Folha de S. Paulo,
22 de
novembro de 1970
"Voto-recusa": motivo de esperança
No
momento em que escrevo, isto é, na manhã de quinta-feira, o número de
votos em branco apurados em São Paulo, nas eleições para a Câmara
Federal, sobe a 876.145, representando 21,8% dos votos dados. Fato
análogo se deu quanto à eleição para o Senado e a Assembléia estadual, e
a mesma coisa se passou, mais ou menos, nos outros Estados. Isto sem
falar dos votos nulos e das abstenções.
Não
sei se o leitor já mediu tudo quanto significa esta recusa do eleitor de
escolher um candidato dentro das listas partidárias. O cidadão
interrompe seu descanso ou sua diversão, e vai à sua seção eleitoral
para votar. Recebe a cédula. Mete-se na cabina. Um simples sinal por ele
marcado na cédula que tem em mãos daria a este ou aquele candidato um
voto. Mas o eleitor não quer dar-se ao trabalho ínfimo de marcar a sua
cédula. Não tem vontade de eleger ninguém. Entre estes ou aqueles, tanto
se lhe dá...
Sejamos mais precisos. O eleitor queria outra gente. Não encontrou nas
listas de candidatos gente como queria. Por isto protestou. E seguiu, no
protesto, a única via possível. Abster-se, ele não o poderia, sob pena
de arcar com multas e inconvenientes de toda ordem. Porém, no segredo da
cabina eleitoral, ele se vingou: votou em branco...
Não é
terrível, como expressão de tendências da opinião pública, que assim
tenham procedido 20 a 25% dos eleitores cujos votos foram apurados até o
momento.
* * *
Não
votei em branco. Meu voto foi dado com cuidado, observadas todas as
prescrições legais, e feita uma escrupulosa escolha entre os vários
candidatos. Se alguém, no currículo de meus conhecidos, tivesse
enunciado o propósito de votar em branco, ou de dar um voto nulo, eu
teria procurado dissuadi-lo com todo o empenho.
Tudo
isto, entretanto, não me exime do dever de, como brasileiro, analisar
esta impressionante proliferação de "votos-recusa": chamemos assim os
votos em branco para não falarmos nos votos nulos e nas abstenções.
* * *
A
primeira observação que me compete fazer, é que essa displicência
eleitoral não se exprimiu apenas pelos "votos-recusa". A disputa
eleitoral, vista em seu conjunto, foi apática. Na maioria dos casos,
quem apoiava, apoiava sem entusiasmo. E quem atacava, atacava sem calor.
Uma
das causas de tal atonia foi, naturalmente, a aliás indispensável
moralização da propaganda. Proibidos os gastos eleitorais
extraordinários, a eleição não teve torcida nem ares de campeonato. E,
com isto, não chegou a empolgar esse nosso povo tão afeito a torcidas e
campeonatos.
Isto
parece indicar que as eleições anteriores interessaram mais a título de
campeonato, do que propriamente enquanto eleições.
Será
bem exata essa conclusão?
* * *
Pelo
menos ela é lógica. Nossas disputas partidárias têm sido, e continuam,
vazias de idéias. A propaganda eleitoral se faz muito mais em torno de
pessoas do que de princípios. Disto dá bem uma prova o papel da
fotografia na propaganda. Em última análise, para a maioria dos
eleitores, o que significa a facies de um candidato? – Nada.
Entretanto, se qualquer aspirante a deputado ou senador fizesse sua
propaganda só em torno de um programa ideológico definido, e se
abstivesse de reservar o melhor de sua publicidade para sua foto,
correria sérios riscos de perder votos.
Não
se zanguem comigo os candidatos vencedores ou derrotados, que me lerem.
Se eles tanto e tanto usaram suas facies como argumento
eleitoral, é claro que não foi por faceirice. Logo, foi porque pensam,
como eu, que facies pesa mais do que o programa, junto a bom
número de eleitores.
* * *
Claro
está que não incluo no rol dos candidatos de fotografia toda a equipe
política que disputou as últimas eleições. Na larga lista de candidatos
havia alguns de certo colorido ideológico. Outros representam
autenticamente zonas do interior, nas quais possuem justificado e
incontestável arraigo eleitoral. Um ou outro, por fim, desfrutava de
merecidos títulos para gozar de prestígio pessoal.
