Folha de S. Paulo,
4 de
outubro de 1970
És
tu!
O que
é um reacionário? Pergunto, mais precisamente, qual a imagem que se faz
de um reacionário nas rodas de moçoilos e moçoilas da esquerda festiva,
de "sapos" e do N-A-N-E.
Em
princípio, nessas rodas se rotula de "reacionário" o egocêntrico por
excelência. Privado do mais elementar senso de justiça, de qualquer
forma de compaixão para com o próximo e de zelo pelo bem comum, não
pensa o "reacionário" senão em encher-se de dinheiro. Ilimitadamente.
Quanto mais melhor. Contanto que sua fortuna vá crescendo. Tudo mais é
secundário para ele.
Essa
avidez de dinheiro leva o "reacionário" a ser político. Pois, para
adquirir e conservar uma fortuna desmesurada sem compartir vantagem
alguma com ninguém, é forçoso lesar muita gente e despertar muitas
invejas. E o meio para conter a investida dos lesados e dos invejosos
está em ameaçá-los com a polícia. Ora, para dispor da polícia é
necessário intervir na política para dominar o Estado.
Tudo
isto não se alcança sem certo prestígio social. Algum "tonus" especial
de distinção, que o separe da massa, convém, pois, ao "reacionário", até
mesmo nestes nossos dias em que os nababos são tão democratizados. Daí,
nas grandes circunstâncias, a necessidade da cartola, na qual, muito
erradamente, a propaganda comunista aponta o símbolo da reação
contemporânea.
Na
realidade, esse símbolo não pertence ao "reacionário" moderno. Ele é um
vestígio da sociedade aristocrática da "Belle Époque". O "reacionário"
de hoje o usa só de quando em vez, para dar um lampejo de alto estilo a
seu "status" social.
Mas,
objetará alguém, o "reacionário" não é o continuador do aristocrata?
Então, por que não convém ao primeiro, com toda a propriedade, o símbolo
do segundo?
--
Num sentido muito lato do termo, pode-se dizer que o "reacionário"
moderno, ou seja, o plutocrata, o oligarca (isto é , o membro de uma
classe oligárquica), é um sucessor do aristocrata. Mas, sobretudo, ele é
o contrário do aristocrata, ele é o verdadeiro demolidor da
aristocracia.
Com
efeito - ao se fazer do nobre uma imagem caricata, como o plutocrata é a
caricatura do proprietário - o fidalgo também seria um vampiro
egocêntrico. Mas a ordem crescente das avidezes do nobre seria outra.
Enquanto o plutocrata vive para o dinheiro, e só quer o poder político e
o brilho social para conservar ou aumentar sua fortuna, o aristocrata
(vampiro ou não) está voltado para as honras e só aspira ao poder e ao
dinheiro na medida em que são instrumentos para conservar e acrescer as
honrarias que lhe são tributadas.
Na
medida em que o senso da utilidade prática foi primando sobre o dos
valores simbólicos, o plutocrata foi crescendo e substituindo o
aristocrata, seu antecessor e seu rival.
É
evidente que o vampiro plutocrático existe, como existiu outrora o
vampiro aristocrático. E assim como, para os revolucionários de 1789, o
aristocrata-vampiro foi o melhor pretexto para a Revolução, assim, para
o comunista de hoje, o proprietário-vampiro (e outra coisa não é o
plutocrata) é o melhor pretexto para a guerra de classes.
Esse
vampirismo é, na linguagem dos esquerdistas, sinônimo de reação. O "sans
culotte" da Revolução Francesa via no vampiro nobre um "reacionário". O
"descendente" ideológico do "sans culotte", que é o comunista, vê o
"reacionário" no plutocrata.
* * *
Amar
o vampirismo, seja ele do nobre ou do burguês, como é isto possível? Ao
vampiro, só quem pode amá-lo é ele próprio.
Se,
portanto, os homens de 1789 e os comunistas de hoje fossem meros
paladinos na luta contra o vampirismo, a meta por eles visada (deixemos
de lado as questões de método) só poderia merecer simpatia.
