Folha de S. Paulo,
30 de
agosto de 1970
Divórcio sorrateiro ao apagar das luzes
Ao
distinto Presidente da Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, Sr.
José Bonifácio, e aos dignos deputados que integram a referida comissão,
enviei a 25 do corrente a seguinte carta:
"Apresentando a Vossas Excelências cordiais e atenciosos cumprimentos,
peço vênia para lhes expor algumas considerações da Sociedade Brasileira
de Defesa da Tradição, Família e Propriedade a respeito de um projeto de
lei da autoria do Sr. Deputado N. Carneiro — com parecer favorável do
Sr. Deputado Aldo Fagundes — ora em estudo na Comissão de Justiça.
"Nestas considerações, encontrarão Vossas Excelência, não apenas meu
pensamento individual, mas o da entidade a que tenho a honra de
presidir, e, pois dos seus sócios, e dos militantes que com ela
colaboram, constituídos em Seções, Subseções e Núcleos esparsos por todo
o território nacional.
"Mais
ainda. Estou certo de também ser aqui o porta-voz da imensa corrente de
simpatizantes que de Norte a Sul do país apoia a TFP, e notadamente dos
1.042.359 brasileiros que, em histórico abaixo-assinado, se
pronunciaram, no ano de 1966, contra a implantação do divórcio em nossa
legislação.
"Com
a notícia difundida, aliás escassamente pela imprensa, de que estava
tendo andamento aquele projeto do irredutível prócer divorcista Nelson
Carneiro, começou a opinião pública a se alvoroçar. E esse alvoroço
crescerá dia a dia, até pôr de sobressalto todo o país, pois este é
antidivorcista, e a propositura do Sr. Nelson Carneiro visa introduzir
duas novidades que os brasileiros têm por absolutamente inaceitáveis:
"1.
um casamento ‘diminutae rationis’, espúrio, envergonhado, de curto
alcance, e sorrateiro, a se alastrar ao lado do casamento legítimo, com
desdouro e prejuízo deste;
"2.
um divórcio também ‘diminutae rationis’, a minar — pelo simples fato de
existir — a família legítima, e a preparar o terreno para a aprovação do
divórcio radical e escancarado.
"Ora,
ambas essas inovações são frontalmente contrárias aos princípios básicos
da civilização cristã. E, país cristão como se ufana de ser, o Brasil
jamais lhes poderá dar seu consenso sem "ipso facto" romper com os
ensinamentos de Jesus Cristo.
"A
respeito dessa incompatibilidade do projeto Nelson Carneiro com a
doutrina católica dúvida não pode haver. E mesmo nesta hora de trágica
confusão em que se debate a Igreja — se o apoio de omissões e silêncios
inexplicáveis o projeto talvez encontre — não creio que uma só voz ouse
levantar-se para negar tal incompatibilidade.
* * *
"Falei de um casamento ‘diminutae rationis’.
"Com
efeito, a atribuição ao concubino, solteiro, desquitado ou viúvo, da
faculdade de autorizar a concubina a usar os apelidos dele, cria entre
um e outro uma situação que é como que a raiz quadrada, a miniatura do
estado conjugal.
"A
comunidade de nomes simboliza, pela própria natureza das coisas, união
inteira de personalidades, de afeto, de interesse e de vida. E por isto
foi sempre tida, nas mais variadas épocas, como conseqüência lógica e
característica do casamento.
"Permitir que a comunidade de nomes vincule um casal que vive em estado
de concubinato é, pois, reconhecer ao concubinato um sinal distintivo
daquilo que constitui um dos elementos fundamentais do casamento
‘diminutae rationis’, um ridículo ‘casamentinho’.
"Essa
impressão mais ainda se robustece quando consideramos outros aspectos do
referido projeto.
"Assim, não qualquer concubinato, que é contemplado pela regalia
imaginada pelo sr. Nelson Carneiro. É só o concubinato robustecido pelo
tempo, e que assim vai tomando ares de casamento.
"Ainda mais. Esse ‘casamentinho’ convidará necessariamente, mais cedo ou
mais tarde, à instauração de algum ato que lhe autentique o início, ato
esse celebrado possivelmente em presença do juiz de casamentos, ou pelo
menos inscrito no Registro público competente.
Pois
como marcar o termo inicial dos cinco anos a partir dos quais o
concubinato se ‘nupcializa’?
"Ao
lado disto, fica aberto o caminho para um ‘divorcinho’. Pois o ato de
desfazimento do concubinato pode comportar ou até impor a criação de
formalidades à medida que os tais ‘casamentinhos’ se multiplicarem, e
situações ambíguas e difíceis daí forem nascendo. É ingênuo imaginar que
‘à la longue’ tudo se passa dentro de nosso atual regime jurídico, com
mera comunicação (e nem por isso a propositura previu) de um dos
concubinos ao cartório competente, de que o concubinato cessou, e com
ele a comunidade de nomes...
"Em
um regime comunista, onde toda a ordem legal é arbitrária, e os direitos
individuais são débeis e cartilaginosos, aí sim, o ‘casamentinho’ não
traria maiores complicações. E isto explica que o ‘casamentinho’ e o
‘divorcinho’ do projeto Nelson Carneiro mais se parecem com o casamento
e o divórcio soviético do que com o casamento indissolúvel e o desquite,
como existem na legislação canônica e em nosso Código Civil.
* * *
"Isto
posto, confia a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade em que Vs. Excias., a quem incumbe proceder, na elaboração
das leis, segundo a mentalidade e a intenção do país, recomendarão ao
Plenário da Câmara dos Deputados a rejeição do projeto Nelson Carneiro.
"Tanto mais firme é, neste sentido, a esperança da TFP, quanto estando a
presente legislatura no apagar das luzes, tudo leva a crer que não
quererão os Srs. Deputados introduzir tão complexa e violenta alteração
no Direito Pátrio, mas preferirão deixar tal matéria sujeita à
apreciação de novo Plenário, portador dos desejos mais recentes da
população.
"O
normal para um deputado divorcista nas atuais condições seria tão
somente declarar ao público os seus propósitos divorcistas, e depois
aguardar o pronunciamento das urnas.
* * *
"Desse pronunciamento de todo o país, o Sr. Nelson Carneiro se mostra
muito apreensivo, e a justo título. Pois bem sabe que o Brasil é
antidivorcista. É daí que resulta evidentemente seu intuito de propor,
não o divórcio, mas o ‘divorcinho’. Ele quer abrir na legislação uma
brecha para o anão, na esperança de assim abalar a muralha e propiciar a
entrada do gigante.
"Assim, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade, consciente do patriotismo e confiante nas luzes dessa
Egrégia Comissão, pede a Vs. Excias. que defendam contra essa investida
a muralha sagrada da família cristã baseada na indissolubilidade do
casamento. e que se pronunciem contra o projeto Nelson Carneiro,
atentatório à Lei de Deus, a qual a nenhum poder terreno é lícito
ignorar, negar ou revogar.
"Nesta expectativa, e reiterando a Vs. Excias. o testemunho de meu
subido apreço, subscrevo-me, patrício e admirador."
Estas
são considerações que, através das colunas deste jornal, desejo também
levar ao conhecimento do largo e influente público que o lê.