Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 25 de outubro de 1970

Perigosamente cambaia

A Comissão Central da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil realizou, há dias, uma vistosa reunião no Rio, para deliberar sobre a prisão de certo número de sacerdotes e de leigos filiados à JOC, bem como a organizações católicas congêneres. O resultado das deliberações então levadas a cabo pelos cardeais, arcebispos e bispos presentes à reunião foi um comunicado, publicado com destaque por toda a imprensa do Brasil.

No presente artigo, não vou tratar das prisões, mas do comunicado. Apresenta ele, ora jacente ora subjacente, uma concepção tão singular do que devam ser, em concreto no Brasil de hoje, as relações entre o poder espiritual e o temporal, que se os signatários do manifesto tomam a sério as palavras que formularam em ocasião tão solene, temos para breve o que todos nós desejamos tanto e tanto evitar, isto é, um choque entre o Episcopado (ou, pelo menos, a parte mais altamente colocada dele) e o Estado.

Com efeito, verá o leitor que os ilustres signatários do manifesto entram tão a fundo na seara do Estado, no que diz respeito aos assuntos sócio-econômicos da atualidade, e de tal maneira cerram a este qualquer possibilidade de tomar posição face aos aspectos espirituais, que daí resulta uma flagrante falta de reciprocidade. Ora, como se sabe, a reciprocidade é a condição básica de toda relação normal, tanto entre grupos como entre instituições privadas ou públicas.

Como se verá, o erro de perspectiva que levou a CC da CNBB a posição tão cambaia resultou de que, ao tratar de suas próprias atribuições na esfera temporal, deu-lhes toda a amplitude que pode assumir, a título excepcional, em um Estado mal governado e trabalhado por uma crise mortal, ou quase tanto. Pelo contrário, ao considerar as atribuições do Estado na apreciação de certos fatos da vida religiosa do País, concebeu-as como se a Igreja estivesse perfeitamente governada, e nela não lavrasse a menor crise. Não é difícil prognosticar que - a manter-se a CC episcopal nessa posição pessimista no que diz respeito ao Estado, e ingenuamente otimista no que diz respeito à Igreja - as relações entre esta e aquele se basearão em pressupostos falsos, que só podem levar ao desentendimento.

* * *

Ouçamos a CC: "Ao reconhecer, no desenvolvimento econômico e social do Brasil, as realizações do governo, a Comissão Central encarece, entretanto, que a promoção do homem em suas várias implicações, objetivo assumido pelo governo em seus documentos oficiais, deve ser plenamente assegurada em todos os escalões de sua organização política e administrativa. Tal objetivo não é alcançado quando, para eliminar o terrorismo subversivo e aviltante, cuja maior vítima é o próprio povo, a exacerbação de uma justa preocupação pela segurança nacional gera um clima de crescente insegurança. O terrorismo da subversão não pode ter como resposta o terrorismo da repressão. Renovamos nossa firme condenação ao comunismo. Forma inegável, entretanto, de fomentá-lo, é impedir a ação da Igreja, deturpar sua imagem, truncar sua doutrina, cercear sua atividade, difamar e caluniar seus pastores."

Em linguagem mais simples e direta tudo isto quer dizer que os bispos elogiam o êxito alcançado pelo governo na luta pelo desenvolvimento, porém protestam, em nome desse mesmo desenvolvimento, contra o que qualificam de "clima de crescente insegurança", de "terrorismo de repressão" anticomunista etc.

Não entro na objetividade dos fatos alegados pelos prelados. Consideradas suas palavras em princípio, sinto não pequena estranheza. Pois se os prelados falassem em nome da justiça e caridade - da moral cristã, em suma - ninguém poderia alegar que se puseram fora de sua seara. Mas em nome do desenvolvimento... Não direi que a coisa esteja errada. Mas ela exige precisões, cuja omissão falseia deploravelmente as perspectivas em que eles se põem.

Sem dúvida, a Igreja como Mestra e Mãe que é, não pode manter-se indiferente ao desenvolvimento temporal dos povos. Isto não obstante, é preciso que os dignitários eclesiásticos jamais percam de vista pertencer tal desenvolvimento à missão específica do Estado. E que o papel da hierarquia eclesiástica consiste, normalmente, em auxiliar o esforço desenvolvimentista do Estado, em dar de quando em vez alguma sugestão amiga, jamais porém impor ao Estado qualquer coisa em nome do desenvolvimento.

