Folha de S. Paulo,
13 de
dezembro de 1970
Açúcar amargo, Natal sem luzes
A
"Folha de S. Paulo" publicou no dia 9 do corrente, um despacho
telegráfico da AFP, proveniente de Havana, contendo várias informações
dignas de comentário.
Essas
informações se fazem notar pelo que têm de insuspeito. Pois constam,
todas, de um discurso proferido há dias por Fidel Castro na Assembléia
Plenária dos Trabalhadores de Cuba.
* * *
Cumpre registrar, antes de tudo, a duração da arenga do ditador barbudo:
três horas e meia! Imagine-se o leitor na situação de um dos ouvintes.
Consegue avaliar o tédio que a interminável arenga lhe causaria?
A
pergunta se impõe, tanto mais quanto o tema sobre o qual versou Fidel
Castro, durante este longo tempo, foi um só. Tema inesgotável e
melancólico por definição, isto é, os problemas internos da ilha.
Outras interrogações, ainda, ocorrem, naturalmente, a propósito de um
discurso de tão fenomenal duração. Por exemplo, se o orador conseguiu
conservar o auditório numeroso até o fim, e que recurso utilizou para
isto.
Talentos oratórios excepcionais? — Se ele os tivesse, a propaganda
comunista já os teria alardeado no mundo inteiro. Ademais, Fidel já se
têm feito ouvir na televisão internacional sem inspirar a nenhum dos
espectadores o desejo de permanecer três horas e meia diante do vídeo a
ver sua gesticulação e ouvir seus bramidos.
Como,
então reter a massa dos ouvintes? Tanto mais quanto se deve supor que
esta tenha sido imensa, uma vez que era uma "assembléia plenária de
trabalhadores", reunida em uma ilha onde todo o mundo, queira ou não
queira, é trabalhador. Hipnose? — Hipóteses rebuscadas como esta são, de
si, pouco verossímeis. Deixemo-la, pois, de lado. O que resta?
A
coerção. A vigilância policial assestada implacavelmente sobre quem
ousasse sair. O registro ostensivo do nome, da residência e a da
profissão de cada trânsfuga, obviamente para a devida comunicação ao
chefe de serviço de cada qual. As conseqüentes sanções — transferências
arbitrárias, tarefas duras e insalubres, diminuição de salário etc. —
aplicadas aos "maus cidadãos" que não quiseram ouvir até o fim a
discurseira. Tudo isto sem excluir uma estada mais ou menos longa nas
enxovias de "La Cabaña", para quem, além de escapulir, se atrevesse a
fazer algum comentário franco sobre a retórica do "chefe". Eis aí o que
pode mais facilmente explicar que Fidel tenha tido auditório para seu
"show" intérmino.
* * *
A
julgar pelo que o ditador disse a seus ouvintes forçados, as suas
ambições de chefe de Estado baixaram sensivelmente do ano passado para
este. Como todos se lembram, sua meta anterior foi de 10 milhões de
toneladas de açúcar. Como ele fracassou rotundamente, baixou o objetivo.
E se limitou modestamente a sonhar, para a próxima safra, com apenas 7
milhões de toneladas.
Para
que esta produção? Para dar um passo avante no caminho do
desenvolvimento? — Não. Confessou ele que Cuba tem um grande déficit
comercial, principalmente com a União Soviética, e que estes 7 milhões
de toneladas constituem o mínimo indispensável para que tal déficit não
aumente.
* * *
É bem
compreensível esse déficit de Cuba em relação à Rússia. O regime
comunista na pequena ilha é artificial, e se mantém exclusivamente com
as "liberalidades" do superpotente "aliado" nórdico.
Boa
parte das safras açucareiras se destina, assim, a pagar o Kremlin. E a
situação dos trabalhadores de Cuba em relação ao governo russo é de todo
parecida com a que a propaganda comunista descreve como sendo a dos
trabalhadores sul-americanos em relação aos bancos ianques.
Parecida? — Suponhamos a analogia: quantas e quantas são, entretanto, as
diferenças!
Por
exemplo, o que pode fazer Cuba no sentido de retificar uma conta cobrada
pelo Kremlin, de objetar contra um cálculo, de discutir as condições dos
sucessivos empréstimos? Não recebendo senão da Rússia todo o apoio
militar que lhe permite ir durando como ditador, desde que Fidel Castro
se torne molesto aos soviéticos, cairá inevitavelmente no vácuo,
derrubado pelos seus próprios comparsas a um simples aceno de Moscou...
Oh,
quão mal empregados são estes 7 milhões de toneladas de açúcar! É o
próprio tirano, que se serve do trabalho escravo para pagar as armas com
que os mantém na escravidão!
