Folha de S. Paulo,
24 de
maio de 1970
A
bengala e a laranja
Imagine o leitor que alguém lhe impusesse a tarefa de escrever um
artigo, provando que uma laranja e uma bengala são objetos diferentes.
Tal diferença, à força de ser óbvia, é indemonstrável. Para quem possui
visão normal, é só abrir os olhos e ver. Para quem não tem, do que
adianta argumentar?
A
insistência de certos setores em qualificar a TFP de nazi-fascista me
põe na contingência de provar, mais uma vez, que o nazi-fascismo está no
ponto antípoda da entidade que tenho a honra de presidir. O que é
exatamente tão embaraçoso quanto demonstrar que uma laranja não é uma
bengala.
Escritas estas linhas, penitencio-me delas. Pois a exasperação que
denunciam não está de acordo com a infatigável cortesia que o trato com
a opinião pública (e até com certos setores recalcitrantes dela) exige.
E, feito o ato de penitência, entro no assunto.
Logo
de início, entretanto, outro embaraço se põe em meu caminho. É que
tantas são as diferenças entre uma laranja e uma bengala, que sobre elas
se poderia escrever toda uma pequena enciclopédia. Do mesmo modo, entre
o nazi-fascismo e a TFP. Como, então, resumir o assunto em um artigo de
jornal? A única solução está em dar só alguns dos mil pontos de
discrepância que existem entre esta e aquele. E assim mesmo,
esquematicamente.
1.
Fundamentos doutrinários —
o nazismo se inspirava — como o comunismo aliás — no panteísmo de Hegel,
completado pelas elucubrações geopolíticas de Haushofer e pelo racismo
de Rosenberg. O fascismo se baseava no pensamento filosófico de Croce e
Gentile, o qual também remontava a Hegel.
Como
é natural, os erros de ambas as doutrinas foram condenados por Pio XI:
os do fascismo na Encíclica "Non abbiamo bisogno", e os do nazismo na
Encíclica "Mit brennender sorge".
A TFP
adere inteiramente à doutrina social católica, e portanto aos
pressupostos teológicos e filosóficos sem os quais esta não teria
sentido. Nada de mais oposto ao pensamento da TFP do que o hegelianismo.
Quanto ao racismo, basta ver agindo em rua nossos militantes brancos,
pretos e amarelos, para concluir que recusamos de todo em todo a
discriminação racial e as doutrinas pagãs de Rosenberg. Como pode então
a TFP ser tachada de nazi-fascista?
2.
Métodos de ação —
Tanto o nazismo quanto o fascismo promoviam um verdadeiro culto da
violência. A brutalidade de seus métodos, baseada na doutrina
berrantemente anticristã de Nietzche, se tornou legendária.
A TFP
jamais usou da violência. Seu método único e exclusivo é a persuasão,
por meio da ação ideológica. Há algo de mais diverso do nazi-fascismo?
As
repetidas agressões físicas e ameaças de terroristas e
comuno-progressistas contra a TFP têm forçado nossos sócios e militantes
a se defenderem com as táticas da defesa pessoal. Isto é nazi-fascismo?
São então nazi-fascistas todos os cidadãos que, em inteira conformidade
com a lei, aprendem ou ensinam defesa pessoal?
O
mesmo motivo tem levado a TFP — a conselho da Secretaria da Segurança
Pública de São Paulo — a requerer porte de armas para alguns sócios ou
militantes mais visados. Todo cidadão que requer porte de arma por se
sentir ameaçado é nazi-fascista?
Ainda
o mesmo motivo tem levado a TFP — sempre a conselho da Secretaria da
Segurança — a ter um serviço de vigilância noturna em suas sedes. Isto é
nazi-fascismo? São então nazi-fascistas os diretores de bancos que
promovem — e com quanta amplidão de meios — a defesa de seus
estabelecimentos?
É
nazi-fascista o governo federal que — segundo li em um jornal — acaba
até de autorizar os bancos do distrito Federal a terem guarda
paramilitar?
