Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

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Folha de S. Paulo, 10 de maio de 1970

Não encontrei título para este artigo

Quadro no qual ocorreram os fatos: uma aldeia com todas as características convencionais — praça central, rodeando uma graciosa matriz com vitrais coloridos, torre, sinos e relógio — fonte em frente à matriz — em torno, um casario modesto e confortável — em uma das ruelas vizinhas, a escola primária — outras ruelas que, todas, acabam se diluindo em um prado ameno e farto. A pouca distância, uma floresta sombria, de onde procedem com certa freqüência javalis furiosos e matilhas de lobos famintos.

Primeiro personagem: a professora, que ensina as crianças com delicadeza e paciência angélicas. Alta, esguia, modesta, despretensiosa.

Segundo personagem: a pastorinha, que sai ao romper da aurora, levando suas ovelhas para o prado. Adolescente, pura, afável, afeita ao isolamento e à oração.

Terceiro personagem: o caçador. Não se trata de um amador de caçadas, mas de um modesto funcionário municipal, a quem incumbe recrutar, nos momentos próprios, alguns vigorosos gajos da aldeia, e levá-los à floresta para dar rude combate aos animais nocivos. Tarefa difícil, que comporta extensas jornadas e também longas vigílias. Entre 20 e 30 anos. Robusto, decidido, todo modelado pela profissão. Pele queimada pelo sol e curtida pelo vento. Cabelama abundante e solta. Passo pesado. Aperto de mão rijo, dedos calosos. Pela manhã, é freqüente vê-lo que volta da faina.

 

 

Não raras vezes, vem trazendo aos ombros um animal morto, que ainda goteja sangue. Jovial. Delicadíssimo. Desde que se habituou à profissão, jamais um lobo penetrou na aldeia, nem um javali devastou as plantações. Quando ele atravessa a praça da matriz, as impressões que causa não são iguais. Uns simpatizam com sua alegre e juvenil coragem, com sua franqueza, seu porte varonil. E sentem segurança no contato com tão desempenado guardião. Outros, pelo contrário, se desagradam em vê-lo. Sua simples presença rompe a quietude e a harmonia do vilarejo, com a evocação de lutas e perigos que não é agradável lembrar. A rijeza de ânimo com que persegue, acua, fere e mata, tolda a visão de sua bondade de alma. Vê-lo carregando alegre algum despojo sangrento de sua bravia profissão suscita a impressão de que nenhum derramamento de sangue, mesmo de sangue humano, lhe custa. Em suma, ele parece a uns a personificação da varonilidade, da dedicação e da proeza. E a outros a própria imagem hedionda da luta, da violência e da guerra.

Quarto personagem: o bisavô. Tem todo o "physique du rôle" [físico próprio às atividades que desenvolve(u), n.d.c.]. Barbas brancas, olhos claros e encovados. Mãos magras e um pouco trêmulas. Uma ponta de surdez.

Quinto personagem: um agente de negócios aposentado. Entre 50 e 60 anos. Ligeiramente dado a obeso. Olhos pequenos, móveis, sagazes. Voz cheia de inflexões, ora retoricamente sonoras, ora pachorrentamente benévolas, ora cautamente sussurrantes. Viajou bastante, analisou muita coisa, enriqueceu um pouco. É o "boss" do lugar. Tem entrosagens sólidas nas principais cidades vizinhas. Por ele passam todos os cordéis decisivos, a ele recorrem todos à procura de conselhos nas situações graves, dele vêm tanto as notícias de fora como o comentário decisivo sobre os fatos da aldeia e da região.

Local do acontecimento: a taverna, pequena e cheia, onde a conversa se generalizou de mesa para mesa.

O tema: as festas de Natal que se aproximam. Recordam-se os principais fatos do ano. E, naturalmente, a conversa conduz a uma questão que divide os ânimos. Quem foi o personagem mais simpático do ano?

As opiniões se dividem. Uns opinam pela linda pastorinha. Quando sai com seu rebanho, mais parece que vai à procura de um príncipe encantado, tão graciosa e delicada que é. Quando vem de volta, com uma ligeira fadiga no rosto meigo, evoca com isto a sua faina benemérita e produtiva, e simboliza de um modo encantador o que há de penoso e meritório no trabalho pastoril. Sim, na criação, da qual vive a região.

Outros optam pela professora. Ela representa o ensino, o saber, a cultura, bens maravilhosos do espírito, para os quais ela abre as portas às gerações que vêm. Ela é mais do que um agente de produção econômica. É um fator de elevação humana. É pastora de crianças. O que vale mais do que ser pastora de ovelhas. E, realmente, com que cuidado as dirige quando caminham em direção à praça da matriz, a fim de rezar o Angelus ao som das badaladas que marcam o fim do trabalho na doçura da tarde. E quando, depois, reúne em roda, em torno do poço, as crianças para cantarem alegres uma ciranda, antes de as reconduzir aos lares próximos.

