Folha de S. Paulo,
25 de outubro de
1970
Perigosamente cambaia
A
Comissão Central da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil realizou,
há dias, uma vistosa reunião no Rio, para deliberar sobre a prisão de
certo número de sacerdotes e de leigos filiados à JOC, bem como a
organizações católicas congêneres. O resultado das deliberações então
levadas a cabo pelos cardeais, arcebispos e bispos presentes à reunião
foi um comunicado, publicado com destaque por toda a imprensa do Brasil.
No
presente artigo, não vou tratar das prisões, mas do comunicado.
Apresenta ele, ora jacente ora subjacente, uma concepção tão singular do
que devam ser, em concreto no Brasil de hoje, as relações entre o poder
espiritual e o temporal, que se os signatários do manifesto tomam a
sério as palavras que formularam em ocasião tão solene, temos para breve
o que todos nós desejamos tanto e tanto evitar, isto é, um choque entre
o Episcopado (ou, pelo menos, a parte mais altamente colocada dele) e o
Estado.
Com
efeito, verá o leitor que os ilustres signatários do manifesto entram
tão a fundo na seara do Estado, no que diz respeito aos assuntos
sócio-econômicos da atualidade, e de tal maneira cerram a este qualquer
possibilidade de tomar posição face aos aspectos espirituais, que daí
resulta uma flagrante falta de reciprocidade. Ora, como se sabe, a
reciprocidade é a condição básica de toda relação normal, tanto entre
grupos como entre instituições privadas ou públicas.
Como
se verá, o erro de perspectiva que levou a CC da CNBB a posição tão
cambaia resultou de que, ao tratar de suas próprias atribuições na
esfera temporal, deu-lhes toda a amplitude que pode assumir, a título
excepcional, em um Estado mal governado e trabalhado por uma crise
mortal, ou quase tanto. Pelo contrário, ao considerar as atribuições do
Estado na apreciação de certos fatos da vida religiosa do País,
concebeu-as como se a Igreja estivesse perfeitamente governada, e nela
não lavrasse a menor crise. Não é difícil prognosticar que - a manter-se
a CC episcopal nessa posição pessimista no que diz respeito ao Estado, e
ingenuamente otimista no que diz respeito à Igreja - as relações entre
esta e aquele se basearão em pressupostos falsos, que só podem levar ao
desentendimento.
* * *
Ouçamos a CC: "Ao reconhecer, no desenvolvimento econômico e social do
Brasil, as realizações do governo, a Comissão Central encarece,
entretanto, que a promoção do homem em suas várias implicações, objetivo
assumido pelo governo em seus documentos oficiais, deve ser plenamente
assegurada em todos os escalões de sua organização política e
administrativa. Tal objetivo não é alcançado quando, para eliminar o
terrorismo subversivo e aviltante, cuja maior vítima é o próprio povo, a
exacerbação de uma justa preocupação pela segurança nacional gera um
clima de crescente insegurança. O terrorismo da subversão não pode ter
como resposta o terrorismo da repressão. Renovamos nossa firme
condenação ao comunismo. Forma inegável, entretanto, de fomentá-lo, é
impedir a ação da Igreja, deturpar sua imagem, truncar sua doutrina,
cercear sua atividade, difamar e caluniar seus pastores."
Em
linguagem mais simples e direta tudo isto quer dizer que os bispos
elogiam o êxito alcançado pelo governo na luta pelo desenvolvimento,
porém protestam, em nome desse mesmo desenvolvimento, contra o que
qualificam de "clima de crescente insegurança", de "terrorismo de
repressão" anticomunista etc.
Não
entro na objetividade dos fatos alegados pelos prelados. Consideradas
suas palavras em princípio, sinto não pequena estranheza. Pois se os
prelados falassem em nome da justiça e caridade - da moral cristã, em
suma - ninguém poderia alegar que se puseram fora de sua seara. Mas em
nome do desenvolvimento... Não direi que a coisa esteja errada. Mas ela
exige precisões, cuja omissão falseia deploravelmente as perspectivas em
que eles se põem.
Sem
dúvida, a Igreja como Mestra e Mãe que é, não pode manter-se indiferente
ao desenvolvimento temporal dos povos. Isto não obstante, é preciso que
os dignitários eclesiásticos jamais percam de vista pertencer tal
desenvolvimento à missão específica do Estado. E que o papel da
hierarquia eclesiástica consiste, normalmente, em auxiliar o esforço
desenvolvimentista do Estado, em dar de quando em vez alguma sugestão
amiga, jamais porém impor ao Estado qualquer coisa em nome do
desenvolvimento.