Em
última análise, é nazi-fascismo exercer o direito de legítima defesa? É
nazi-fascismo postar à noite um jovem, munido de uma arma com porte
legal, para defender contra um covarde atentado noturno seus
companheiros que dormem? O que seria no caso um absurdo: ter o vigia? Eu
penso que seria não o ter.
3.
Concepção do Estado —
Para o nazismo e o fascismo - coerentes com sua ideologia panteísta — o
indivíduo não é nada. E o Estado é tudo. Daí o caráter dirigista,
socialista e totalitário de um e de outro. Todo o dinamismo do corpo
social lhe vem de fora para dentro e de cima para baixo. Ou seja do
poder para a massa amorfa dos súditos. O Führer ou o Duce,
encarnação do Estado, decide tudo com base em comissões de tecnocratas.
O povo é movido a golpes de decretos-lei, e para os descontentes há a
perseguição, as sevícias e a morte.
Fiel
às encíclicas, a TFP proclama os princípios da organicidade social e da
subsidiariedade. E nada há de mais antitotalitário do que estes
princípios.
O
Estado, a província, o município, a família, as demais instituições
privadas formam uma hierarquia harmônica de poderes, que deve dirigir o
indivíduo segundo o princípio de subsidiariedade.
Segundo tal princípio, deve ser deixado a cada indivíduo toda liberdade,
exceto a do mal.
Dentro deste amplíssimo círculo de movimentos, a família só deve
intervir na vida do indivíduo para o apoiar, nos casos em que ele não se
baste a si próprio. E assim o município com a família. A província com o
município. E o Estado com a província. Como se vê, segundo este
princípio, a liberdade e a autoridade se aliam maravilhosamente. E a
ditadura é uma camisa de força injusta e asfixiante.
Quanto ao princípio da organicidade, é ele de algum modo um corolário do
de subsidiariedade. O impulso vital do país tem de vir de dentro para
fora e de baixo para cima. E não apenas de fora para dentro e de cima
para baixo. Os usos e costumes legítimos do povo devem ter força de lei.
Cada grupo social deve mover-se com a vitalidade proveniente de seus
componentes. E cada escalão do poder civil deve ser vivificado pela
seiva vinda dos escalões inferiores. Isto enriquece e completa, de modo
insubstituível, a ação específica do aparelho governamental.
Há
algo de mais diverso do dirigismo e do "chefismo" nazi-facista?
* * *
Que a
TFP assim pense, está documentado nos numerosos
livros tão largamente
difundidos por ela, no mensário de cultura "Catolicismo", e em meus
artigos para a imprensa diária.
Mais.
Já escrevi, e repito, que os dirigentes da TFP têm atrás de si um longo
passado de luta antinazi-fascista, que a seu tempo envolveu também o
integralismo. Também isto é coisa muito conhecida. Quem, entretanto,
queira provas, poderá ler a coleção do semanário oficioso da
arquidiocese de São Paulo,
"Legionário",
nos anos 1935 a 1943, em que o dirigi. Tenho essa coleção à disposição
de qualquer curioso.
* * *
Por
que então havemos de ser nazi-fascistas? Porque temos estandarte?
Quantas entidades por este mundo afora os têm. Por que nossos jovens, em
propaganda nas ruas, usam uma capa? É um recurso análogo aos de certas
propagandas comerciais moderníssimas. Depois, os nazistas e fascistas
usavam camisas características, e não capas. Pergunto se capa é camisa.
E se o uso de camisa típica fosse prova provada de que alguém é
nazi-fascista, então seria preciso concluir que os clubes de futebol são
nazi-fascistas.
Nada
de mais vão, pois, do que a tentativa de indispor a TFP com o povo,
alcunhando-a de nazi-fascista.
* * *
Perdoe o leitor a possível insipidez do artigo. Mas como escrever de um
modo interessante coisas interessantes, para provar que bengala não é
laranja?