Todos hesitam entre uma e outra. Pois não há quem não aprecie uma e outra. Os exaltados das duas correntes começam a surgir. É que a questiúncula local envolve um problema mais alto, que aflora na argumentação de alguns. O que vale mais? A prosperidade, que uma simboliza, ou o saber, que a outra representa? E, de um ponto de vista bem outro, o que mais merece homenagem, a graça da pastora ou a doce sisudez da mestra? Problemas universais, problemas de todos os tempos, que por isto mesmo agitam, sempre que as vicissitudes da vida os põem em foco.

A um intervalo da discussão a voz do velho se faz ouvir. — E o heroísmo? Também não tem ele seu mérito, um mérito que seria injusto não levar em conta, já que é de méritos que se trata? Fui soldado, como sabeis, disse ele. Senti a beleza do sopro que nos levantava o ânimo na hora do combate. Evocamos então os ambientes felizes onde a vida cotidiana se desenrola entre o trabalho, a prece, o estudo e o lar. Guerreávamos para que em paz as pastoras pudessem continuar a conduzir suas ovelhas, as mestras ensinassem desanuviadas as crianças, nos lares as esposas tranqüilas tudo preparassem com dedicação para o esposo que vem do trabalho, e nas igrejas se rezasse sem perturbação pela glória de Deus no mais alto dos céus, e pela paz na terra para os homens de boa vontade. Para que os princípios de justiça e caridade, sobre os quais toda esta ordem cristã repousa, não fossem impunemente violados pelo inimigo agressor. Então nossas almas se tornavam imensas, na proporção do ideal que defendíamos. Nossa têmpera se tornava rija como o aço, e nossa coragem mais forte que a do lobo ou do javali. Avançávamos, lutávamos, feríamos e matávamos, quase tão alegres como se nos tocasse ser feridos e morrer. O ideal era tudo. Oh, a alegria exaltante da proeza, oh, a grandeza sagrada, a beleza cristalina da luta. A esta altura, o velho estava de pé. Sua voz cava se fazia ouvir no silêncio da sala. Ninguém imaginara que um frêmito de autêntica sublimidade fosse percorrer uma sala, há poucos instantes ainda, tão pacata. O velho, cansado, sentou-se. Suas últimas palavras foram: Proponho que discutam se não cabe, entre a mestra e a pastorinha, um lugar para o nome de nosso matador de feras. Não haverá jamais um primado para quem é herói?

Havia emoção e também certo constrangimento entre os ouvintes: há poucos dias, no sermão, o vigário lembrou aquelas palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo: ninguém tem maior amor do que aquele que dá sua vida pelos seus amigos.

Ia assim a discussão, e os partidos se dividiam. Uns eram pelo guardião heróico. Outros eram contra ele. Que fosse a professora ou a pastora, já não importava. O essencial era, para muitos, que a primazia não coubesse àquele desmancha prazeres da aldeia, àquele homem antipático, com suas vítimas gotejando sangue. Para outros, o indispensável era premiar o herói.

Como de costume, nas ocasiões críticas, chegara a vez do agente de negócios dizer a palavra decisiva. Os olhares se voltavam para ele. E aos poucos se ouviu sua voz cheia de inflexões, que ia subindo. Comoveu a todos quando, com entusiasmo, elogiou a missão da pastora. Deixou a todos absortos e interessados quando se estendeu sobre a utilidade da cultura. Por fim à maneira de uma sentença, dirigiu-se ao velho. Respeitava-o, disse em tom grave. Mas a era da luta passara. O mundo caminharia algum dia — e já começara a caminhar — para a fusão de todas as religiões, todas as raças, todos os povos. Os homens evoluídos não podiam senão ter horror ao sangue que se derramava. Que alguém, por dinheiro, aceitasse a missão de matar animais selvagens, era uma triste necessidade. Mas daí a pôr a luta — o pretenso heroísmo — no mesmo nível, e talvez acima, da cultura e até da produção econômica, que anacronismo! E, politiqueiro conciliador, concluiu propondo uma salva de palmas que simbolizasse a estima de todos pela pessoa do velho, e, ao mesmo tempo, a aceitação da opinião dele, comerciante: excluir da porfia o matador.

Uma salva de palmas estrugiu na sala. Só uns tantos discordaram irritados.

Era tarde. Todos se levantaram.

* * *

Na manhã seguinte, não se viu o caçador na praça. Nem nos outros dias. Passara a terras longínquas, para se enriquecer, por sua vez, em alguma profissão sem risco. E toda gente se esqueceu do episódio.

No ano seguinte, o número de javalis e de lobos cresceu um pouco. E no seguinte outro tanto. No terceiro ano, a cultura dos campos decaíra. Havia algumas crianças órfãs, e a pobreza entra em alguns lares.

O velho agente de negócios resmungou: — Não se pode mais morar aqui. E mudou para longe.

Quanto à aldeia, continuou a definhar...

* * *

— Como chamar a este conto? Que título dar a este artigo? — "Paz, cultura e heroísmo"? Ou então. "Ingratidão e castigo"? — Hesito.

Talvez o melhor fosse: "O crime de um demagogo velhaco".

Pensando bem, "Pombos e falcões" seria mais acertado.

Escolha o leitor.