Causa assim estranheza ver os membros do órgão supremo da CNBB se porem na posição de tutores do desenvolvimento, dirigindo críticas manifestas e até algum tanto sarcásticas ao poder temporal, cujo êxito desenvolvimentista entretanto reconhecem.

Outro aspecto surpreendente do texto citado diz respeito à luta do Estado contra a subversão. Sentiram os signatários do manifesto a necessidade de se afirmarem enfaticamente contrários ao comunismo. Logo em seguida entram a alegar excessos na repressão do Estado contra o comunismo. Nesta atitude falta algo.

Com efeito, ao falar do desenvolvimento, o comunicado elogia por suas benemerências, e ataca por suas alegadas lacunas, o poder público temporal. Por simetria, ao falar da repressão ao comunismo, deveria o comunicado elogiar a repressão anticomunista em si, e protestar contra os exageros. Não, porém. O comunicado não tem uma palavra de elogio claro e formal da repressão ao comunismo. Deste só fala para lhe apontar defeitos. Não é estranha esta omissão?

Mas, objetaria alguém, ao se proclamarem anticomunistas, os senhores membros da CC não se declaram implicitamente favoráveis à repressão anticomunista?

Seria muito fácil de contentar, quem respondesse pela afirmativa. De fato, embora a CC da CNBB declare condenar o comunismo, essa condenação tem, na esfera religiosa, uma repercussão quase exclusivamente platônica. Onde estão os pastores e os sermões anticomunistas que se ouviam tanto outrora... quando o comunismo constituía um perigo remoto? Onde as medidas canônicas de profilaxia anticomunista, próprias a fazer cessar a infiltração comunista na Igreja? Se formos otimistas, diremos que de tudo isto não se vê quase nada.

Assim, não é de espantar que esses prelados não aplaudam as medidas anticomunistas do governo, e só tenham voz para, nesta matéria, alegar exageros.

E a carência de aplausos da CC episcopal neste ponto equivale a uma indisfarçável censura ao Estado.

Em outros termos, no tópico citado, temos a tristeza de ver a CC da CNBB interferir a fundo - e contramão - nos assuntos de Estado, como para salvar do caos um país mal governado e em crise. É o que chamam, pouco abaixo do texto citado, sua "presença crítica" na realidade sócio-econômica nacional. Vejamo-los agora, que fecham as portas ao poder temporal, excluindo qualquer "presença crítica" deste em matéria normalmente privativa da Igreja.

* * *

Dizem os prelados: "No julgamento do que é realmente conforme ao Evangelho e à sua aplicação, os bispos do Brasil não admitem transferir as responsabilidades que lhes cabem por mandato divino."

Em princípio, "beníssimo". Não, porém, sem reservas. A linguagem deste tópico sugere a impressão de que jamais, em tempo algum, um fiel pode pôr em dúvida a ortodoxia de um bispo. E que este é, em sua diocese, supremo e único juiz em matéria de fé.

Ainda aqui, não quero dizer que assim pensam os membros da CC da CNBB. Entretanto, claro está que sua redação é infeliz. Pois o episcopado de um país não é - por si só - infalível.

-- Mas passemos a outro aspecto do texto episcopal.

Já que o comunicado trata das relações presentes entre a Igreja e o Estado, segundo toda a evidência, é para o Estado que se dirige a advertência nele contida.

Ora, imaginemos um fato. Um magistrado deve julgar alguém por crime de atividades subversivas. Entre as provas, figuram documentos com palavreado comuno-cristão. O promotor declara que os escritos são subversivos. O advogado da defesa alega que não, que são o mais puro leite da doutrina católica. E como prova, junta um certificado do bispo tal, afirmando que o documento é realmente ortodoxo. O que deve fazer o magistrado? Segundo os membros da CC da CNBB, deve admitir cegamente que o bispo tem razão. E declara nula a prova da culpabilidade.

Pergunto ao leitor: acha que isto é cabível nas condições concretas, tão tristemente excepcionais, do Brasil de hoje?

* * *

Em conclusão, os textos citados do comunicado reivindicam para os bispos o poder de intervir largamente na seara do Estado, e não admitem, nesta matéria, a menor reciprocidade. E criam embaraços para o Estado na eficaz defesa do País contra a subversão.

Não é realmente cambaia, perigosamente cambaia, esta "presença crítica", válida para a CC da CNBB em matéria de Estado, e negada absolutamente ao Estado, em qualquer caso, desde que se trate de matéria da Igreja?


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