* * *
Para
sustentar esta situação — dura para todos e risonha só para si e seus
asseclas — Fidel Castro não aponta senão um meio. É espremer ainda mais
o operariado. Não consta que ele tenha dito, em sua longa arenga, uma só
palavra sobre aumento de salários. Mas é certo que exigiu mais trabalho.
Com
efeito, segundo ele, a nova safra precisa ser obtida sem reduzir o
esforço levado a cabo nos últimos meses para aumentar a produção de
outros artigos exportáveis e sem paralisar o andamento de outros planos
de inversão. Para isto, deseja ele reduzir — não se sabe de quanto — a
mão de obra empregada na produção açucareira. Ora, como a safra passada
foi por volta de 8 milhões de toneladas, e se desviam braços para outros
setores, para conseguir uma safra quase igual, alguém tem que trabalhar
mais. Quem é, senão o pobre operariado?
* * *
Tudo
isto é lamentável. Mostra-nos um pobre povo transformado em rebanho
exausto, privado de sua dignidade, de sua liberdade, de seus direitos
mais elementares.
Mas
isto mesmo nos mostra também outra coisa, que nos diz respeito bem mais
de perto. Para apontá-lo, tiro os olhos da infeliz Cuba e os fixo na
América Latina.
Como
compreender — senão por uma cumplicidade pejada dos mais sombrios
prognósticos — que um chefe de Estado como Allende, que anuncia para seu
povo um futuro cheio de fartura e liberdade, acabe de restabelecer
relações diplomáticas com Cuba, e, não contente com isto, se arvore em
campeão da causa de Fidel Castro no continente, tudo fazendo para
reintroduzir a republiqueta comunista na OEA? Não sabe Allende que o
restabelecimento dos laços da América Latina com Cuba reforçaria
inevitavelmente a ditadura neste país? Como, então tomar a sério as
tiradas do novo presidente chileno a favor de seu próprio povo, quando
se vê cúmplice dos que oprimem povos irmãos?
* * *
Só
Allende?
Do
continente, retraiamos nossos olhares para dentro de casa...
Sim.
E olhemos para todo o conjunto de periferias político-ideológicas
equívocas e suspeitas que, à maneira de um cinturão de segurança, rodeia
o comunismo caboclo. Falo dos demo-cristãos, dos socialistas, dos
progressistas ou que outro nome tenham. Eles, que tanto se revoltam
contra qualquer defeito da atual estrutura político-social brasileira,
como podem silenciar, e silenciar tão completamente, sobre a situação de
Cuba?
Já no
ano passado, a propósito do fracasso da safra açucareira de 10 milhões
de toneladas, que Fidel vaticinou e não obteve, fiz-lhes — por esta
coluna — a mesma interpelação. Se é o zelo pelos pobres, que move todos
esses inocentes-úteis do comunismo (duvidosamente inocentes e tão
indiscutivelmente úteis), por que não lutam eles pelos pobres de Cuba?
Um
silêncio pesado se seguiu à interpelação. Vejamos se, desta vez, os
interpelados se movem a uma réplica.
* * *
Fixo
agora meus olhos sobre o leitor. Peço-lhe a atenção para estas linhas
que encerram o citado noticiário da Folha de S. Paulo: "Declarou também
(Fidel Castro) que a safra atual (...) começou com certo atraso, e
propôs que, como no ano anterior, sejam prorrogadas para outra época as
festas tradicionais de Natal e Ano Novo.
"Ao
declarar-se ‘respeitador das tradições’ Fidel Castro entretanto
assinalou ‘São muito cristãs, muito belas e muito poéticas, porém
constituem um fenômeno subjetivo que nos trouxeram da Europa’".
Assim, para Fidel Castro o Natal não passa de "um fenômeno subjetivo que
nos trouxeram da Europa". Este o homem que desceu de Sierra Maestra
ostentando um enorme rosário ao pescoço para embair os católicos de seu
país. Cuidado, leitor, cuidado. Não dê crédito a alguém só porque se diz
católico. Estamos na época da hipocrisia, em que Satanás por vezes se
faz sacristão, por vezes padre e... prefiro não continuar.
* * *
Leitor amigo, posso pedir-lhe algo para o Natal? Posso pedir-lhe o
presente de uma prece?
Quando rezar ao pé do presépio, ou quando se sentar feliz para a ceia de
Natal, lembre-se do Natal negro, sem festas nem luzes, de um povo irmão
que nessa mesma noite, a essa mesma hora, está na escuridão, dormindo
exausto para retomar no dia imediato a produção do açúcar amargo,
resultante do trabalho escravo. Lembre-se de Cuba. Lembre-se também do
Natal, cheio de angústias, de tantos chilenos clarividentes, que
discernem em Allende o Fidel de seu país. Reze por todos esses
infelizes.
E
reze pelo Brasil, caro leitor, para que jamais lhe ocorra desgraça
igual.