Folha de S. Paulo,
27 de
setembro de 1970
Muralha Chinesa
"Dr.
Plinio: já que, há cerca de um mês, o sr. concedeu tanto espaço de
seu artigo na "Folha", às reflexões e objeções de um leitor
talvez anônimo, o sr. Jeroboão Cândido Guerreiro, peço-lhe que não seja
menos generoso com esta minha carta.
-
"Sou um anônimo? — Em termos. Eu sou, porque não assinarei minha carta.
Para o grande público, também seria um anônimo ainda que a assinasse,
pois apliquei todas as minhas energias no setor da produção, onde tenho
obtido resultados polpudos para o País... e para mim (porque não o
reconhecer, já que, como o sr. ponderou em seu último artigo, se trata
de ganho honesto?). E, nessa faina, não houve ocasião nem vantagem para
que eu projetasse o meu nome para o público, do qual sou um servidor
desconhecido. — Serei um anônimo para o sr.?. — Em certo sentido não,
porque se eu assinasse esta carta, o sr. veria que somos velhos
conhecidos. Mas preferi não me dar a conhecer ao sr.
"A
razão disto é simples. Conheço sua gentileza, misto "sui generis" de
afabilidade hodierna e cerimoniosidade "Ancien Régime". O sr. teria, sem
dúvida, a gentileza de publicar a carta com meu nome. E eu sairia a
público, pela primeira vez, como objetante. — Objetante ao sr.! Isto,
para muitos de seus leitores soa quase como protestante. E assim não
quero.
"Vamos ao fato, Dr. Plinio. O sr. não pensa que TFP está fazendo
algazarra demais a propósito de Frei e da Democracia Cristã chilena?
"Vá
lá que, tendo sua organização obtido um belo triunfo (o sr. vê que não
sou "sapo"...) com o livro vitorioso de Fábio Vidigal Xavier da
Silveira, "Frei, o Kerensky chileno", a TFP tenha querido celebrar o
fato com uma campanha de rua. Vá lá, ainda, que o sr. tenha escolhido,
como pretexto para essa celebração, uma campanha de esclarecimento e
protesto quanto ao que ocorre no Chile. Entre parêntesis, dou-lhe
parabéns pelo seu magnífico artigo-manifesto, claro, atraente,
irrespondível (o sr. vê que não sou pedecista...). Vá lá, por fim, que a
TFP tenha aproveitado para reeditar o livro do sr. Fábio. Mas, enfim,
não está durando demais essa algazarra toda?
"O
perigo resultante da eleição de Allende se circunscreve ao Chile, do
qual nos separam os Andes e o Rio da Prata. Entre nós, ele só serve para
suscitar entusiasmos rancores e discussões sem fim. E nada menos
oportuno.
"A
meu ver, o Brasil precisa, isto sim, de sepultar as disputas ideológicas
e estimular o trabalho. Voltadas todas as atenções e todas as energias
para a produção, esta aumenta. Assim, avançam as fronteiras da fartura e
se encolhem as da miséria. O homem bem nutrido, bem instruído e de saúde
bem cuidada, não é, não pode ser um revoltado. A agitação e a
contestação sumirão então, como uma mecha que se apaga por falta de
oxigênio. E tudo se resolverá por si. O Brasil atravessará incólume a
crise universal e, no raiar da idade Nova, será uma das maiores
potências do século XXI.
"Se
assim é, não seria melhor acabar com sua campanha?
"Não
se zangue, Dr. Plinio, mas levo mais longe minha pergunta. Não seria
melhor desviar para a produção econômica o tempo e o talento que os srs.
da TFP, gastam numa ação ideológica?
"Se
tudo pode ser resolvido pela economia, fazer ação ideológica me parece
sem alcance prático. Algo como, à vista de um incêndio, fazer poesia
sobre o pungente da tragédia, em lugar de pegar umas boas mangueiras de
água e liquidar o sinistro.
"Deixe o Chile resolver os problemas do Chile. E os brasileiros que
cuidem de enriquecer o Brasil.
"Sei
de muita gente que pensa assim.
