15 de
novembro de 1970
Sim,
só por meio de uma Cruzada!
Passo
a passo, o Chile de Allende vai descendo rumo aos baixios obscuros e
gélidos do regime comunista. Empossado o presidente marxista, cada dia
registra alguma nova medida neste sentido. Cito a esmo. O Ministro do
Exterior do Chile anunciou o propósito do governo, de estabelecer
relações diplomáticas com todos os Estados comunistas. Por ocasião do
Aniversário da implantação do regime soviético, o novo presidente e seu
chanceler estiveram na embaixada russa, em visita de congratulação e
regozijo. Inaugurou-se, em Santiago, um monumento em honra de "Che
Guevara": sobre um pedestal, o guerrilheiro comunista segura um fuzil;
na base figuram medalhões comemorando outros "heróis" da guerrilha,
entre os quais Marighela. Foi anunciada a nacionalização (leia-se
confisco) de todos os bancos privados.
Ao
mesmo tempo, Allende vai instituindo um sistema próprio para impor aos
chilenos a aceitação passiva destas medidas e de outras que venham. O
primeiro elemento do sistema é o terror. Anunciam-se greves de
operários. O governo concedeu anistia a todos os agitadores e
terroristas presos por ordem de Frei. Está sendo organizada uma
superpolícia política, destinada à sustentação do governo marxista.
O
outro elemento do sistema é o silêncio. Nas empresas jornalísticas, vai
fervendo a agitação em prol da participação dos trabalhadores na
direção. Ou seja, em prol da entrega virtual dos jornais e revistas a
sindicatos controlados por allendistas. O presidente marxista terá,
assim, toda a imprensa em mãos. E seus adversários políticos se verão
reduzidos ao silêncio.
No
meio de tudo isto, o cardeal Silva Henriquez continua alegre. E — com
que dor filialmente reverente e consternada o digo — Paulo VI, por sua
vez, continua presenciando, imperturbável, o desatar da tragédia.
Estes
os fatos, evidentes e incontestáveis.
* * *
-
Mas, dirá talvez alguém, e o que pode fazer o cardeal Silva Henriquez? O
que pode fazer Paulo VI? Varre o mundo um sopro de descontentamento. A
massa que, exige reformas. É impossível recusá-las. Para salvar a
democracia do assalto da violência, é preciso que a Igreja se entenda
bem com os líderes da luta pela emancipação das massas. E é por meio de
silêncios prudentes e de concessões oportunas, que esta política sábia
deve ser levada a cabo. — Assim, são Paulo VI e o cardeal Silva
Henriquez, que estão com a verdadeira estratégia.
A
isto, eu responderia, entre outras coisas, que defender os direitos das
multidões absolutamente não é implantar o comunismo. Diga-nos os
infelizes "voluntários" do corte de cana em Cuba. Devo acrescentar que
não é por meio de concessões que se arrastam as multidões.
Francisco Campos [Francisco Luís da Silva Campos, 1891-1968, n.d.c.],
como homem público, foi discutido. E não há homem público que não o
seja. Seus méritos de intelectual, entretanto, sempre pairaram acima de
qualquer dúvida.
Por
uma razão toda fortuita, caiu-me nas mãos, há dias, um opúsculo seu.
Intitula-se "Atualidade de D. Quixote". E ali pude inteirar-me não só de
como esse espírito de escol sentia os anelos da massa, como também do
que ele esperava do Chefe da Cristandade para a salvação da democracia.
A meu
ver, sobrestima ele o papel da emoção. E restringe o papel do Papa na
sociedade temporal, quando vê nele um mero salvador da democracia. O
Papa é, pela natureza de seu múnus, o sustentáculo, o mestre, o guia, de
algo de mais alto e profundamente sacral, que é a civilização cristã.
Sem embargo, é impossível ler as reflexões de Francisco Campos sem
sentir quanto nelas há de verdadeiro, de profundo, de empolgante.
Passo-lhe a palavra:
"A
vida antiga era um cerimonial; obedecia a um rito, a uma ordem, ao ritmo
de um amplo e compassado movimento comparável ao balanço do mar ou à
procissão dos períodos, das estações ou fases da natureza.