Tais
candidatos, uma minoria, não servem de argumento contra o que venho
afirmando. A presença deles nas listas serve apenas para explicar porque
o número de "votos-recusa" não foi ainda maior.
* * *
Mas,
dirá alguém, não provaram as eleições que o povo está contente com a
orientação governamental? Como então afirmar que eles são assim tão
inexpressivos?
Aqui
está um dos pontos delicados do assunto. Creio que a maioria
governamental não era maior nem menor entre os que votaram, do que entre
os que não votaram.
O
"voto-recusa" não significa, a meu ver, uma tomada de posição na luta
entre o governo e a oposição.
A meu
ver, a coisa é outra. E muito outra.
* * *
Há um
número crescente de brasileiros que compreende a importância crucial da
hora em que vivemos. Esses brasileiros não vêem refletidos, no temário
das discussões pré-eleitorais, os problemas importantíssimos que os
preocupam. E, por isto, uma vez que são obrigados a votar, dão o
"voto-recusa".
Enumeramos alguns desses problemas sobre os quais a campanha eleitoral
foi inteira ou quase inteiramente silenciosa:
1 – O
governo federal está elaborando, para os submeter muito em breve à
votação do Congresso, nada menos de 5 projetos de Código. Isto implica
em reformar toda a vida do País. É o caso de, num momento de crise como
este, fazer-se uma tão imensa mudança? Não seria melhor proceder
parceladamente à reforma de nossa legislação? O eleitor médio conhece a
opinião de seu candidato sobre esta importantíssima questão, uma das
maiores com que a História do país se tenha defrontado? – Parece-me que
não.
2 – O
segundo problema é concêntrico com o primeiro. Refere-se ao divórcio.
Qual a atitude do seu candidato perante o problema? – Creio que a
maioria dos eleitores o ignora. No Rio, por exemplo, os divorcistas
terão votado, em boa parte, no sr. Nelson Carneiro. Mas muitos deles,
por certo, votaram em candidatos cuja opinião sobre o assunto ignoravam.
E muitos antidivorcistas terão votado no mesmíssimo sr. Nelson Carneiro,
certos de que a Igreja ou algum abaixo-assinado da TFP, à última hora,
assegure a vitória da indissolubilidade. Quero imaginar que outro não
tenha sido o motivo do pasmoso marasmo da Cúria do Rio ante a
candidatura Nelson Carneiro. O mutismo da arquidiocese do Rio é muito
característico do ambiente de atonia ideológica reinante em muitos de
nossos meios. Assim, o que de mais explicável (e dizendo "explicável"
não digo "louvável") do que o "voto-recusa", por meio do qual o eleitor
se nega a engajar-se em prélio tão inexpressivo?
3 –
Uma terceira questão é a reforma agrária. Ela, só ela, bastaria para ter
dado colorido ideológico à nossa eleição. Pois divide de norte a sul a
opinião pública brasileira. Entretanto, como esteve ela ausente do
prélio! Mais uma vez, pergunto: haverá algo de mais natural do que a
abstenção, no pleito, de eleitores para os quais esta omissão constitui
um pesado fator de desinteresse?
4 –
Por fim, à tremenda pressão comunista na América do Sul. O Chile se vai
transformando, dia a dia, em um país comunista. Ao lado dele, já com o
pé no abismo, está a Bolívia, com a qual temos uma fronteira de 2.500
km. Quando, através dessa fronteira, o Chile, insuflado pela Rússia e
pela China, tiver começado a exportar largamente a subversão – o que ele
fará também em relação à Argentina e ao Paraguai – levantar-se-á uma
questão internacional de uma gravidade sem precedentes na História do
continente. O eleitor médio conhecia a opinião de seu candidato sobre a
conduta a assumir, por nosso país, em tal eventualidade? – Não. Então,
como estranhar que uma apreciável parcela do eleitorado médio tenha
sentido que não havia razão para escolher?
* * *
Do
que vale o "voto-recusa", como sintoma?
Ele
prova que um eleitorado de escol está se formando, para o qual os
grandes problemas nacionais valem mais do que as fotos e as simpatias
meramente pessoais, como fator determinante da escolha de um candidato.
Este
escol terá optado por um mau sistema de exprimir sua inconformidade. Mas
o "voto-recusa", por deplorável que seja, indica a aurora de uma
transformação que justifica reais esperanças: a morte do personalismo e
a aurora dos princípios na vida política brasileira.