Folha de S. Paulo,
9 de
agosto de 1970
Para
300 argentinos... e milhões de brasileiros
Resumo em alguns itens a longa cantilena de insucessos do ditador
cubano. Ao celebrar o 17º aniversário do assalto ao quartel de Moncada,
declarou ele que:
1 —
Cuba não atingirá a safra açucareira espetacular, para cuja obtenção
haviam sido sujeitos trabalhos forçados na lavoura homens e mulheres das
cidades, e mobilizados todos os recursos disponíveis da ilha;
2 —
Concomitantemente, baixara a produção de cigarros e charutos;
3 — A
culpa destes insucessos era em parte dele, e em parte dos ministros e do
funcionalismo subalterno;
4 —
Por isto, andava irritada contra ele a população; tão fundo era esse
descontentamento que Fidel chegou a falar em demissão.
Falando dias depois pelo rádio e televisão, o ministro do Trabalho
cubano deu alguns pormenores sobre as causas do fracasso fideliano:
1 —
Uma sensível desproporção entre os planos do governo e o potencial
humano do país;
2 —
Insuficiência de mecanização;
3 —
Técnicas obsoletas de muitos trabalhadores rurais;
4 —
Baixa produtividade dos operários empregados na construção civil;
5 —
Pesados gastos para a defesa da ilha.
Resultado global, proclamado pelo próprio Fidel Castro: a população
cubana terá que suportar agora mais 5 anos de racionamento e
austeridade. Em termos menos acadêmicos, mais 5 anos de penúria e de
trabalhos forçados.
Tudo
isto posto, ninguém há que possa contestar a validade destas duas
afirmações:
1 — O
governo cubano é de uma incompetência flagrante. Adota planos para os
quais lhe faltam recursos humanos e técnicos indispensáveis. E segue uma
política exterior que obriga o país a gastos militares insustentáveis;
2 — O
regime padece das taras inseparáveis de todas as formas de socialismo.
Suprimindo o estímulo do lucro pessoal, torna moroso e improdutivo o
trabalho, e desfibra as energias produtivas do povo.
Os
fatos aqui narrados, meus leitores já os viram no noticiário cotidiano
da imprensa. As reflexões que acabo de enunciar, eles certamente também
já as fizeram. Pois resultam obviamente dos fatos. Recapitulo aqui tudo
isto, não para lhes ajudar a memória ou a análise do ocorrido, mas para
os convidar a fazer um teste.
* * *
Consiste o teste no seguinte. Ponha meu leitor sob os olhos de um
progressista o quadro da realidade cubana, que acabo de traçar. Em
seguida pergunte-lhe o que pensa a respeito. Pela resposta, meu leitor
ficará sabendo o que deve por sua vez pensar do progressista.
É
fácil conceber o interesse de tal investigação. Com efeito, na figura
que todo progressista projeta de si mesmo, a nota tônica é a compaixão
pelos pobres, explorados por um sistema e uma classe a quem ele culpa
por todas as injustiças possíveis e imagináveis. Em conseqüência, o
progressista quer demolir tanto o sistema quanto a classe, para
estabelecer a justiça e obter remédio para a miséria dos pobres.
Pense-se o que se pensar dessa posição — e eu, por exemplo, discordo
inteiramente dela — a pena dos pobres merece indiscutivelmente simpatia.
É mesmo o único traço simpático do progressismo. Traço simpático que,
aliás, existe na psicologia do progressista, com dois matizes
antipáticos. Um é a idéia de que a pena do pobre é um privilégio do
progressismo. Só ele a tem. E quem, fora das fileiras progressistas,
afirma seu desejo de socorrer os pobres, é charlatão ou fariseu. O outro
traço antipático é a negação rotunda do muito que, em todas as eras de
sua História, antes mesmo de terem nascido Marx, Lenine, D. Helder e os
padres de passeata, a Igreja fez pelos pobres.
Mas
deixemos de lado estes matizes antipáticos, e fiquemos na pena dos
pobres. Esta — legado longínquo e laicizado da civilização cristã — é
simpática.
Isto
posto, pergunto: até que ponto é ela genuína?
* * *
Explico-me. Quem, por pena dos pobres, quer arrasar o atual regime
sócio-econômico, deve estar disposto a arrasar qualquer outro regime que
crie e multiplique a pobreza. Pois se a existência de pobreza é a razão
por que os progressistas odeiam nosso regime, devem odiar todo outro
regime que também favoreça a pobreza.
Então, meu leitor ou minha amável leitora, se o progressista a quem for
mostrado este artigo, lendo o fracasso de Fidel, se encher de
indignação, e propuser contra o ditador barbudo e seu sistema todas as
medidas que põe em ação contra nosso atual regime, esse progressista
realmente deseja o alívio dos pobres. Se o progressista não se indignar
contra Fidel exatamente como contra nosso regime, então a conclusão é
clara: o alívio dos pobres não é para ele uma meta. É um pretexto.
Isto
ainda mais claro se tornará, se o progressista, em lugar de se indignar
com Castro, se enche de furor contra a minha argumentação tão simples,
tão lógica, tão irrecusável.
* * *
Mas,
dirá alguém, o progressista que não responda favoravelmente ao teste, o
que é? Um tartufo?
--
Não digo que seja forçosamente isto. Muitas vezes — consciente ou
subconscientemente — o progressista é um socialista ou comunista que
teme de se declarar tal aos seus olhos e aos dos outros. Odiando todas
as desigualdades, mesmo as mais justas, necessárias e harmônicas,
simplesmente porque são desigualdades, aspira ao socialismo — ou ao
comunismo — só para criar uma sociedade de iguais. A pobreza — que
infelizmente existe aqui e acolá, e que devemos eliminar em toda a
medida do possível — é para ele o pretexto e não o motivo real da
indignação. Tanto é que, encontrando-a em uma sociedade de desiguais,
ele se indigna. Encontrando-a em uma sociedade de iguais (ou presumida
tal), ele não se indigna.
* * *
Escrevo estas considerações pensando em um apelo claro, enérgico,
respeitoso e profundamente cristão, que 300 católicos argentinos
publicaram em "La Nación" de Buenos Aires. Nesse apelo, rogam eles a
seus prelados que, abandonando as omissões e tergiversações
inexplicáveis, se pronunciem sobre o clero terrorista, adepto do chamado
Terceiro Mundo.
Por
cima das distâncias geográficas, mando a esses corajosos irmãos na fé e
no sangue ibérico um conselho. Digam a seus bispos que, se tiverem
qualquer dúvida sobre os móveis profundos dos progressistas que se
multiplicam em suas sacristias, examinem a posição deles a respeito de
Fidel Castro, esse sinistro fabricante de pobreza na ilha de Cuba. Os
que, lendo a súmula dos malefícios de Fidel, afiarem as garras contra
este, talvez sejam recuperáveis, pois move-os um sentimento de origem
cristã. Os outros — dói dizê-lo — já passaram o meridiano além do qual a
conversão costuma ser apenas um raro milagre da graça...
* * *
Mas,
dir-me-á quem me estiver lendo aqui no Brasil: — Por que não aplica o
senhor esse teste em sua própria pátria?
Respondo convidando o leitor a que o faça. Quem até agora, nos meios
progressistas atacou Castro pela multiplicação da pobreza em Cuba?
Atente o leitor para tantos silêncios untuosos e contrafeitos e
conclua...
Dom
Helder por exemplo, sempre tão loquaz, por que nada fala?