele ano foram 48.553, os
calçados chegaram a 6.533 pares, os cobertores e agasalhos a 6.046 e as
receitas aviadas a 1881. Quanto aos socorros espirituais, além de uniões
legalizadas, de primeiras comunhões e de preparações de fiéis para a
morte, promoveram elas 17.816 comunhões.
Espantoso, dirá o leitor.
Concordo. Porém há muito mais. A Associação das Damas de Caridade mantém
quatro estabelecimentos de ensino, o qual é ministrado, de um modo
geral, gratuitamente. Além disto, tem dois Asilos com um total de 174
velhinhas, dois ambulatórios, um posto de assistência dentária, e nada
menos que vinte Clubes de Mães, os quais proporcionaram mais de 10 mil
peças para os pobres, em um só ano.
Pois
bem, tudo isto existe hoje em São Paulo porque em 1878 um analfabeto de
horizontes altos e vistas largas, um preto amado por Deus, e que por sua
vez amava a Deus, não guardou dentro de si o bom conselho que nascera em
sua alma cheia de fé.
Não é
bem verdade, meu leitor, que apesar dos pesares, vale a pena dar bons
conselhos?
* * *
Não
me é possível narrar todos estes fatos, sem dizer ao leitor que esta
grande obra que assim difunde seus benefícios por nossa população
afanosa e lutadora, tem à testa a figura de um bispo, a quem São Paulo
já deve serviços dos mais assinalados, isto é, d. Ernesto de Paulo. E
que sob a alta direção dele, superintende toda essa faina um pugilo de
senhoras inteligentes, ativas e abnegadas, cuja presidente é – e quão
merecidamente – da. Maria José Salgado.
Permita-me o leitor insistir, mas reafirmo que de tudo quanto elas
fazem, o que mais admiro é a visita domiciliar que essa legião de 840
damas faz aos doentes pobres. Só em 1969, efetuaram elas 24.124 visitas.
Calcula o leitor o que isto representa?
Tenho
para esta preferência minhas razões. Dar dinheiro, dar tempo, dar
trabalho é muito. Mais do que tudo é dar sua própria presença, e com
esta um pouco de sua alma; é fazer o apostolado que não só auxilia a
cura do corpo, mas abre para as almas os portais majestosos e cheios de
luz do Reino dos Céus.
E
assim permita-me o leitor um bom conselho. Um conselho amigo. Por
ocasião do Natal e do fim do ano, auxilie a Associação das Damas de
Caridade.
* * *
Parece-me ouvir alguém sorrir sarcasticamente, ao ler este artigo:
"Damas... pobres... caridade! Como tudo isso é anacrônico!"
Nosso
Senhor Jesus Cristo disse: "Pobres, sempre os tereis convosco" (S.
Mateus XXVI, 11). Um mundo em que não houvesse lugar para pobres, nem
para verdadeiras damas cristãs, nem para a caridade, o que seria?
Simplesmente um
inferno...