"O
cerimonial desapareceu da vida de hoje e com ele as largas ondulações do
pensamento e da emoção, o compasso de espera que nos permitia, com apoio
no passado, saltar sobre o presente, reunindo num só feixe as
interferências dos três tempos de que se compõe a vida humana (...).
"Com
o cerimonial desaparece, igualmente, aquele compasso de dança das
idades, cada qual com a sua medida própria ou seu número de ouro (...).
Hoje, as idades se misturam, cada qual envergonhada de si mesma, e não é
raro que umas usem as medidas, números, os ritmos, os balanços ou os
passos da dança de outras idades, passadas ou futuras."
"(...) Onde empregar, porém, o potencial de emoção do homem de hoje, o
qual não é menor do que o do homem de ontem? Onde, a não ser na
passividade da posição de espectador? Nos cinemas, nas arquibancadas dos
estádios, nos comícios políticos, nos auditórios de discursos e
conferências. Esses empregos, ao invés de aliviarem o estado de tensão
das emoções, agravam a instabilidade do seu equilíbrio. Eles se limitam
a provocar começos de movimento, logo inibidos no seu estado nascente,
acentuando o sentimento de frustração, que é o estado habitual do homem
contemporâneo. Não encontrando pólos adequados por onde efetuar a
descarga de seu potencial emotivo, este flui naturalmente" para "a
agitação política, a sinistra mascarada das revoluções, os horrores da
guerra, o crime, a literatura e a arte hermética dos intelectuais
(...)".
O
ilustre brasileiro conclui, então, que só uma cruzada pode revitalizar o
mundo de hoje: "Quando digo cruzada, é cruzada de verdade. Não são
programas, discursos, radiodifusões, estatísticas, artigos, conferências
e discursos. Poderá ser uma quixotada; mas há de ser uma cruzada. Alma,
devoção, sacrifício, coragem, risco, paixão".
E
eis, por fim, como ele concebe essa cruzada:
"O
mundo pede uma cruzada. Eis como (...) imagino que poderia começar esse
grande abalo ou esse grande escândalo de que o mundo tanto necessita. O
Papa sairia de sua sede gestatória, acompanhado de todas as ordens,
confrarias e irmandades. A massa dos peregrinos e dos penitentes
seguiria.
"Uma
imensa procissão, com as imagens, os emblemas, as flâmulas e os cantos
adequados. Pelas aglomerações humanas por onde passasse essa nova
cristandade, haveria cerimônias, celebrar-se-iam sacramentos e
espetáculos litúrgicos, e se dariam, mais importante do que tudo,
verdadeiros testemunhos de sacrifício, de humildade, de penitência, de
misericórdia e de imitação de Cristo. As emoções contidas encontrariam
na grandeza a libertação que pedem (...) o ideal que quanto mais alto
mais convém ao coração do povo.
"(...) Este nosso mundo de hoje, que como Sancho abandonado por seu amo,
reclama a volta de dom Quixote, por sentir que sem ele a sua vida
não teria sentido. De todos os lados sob os mais diversos nomes e as
mais contraditórias aparências, o que o homem dos nossos dias pede e
reclama, o que ansiosamente espera — é o retorno de Dom Quixote".
* * *
Dom
Quixote, é bem de ver, não simboliza aqui a cavalaria decadente,
dom-juanesca e fátua. Ele é o símbolo da cavalaria em seu melhor
aspecto, do idealismo excelso, da coragem leonina, do menosprezo dos
pequenos cálculos de oportunidade.
Como
tudo isto é diverso da fria e seca trivialidade do progressismo e do
entreguismo festivo e sanchopanchesco do cardeal Silva Henriquez. Como
também da omissão silenciosa daquele cujo nome não pode, entretanto, ser
mencionado sem veneração e amor, que se deve ao Papa, isto é, de Paulo
VI!
E
quanto é verdade que só pelo impulso de uma cruzada espiritual, a Igreja
alcançará mover as multidões hodiernas!