Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

Folha de S. Paulo, 6 de setembro de 1970

A "esperteza da confiança"

Junto, bem junto à mesa do restaurante ocupada por vários de nós, da TFP, havia outra mesa na qual, inteiramente absortos, conversavam dois homens. Eram estes profundamente diferentes um do outro.

Um deles, de 50 para 60 anos, era alto, corpulento, rosado, de um louro claro que ia passando para o grisalho. Comia com o apetite de um jovem, bebia copiosamente, falava alto e com grandes gestos. Seria provavelmente algum abastado turista escandinavo, distendido e otimista. A alturas tantas, declarou-se simpático à esquerda de seu país.

O outro interlocutor, aparentando seus 30 anos, era um brasileiro de estatura media, moreno, reservado e pensativo. Comia pouco, bebia pouco, e estava profundamente atento a tudo quanto ouvia.

O escandinavo, do gênero dos próceres políticos que à mesa se iluminam, se expandem, e gostam de ouvir o tom da própria voz, falava aos borbotões. O tema era o futuro apoteótico que está preparado para a Europa e o mundo.

"O meu jovem amigo verá: a ponte que Willy Brandt lançou ente Ocidente e Oriente, abriu para o mundo perspectivas grandiosas. As barreiras econômicas entre o Oeste e o Leste vão ruir. Os capitalistas europeus poderão aplicar milhões e milhões de dólares na União Soviética, incrementando a produção desse país e atraindo, para a circulação mundial das riquezas, os tesouros incalculáveis que, na Rússia, jazem inaproveitados. Já a Daimler-Benz, em colaboração com a Peugeot e a Fiat, pensa em instalar em território soviético a maior fábrica de caminhões do mundo".

"Então, disse o jovem, surgirá por fim a ocasião para se derrubar o comunismo. É uma contrapartida que se pode exigir!"

"Não, as coisas não correm tão depressa assim. Se o Ocidente intervir na política russa, poderá causar susceptibilidades. E isto só servirá para atrapalhar os negócios. Ora, o que desejamos acima de tudo é fazer negócios. Trata-se, pois, de dar desde logo aos soviéticos uma robusta prova de nossa confiança e boa vontade. É preciso que sintam que nada têm a temer de nós. Captando-lhes assim a simpatia e a gratidão, afastá-lo-emos das idéias de guerra, provocada pela rigidez e a incompreensão de certos políticos do Ocidente."

"E o comunismo, esse continua? Indagou o jovem".

"Em rigor, talvez não continue. É de se esperar que, ricos, distendidos, gratos, os russos vejam com olhos imparciais as vantagens que o capitalismo lhes pode proporcionar. Quando isto se der, os dias do comunismo talvez estejam contados. Mas, meu rapaz, para alcançar este resultado, é preciso ser esperto e moderno: conquistar os outros com provas de amizade, e, pois, com largas concessões" Ao dizer isto, o escandinavo se iluminou com um largo sorriso malicioso.

"Então, disse-lhe o outro, para o senhor tudo se resolve em termos de coração e dinheiro?"

"Não, isto não. O cérebro também tem uma parte nisto. A aproximação econômica traz o intercâmbio cultural. Permutaremos técnicos, professores, propagandistas. Desfeitos os exércitos da NATO e do Pacto de Varsóvia, e arrasada a cortina de ferro, haverá um fluxo enorme de russos a viajar pela Europa Ocidental, como de europeus viajando pela Rússia. Dos Urais até o Tejo, a Europa será uma família só. De lado a lado, os preconceitos desaparecerão. Os russos verão como nosso sistema é superior ao deles, e acabarão por mudar algumas de suas idéias. Nós talvez também aprendamos algo com eles. Eles retrocederão um tanto no caminho. Nós evoluiremos um tanto até eles. Será um arranjo ótimo. Meu rapaz, repito: é preciso ser esperto".

"Mas então as barreiras militares também cairão?"

"Como pode você imaginar uma política de conciliação, se as barreiras militares subsistem? Podem dois homens abraçar-se quando ambos estão de revolver em punho?"

O jovem conservava uma aparência calma. Mas por debaixo da mesa se via que agitava nervosamente um dos pés. E objetou polidamente:

"O Senhor acha clara, disse ele, essa concatenação de causas e efeitos. E prevê, como elo dela, a queda ou o abrandamento do comunismo na Rússia. Suponha que, no Kremlin, onde não falta gente esperta, os chefes não queiram saber desse abrandamento...."

O escandinavo lhe cortou a palavra:

"Então, cairão irremediavelmente. Porque no mundo novo não haverá lugar para os rígidos".

"Neste caso, redargüiu o jovem, imagine que esses "rígidos", prevendo a sua possível derrubada, desenvolvessem uma política em dois tempos. No primeiro tempo, eles se encheriam tanto quanto possível com o dinheiro e as fábricas fornecidas pelos capitalistas. E contemplariam risonhos o desfazimento da NATO, bem como a retirada das tropas americanas. No segundo tempo – isto é, até o momento exato em que começassem a sentir o solo ligeiramente abalado debaixo dos pés – eles invadiriam a Europa desprotegida. O ouro dela, as fábricas, os técnicos tudo, enfim, teria servido aos comunistas para preparar a invasão..."

O escandinavo acabava de pagar a conta. Pôs-se de pé, rubro de cólera, e redargüiu doutoralmente:

"Você não entende nada. A política do futuro é mil vezes mais esperta do que a de todos os maquiaveis do passado. Ela se funda na bondade, na boa fé, na confiança. Quem dá o primeiro passo na confiança é o mais esperto, e obtém infalivelmente, como recíproca, a confiança da outra parte. Confiar, confiar e confiar, essa é a nova esperteza dos homens novos destes tempos novos. É o que pensamos nós, os do Partido Socialista norueguês".

O mais jovem ouviu a longa tirada. E depois, entre mordaz e desdenhoso, limitou-se a responder:

"O fato é que, se os soviéticos não praticarem a sua "esperteza da confiança", a partida será inexoravelmente ganha por eles. E a culpa será dos que pensam como o senhor".

* * *

Em nossa mesa, de há muito ouvíamos todos em silêncio. Quando o jovem respondeu, irrompeu, no meio de nós, uma gargalhada, a maneira de estrepitoso aplauso. Um dos nossos, mineiro, perguntou ao jovem de onde era. "De Minas", respondeu ele. – Como um arco voltaico, estabelecera-se entre eles um intercâmbio de simpatia. No mutuo sorriso, celebravam a vitória sobre a "esperteza da confiança".


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