Folha de S. Paulo,
6 de
setembro de 1970
A
"esperteza da confiança"
Junto, bem junto à mesa do restaurante ocupada por vários de nós, da
TFP, havia outra mesa na qual, inteiramente absortos, conversavam dois
homens. Eram estes profundamente diferentes um do outro.
Um
deles, de 50 para 60 anos, era alto, corpulento, rosado, de um louro
claro que ia passando para o grisalho. Comia com o apetite de um jovem,
bebia copiosamente, falava alto e com grandes gestos. Seria
provavelmente algum abastado turista escandinavo, distendido e otimista.
A alturas tantas, declarou-se simpático à esquerda de seu país.
O
outro interlocutor, aparentando seus 30 anos, era um brasileiro de
estatura media, moreno, reservado e pensativo. Comia pouco, bebia pouco,
e estava profundamente atento a tudo quanto ouvia.
O
escandinavo, do gênero dos próceres políticos que à mesa se iluminam, se
expandem, e gostam de ouvir o tom da própria voz, falava aos borbotões.
O tema era o futuro apoteótico que está preparado para a Europa e o
mundo.
"O
meu jovem amigo verá: a ponte que Willy Brandt lançou ente Ocidente e
Oriente, abriu para o mundo perspectivas grandiosas. As barreiras
econômicas entre o Oeste e o Leste vão ruir. Os capitalistas europeus
poderão aplicar milhões e milhões de dólares na União Soviética,
incrementando a produção desse país e atraindo, para a circulação
mundial das riquezas, os tesouros incalculáveis que, na Rússia, jazem
inaproveitados. Já a Daimler-Benz, em colaboração com a Peugeot e a
Fiat, pensa em instalar em território soviético a maior fábrica de
caminhões do mundo".
"Então, disse o jovem, surgirá por fim a ocasião para se derrubar o
comunismo. É uma contrapartida que se pode exigir!"
"Não,
as coisas não correm tão depressa assim. Se o Ocidente intervir na
política russa, poderá causar susceptibilidades. E isto só servirá para
atrapalhar os negócios. Ora, o que desejamos acima de tudo é fazer
negócios. Trata-se, pois, de dar desde logo aos soviéticos uma robusta
prova de nossa confiança e boa vontade. É preciso que sintam que nada
têm a temer de nós. Captando-lhes assim a simpatia e a gratidão,
afastá-lo-emos das idéias de guerra, provocada pela rigidez e a
incompreensão de certos políticos do Ocidente."
"E o
comunismo, esse continua? Indagou o jovem".
"Em
rigor, talvez não continue. É de se esperar que, ricos, distendidos,
gratos, os russos vejam com olhos imparciais as vantagens que o
capitalismo lhes pode proporcionar. Quando isto se der, os dias do
comunismo talvez estejam contados. Mas, meu rapaz, para alcançar este
resultado, é preciso ser esperto e moderno: conquistar os outros com
provas de amizade, e, pois, com largas concessões" Ao dizer isto, o
escandinavo se iluminou com um largo sorriso malicioso.
"Então, disse-lhe o outro, para o senhor tudo se resolve em termos de
coração e dinheiro?"
"Não,
isto não. O cérebro também tem uma parte nisto. A aproximação econômica
traz o intercâmbio cultural. Permutaremos técnicos, professores,
propagandistas. Desfeitos os exércitos da NATO e do Pacto de Varsóvia, e
arrasada a cortina de ferro, haverá um fluxo enorme de russos a viajar
pela Europa Ocidental, como de europeus viajando pela Rússia. Dos Urais
até o Tejo, a Europa será uma família só. De lado a lado, os
preconceitos desaparecerão. Os russos verão como nosso sistema é
superior ao deles, e acabarão por mudar algumas de suas idéias. Nós
talvez também aprendamos algo com eles. Eles retrocederão um tanto no
caminho. Nós evoluiremos um tanto até eles. Será um arranjo ótimo. Meu
rapaz, repito: é preciso ser esperto".
"Mas
então as barreiras militares também cairão?"
"Como
pode você imaginar uma política de conciliação, se as barreiras
militares subsistem? Podem dois homens abraçar-se quando ambos estão de
revolver em punho?"
O
jovem conservava uma aparência calma. Mas por debaixo da mesa se via que
agitava nervosamente um dos pés. E objetou polidamente:
"O
Senhor acha clara, disse ele, essa concatenação de causas e efeitos. E
prevê, como elo dela, a queda ou o abrandamento do comunismo na Rússia.
Suponha que, no Kremlin, onde não falta gente esperta, os chefes não
queiram saber desse abrandamento...."
O
escandinavo lhe cortou a palavra:
"Então, cairão irremediavelmente. Porque no mundo novo não haverá lugar
para os rígidos".
"Neste caso, redargüiu o jovem, imagine que esses "rígidos", prevendo a
sua possível derrubada, desenvolvessem uma política em dois tempos. No
primeiro tempo, eles se encheriam tanto quanto possível com o dinheiro e
as fábricas fornecidas pelos capitalistas. E contemplariam risonhos o
desfazimento da NATO, bem como a retirada das tropas americanas. No
segundo tempo – isto é, até o momento exato em que começassem a sentir o
solo ligeiramente abalado debaixo dos pés – eles invadiriam a Europa
desprotegida. O ouro dela, as fábricas, os técnicos tudo, enfim, teria
servido aos comunistas para preparar a invasão..."
O
escandinavo acabava de pagar a conta. Pôs-se de pé, rubro de cólera, e
redargüiu doutoralmente:
"Você
não entende nada. A política do futuro é mil vezes mais esperta do que a
de todos os maquiaveis do passado. Ela se funda na bondade, na boa fé,
na confiança. Quem dá o primeiro passo na confiança é o mais esperto, e
obtém infalivelmente, como recíproca, a confiança da outra parte.
Confiar, confiar e confiar, essa é a nova esperteza dos homens novos
destes tempos novos. É o que pensamos nós, os do Partido Socialista
norueguês".
O
mais jovem ouviu a longa tirada. E depois, entre mordaz e desdenhoso,
limitou-se a responder:
"O
fato é que, se os soviéticos não praticarem a sua "esperteza da
confiança", a partida será inexoravelmente ganha por eles. E a culpa
será dos que pensam como o senhor".
* * *
Em
nossa mesa, de há muito ouvíamos todos em silêncio. Quando o jovem
respondeu, irrompeu, no meio de nós, uma gargalhada, a maneira de
estrepitoso aplauso. Um dos nossos, mineiro, perguntou ao jovem de onde
era. "De Minas", respondeu ele. – Como um arco voltaico, estabelecera-se
entre eles um intercâmbio de simpatia. No mutuo sorriso, celebravam a
vitória sobre a "esperteza da confiança".