E
também seria malfeitor o "reacionário" intelectual, político ou militar
a serviço do vampiro-plutocrata.
Na
realidade, porém, combater o vampirismo não é, para o genuíno
revolucionário de 1789 como para o de hoje, senão um pretexto. Nem um
nem outro visam destruir só o aristocrata-vampiro. Segundo o
revolucionário autêntico, todo e qualquer nobre, todo e qualquer burguês
é, necessariamente, um vampiro. Um "reacionário": pois ser nobre é, em
si mesmo, ser opressor da plebe, e ser burguês é, em si mesmo, ser
ladrão do povo.
Que
assim pense algum Marat, algum Proudhon, algum Marx, não espanta. Está
na lógica de sua mentalidade fundamentalmente igualitária ver uma lesão
de direito qualquer forma e tipo de desigualdade.
O que
espanta é que assim pense um católico depois de 20 séculos, durante os
quais a Igreja ensinou ininterruptamente que tanto o nobre, quanto o
burguês e o operário podem salvar-se. Que o céu está cheio de gente que
se santificou em qualquer dessas classes sociais. Que Santos, e Santos
de altar, os houve tanto entre nobres como entre burgueses e operários.
E que Jesus Cristo, Senhor Nosso, foi humilde operário em Nazaré, mas
também aceitou, como coisa que Lhe era devida, que o povo de Jerusalém o
aclamasse solenemente Príncipe, filho da real casa de Davi.
Analogamente, para o comunista, "reacionário" não é apenas o defensor do
nobre-vampiro ou do burgues-vampiro, mas quem quer que se recuse a
aceitar que toda desigualdade é uma injustiça, e que todo nobre ou todo
o proprietário, por mais virtuoso e até santo que seja, é, por
definição, um canalha.
Com o
epíteto de "reacionário", os comunistas procuram designar o público,
como alvo de um mesmo ódio, o vampiro e o seu defensor desonesto e
vendido, o nobre, o burguês, e o defensor desinteressado de um alto e
sadio princípio. Sim, do princípio de que pode e deve haver
desigualdades harmônicas entre os homens. E de que, conforme os tempos,
os lugares e as situações, é legítimo que haja, ou aristocratas, ou
burguesias, ou uma e outra classe, à frente da hierarquia social.
Para
que a hierarquia social seja legítima, essencial é que as honras dadas a
uns não cheguem a ponto de importar em desonra para outros, mas que,
pelo contrário, todos participem, embora em graus diversos, da plena
honorabilidade indissociável da dignidade do homem e do cristão. Que as
riquezas não se concentrem nas mãos de uns a ponto de ficarem outros
numa situação de carência, insegurança e dependência incompatíveis com a
dignidade do homem e do cristão.
E,
isto dito, o que cabe acrescentar é que o verdadeiro reacionário é o
comunista.
* * *
Com
efeito, imagine alguém um patrão que tivesse inteiramente a seu dispor
legisladores, juizes, militares, delegados e policiais. Do qual todos os
homens fossem assalariados. Que impusesse a cada assalariado a tarefa
que bem entendesse. Que marcasse livremente as horas de trabalho para
cada um. Que punisse a seu talante todos os descontentes e todos os
faltosos. Que fizesse os juizes julgarem sempre a favor dele os
processos - No que esse patrão super-vampiro seria diferente de um Fidel
ou de um Brezhnev? Não é bem verdade que a situação de um pobre
"trabalhador voluntário" recrutado na Rússia, ou de um mísero cortador
de cana em Cuba, é muito inferior à do mais mísero dos operários
explorado pelo mais rombudamente onipotente dos patrões? Pois qual o
patrão que, em nossa sociedade burguesa, exerce sobre seus operários um
poder comparável ao do Estado comunista?
Em
outros termos, houve alguma vez nobre mais "vampiramente" prepotente,
patrão mais "vampiramente" dono do operário do que Fidel ou Brezhnev?
Neste
caso, ó comunista, eu te pergunto: por que os "reacionários" por
excelência não são o Führer soviético e seu congênere cubano?
Por que o
"reacionário" por excelência não és tu?