" — O
sr. não? não? E mesmo depois desta argumentação?"
- Meu
caro semi-anônimo: se e quando me escrever de novo, poupe seu tempo, e o
meu, dissertando menos sobre seu anonimato. Não quis cortar nada de sua
carta, para não lhe dar a idéia de ter querido esconder aos leitores os
seus dotes literários. Mas já que, com um semi-anônimo, se pode ser
apenas semicerimonioso, feita a gentileza de publicar seu texto na
íntegra, digo-lhe, muito sem cerimônia, que toda a sua introdução
interessa pouco. O sr. poderia ter ido logo ao fato. É o que de minha
parte, farei.
Impressiona-me, no sr., e nos que como o sr. pensam, o anacronismo. Os
srs. refletem e falam como se estivéssemos na era da muralha chinesa. Os
srs. pretendem circunscrever nosso querido Brasil com uma imensa muralha
de fartura, e assim preservá-lo dos furacões e dos terremotos que
sacodem, de ponta a ponta, nosso planeta. Uma muralha chinesa feita de
dólares... — Que prático, não? Que simples, não?
Sim,
muito simples. Mais do que isto, perfeitamente simplório. Na época da
televisão, do rádio, do avião etc., pensar que se circunscreve com uma
muralha — seja ela de dólares — qualquer canto da terra! Mas, meu
anônimo: isto não é perfeitamente ingênuo?
Não
nego que a pobreza favorece a subversão, e que, portanto, o
desenvolvimento cria condições — valiosas aliás — para a profilaxia da
ordem. Daí, porém, a dizer que o desenvolvimento basta, só por si, para
evitar a contestação, a agitação, o caos em que se afundam as sociedades
de nossos dias, que ilusão!
Na
realidade, basta que o sr. deite os olhos nos Estados Unidos, para que
perca qualquer ilusão a esse respeito. A terra do dólar, não está ela
abalada, desorientada, desnorteada e cambaleante, em virtude das
pressões, das agitações e das labaredas que surgem de seu próprio solo?
Dirá
o sr. que há pobres lá, e que são eles que protestam. Seja concreto. O
sr. acha, por exemplo, que os "hippies" são, em geral, filhos de
famílias pobres? Não são, antes, filhos de famílias abastadas? E então?
Seja
como for, se todos os dólares dos EUA não bastam para os defender da
subversão, e se só nos dólares é que está a salvação, quer dizer que a
muralha de dólares de que o sr. quer rodear o Brasil tem de representar
uma riqueza, duas, três ou mais vezes maior do que a americana.
Pergunto-lhe: quanto tempo levarão, o sr. e seus congêneres, para
produzir isto? E esperam os srs. que até lá as ideologias malsãs vão
ficar dormindo num sono letárgico, à espera de que os srs. tenham
concluído sua muralha chinesa, para só depois investir contra ela?
Uma
palavra ainda, por fim, sobre ideologia. — O sr. que quer pôr de lado
todo o esforço ideológico, para combater a subversão, sabe que é um
subversivo? Sim se não um comunista, pelo menos um comunistóide?
Pois
é. Colocar a economia como centro e base de tudo, fazer resultar todos
os acontecimentos da História, só de causas econômicas, julgar que o
homem se dirige exclusivamente pela fome ou pela fartura: tudo isto é
materialismo, e do mais puro, é a medula do comunismo.
O
sr., homem abastado, sem fome e sem idéias, foi infiltrado pelo mal que
julgava remediar.
Meu
caro: produza, trabalhe, eu o aplaudo de coração. Não imagine, porém,
que do seu ouro depende a humanidade, e que a missão da doutrina, da
inteligência e do ideal morreram neste mundo.
Não é
verdade. E seria triste, feio demais que o fosse.
Desculpe-me o agastamento da resposta. Mas, realmente, se sua
operosidade é muito digna de aplauso, sua muralha chinesa agasta.
Pois,
pelo menos isto, no meio da luta, poderia nos ser poupado: a tarefa
fácil, prolixa e sem graça, de provar que as muralhas chinesas e os
dólares já não resolvem nada nos dias que correm.