Causa
assim estranheza ver os membros do órgão supremo da CNBB se porem na
posição de tutores do desenvolvimento, dirigindo críticas manifestas e
até algum tanto sarcásticas ao poder temporal, cujo êxito
desenvolvimentista entretanto reconhecem.
Outro
aspecto surpreendente do texto citado diz respeito à luta do Estado
contra a subversão. Sentiram os signatários do manifesto a necessidade
de se afirmarem enfaticamente contrários ao comunismo. Logo em seguida
entram a alegar excessos na repressão do Estado contra o comunismo.
Nesta atitude falta algo.
Com
efeito, ao falar do desenvolvimento, o comunicado elogia por suas
benemerências, e ataca por suas alegadas lacunas, o poder público
temporal. Por simetria, ao falar da repressão ao comunismo, deveria o
comunicado elogiar a repressão anticomunista em si, e protestar contra
os exageros. Não, porém. O comunicado não tem uma palavra de elogio
claro e formal da repressão ao comunismo. Deste só fala para lhe apontar
defeitos. Não é estranha esta omissão?
Mas,
objetaria alguém, ao se proclamarem anticomunistas, os senhores membros
da CC não se declaram implicitamente favoráveis à repressão
anticomunista?
Seria
muito fácil de contentar, quem respondesse pela afirmativa. De fato,
embora a CC da CNBB declare condenar o comunismo, essa condenação tem,
na esfera religiosa, uma repercussão quase exclusivamente platônica.
Onde estão os pastores e os sermões anticomunistas que se ouviam tanto
outrora... quando o comunismo constituía um perigo remoto? Onde as
medidas canônicas de profilaxia anticomunista, próprias a fazer cessar a
infiltração comunista na Igreja? Se formos otimistas, diremos que de
tudo isto não se vê quase nada.
Assim, não é de espantar que esses prelados não aplaudam as medidas
anticomunistas do governo, e só tenham voz para, nesta matéria, alegar
exageros.
E a
carência de aplausos da CC episcopal neste ponto equivale a uma
indisfarçável censura ao Estado.
Em
outros termos, no tópico citado, temos a tristeza de ver a CC da CNBB
interferir a fundo - e contramão - nos assuntos de Estado, como para
salvar do caos um país mal governado e em crise. É o que chamam, pouco
abaixo do texto citado, sua "presença crítica" na realidade
sócio-econômica nacional. Vejamo-los agora, que fecham as portas ao
poder temporal, excluindo qualquer "presença crítica" deste em matéria
normalmente privativa da Igreja.
* * *
Dizem
os prelados: "No julgamento do que é realmente conforme ao Evangelho e à
sua aplicação, os bispos do Brasil não admitem transferir as
responsabilidades que lhes cabem por mandato divino."
Em
princípio, "beníssimo". Não, porém, sem reservas. A linguagem deste
tópico sugere a impressão de que jamais, em tempo algum, um fiel pode
pôr em dúvida a ortodoxia de um bispo. E que este é, em sua diocese,
supremo e único juiz em matéria de fé.
Ainda
aqui, não quero dizer que assim pensam os membros da CC da CNBB.
Entretanto, claro está que sua redação é infeliz. Pois o episcopado de
um país não é - por si só - infalível.
--
Mas passemos a outro aspecto do texto episcopal.
Já
que o comunicado trata das relações presentes entre a Igreja e o Estado,
segundo toda a evidência, é para o Estado que se dirige a advertência
nele contida.
Ora,
imaginemos um fato. Um magistrado deve julgar alguém por crime de
atividades subversivas. Entre as provas, figuram documentos com
palavreado comuno-cristão. O promotor declara que os escritos são
subversivos. O advogado da defesa alega que não, que são o mais puro
leite da doutrina católica. E como prova, junta um certificado do bispo
tal, afirmando que o documento é realmente ortodoxo. O que deve fazer o
magistrado? Segundo os membros da CC da CNBB, deve admitir cegamente que
o bispo tem razão. E declara nula a prova da culpabilidade.
Pergunto ao leitor: acha que isto é cabível nas condições concretas, tão
tristemente excepcionais, do Brasil de hoje?
* * *
Em
conclusão, os textos citados do comunicado reivindicam para os bispos o
poder de intervir largamente na seara do Estado, e não admitem, nesta
matéria, a menor reciprocidade. E criam embaraços para o Estado na
eficaz defesa do País contra a subversão.
Não é
realmente cambaia, perigosamente cambaia, esta "presença crítica",
válida para a CC da CNBB em matéria de Estado, e negada absolutamente ao
Estado, em qualquer caso, desde que se trate de matéria da Igreja?