Folha de S. Paulo,
10 de
maio de 1970
Não
encontrei título para este artigo
Quadro no qual ocorreram os fatos: uma aldeia com todas as
características convencionais — praça central, rodeando uma graciosa
matriz com vitrais coloridos, torre, sinos e relógio — fonte em frente à
matriz — em torno, um casario modesto e confortável — em uma das ruelas
vizinhas, a escola primária — outras ruelas que, todas, acabam se
diluindo em um prado ameno e farto. A pouca distância, uma floresta
sombria, de onde procedem com certa freqüência javalis furiosos e
matilhas de lobos famintos.
Primeiro personagem: a professora, que ensina as crianças com delicadeza
e paciência angélicas. Alta, esguia, modesta, despretensiosa.
Segundo personagem: a pastorinha, que sai ao romper da aurora, levando
suas ovelhas para o prado. Adolescente, pura, afável, afeita ao
isolamento e à oração.
Terceiro personagem: o caçador. Não se trata de um amador de caçadas,
mas de um modesto funcionário municipal, a quem incumbe recrutar, nos
momentos próprios, alguns vigorosos gajos da aldeia, e levá-los à
floresta para dar rude combate aos animais nocivos. Tarefa difícil, que
comporta extensas jornadas e também longas vigílias. Entre 20 e 30 anos.
Robusto, decidido, todo modelado pela profissão. Pele queimada pelo sol
e curtida pelo vento. Cabelama abundante e solta. Passo pesado. Aperto
de mão rijo, dedos calosos. Pela manhã, é freqüente vê-lo que volta da
faina.
Não
raras vezes, vem trazendo aos ombros um animal morto, que ainda goteja
sangue. Jovial. Delicadíssimo. Desde que se habituou à profissão, jamais
um lobo penetrou na aldeia, nem um javali devastou as plantações. Quando
ele atravessa a praça da matriz, as impressões que causa não são iguais.
Uns simpatizam com sua alegre e juvenil coragem, com sua franqueza, seu
porte varonil. E sentem segurança no contato com tão desempenado
guardião. Outros, pelo contrário, se desagradam em vê-lo. Sua simples
presença rompe a quietude e a harmonia do vilarejo, com a evocação de
lutas e perigos que não é agradável lembrar. A rijeza de ânimo com que
persegue, acua, fere e mata, tolda a visão de sua bondade de alma. Vê-lo
carregando alegre algum despojo sangrento de sua bravia profissão
suscita a impressão de que nenhum derramamento de sangue, mesmo de
sangue humano, lhe custa. Em suma, ele parece a uns a personificação da
varonilidade, da dedicação e da proeza. E a outros a própria imagem
hedionda da luta, da violência e da guerra.
Quarto personagem: o bisavô. Tem todo o "physique du rôle" [físico
próprio às atividades que desenvolve(u), n.d.c.]. Barbas brancas, olhos
claros e encovados. Mãos magras e um pouco trêmulas. Uma ponta de
surdez.
Quinto personagem: um agente de negócios aposentado. Entre 50 e 60 anos.
Ligeiramente dado a obeso. Olhos pequenos, móveis, sagazes. Voz cheia de
inflexões, ora retoricamente sonoras, ora pachorrentamente benévolas,
ora cautamente sussurrantes. Viajou bastante, analisou muita coisa,
enriqueceu um pouco. É o "boss" do lugar. Tem entrosagens sólidas nas
principais cidades vizinhas. Por ele passam todos os cordéis decisivos,
a ele recorrem todos à procura de conselhos nas situações graves, dele
vêm tanto as notícias de fora como o comentário decisivo sobre os fatos
da aldeia e da região.
Local
do acontecimento: a taverna, pequena e cheia, onde a conversa se
generalizou de mesa para mesa.
O
tema: as festas de Natal que se aproximam. Recordam-se os principais
fatos do ano. E, naturalmente, a conversa conduz a uma questão que
divide os ânimos. Quem foi o personagem mais simpático do ano?
As
opiniões se dividem. Uns opinam pela linda pastorinha. Quando sai com
seu rebanho, mais parece que vai à procura de um príncipe encantado, tão
graciosa e delicada que é. Quando vem de volta, com uma ligeira fadiga
no rosto meigo, evoca com isto a sua faina benemérita e produtiva, e
simboliza de um modo encantador o que há de penoso e meritório no
trabalho pastoril. Sim, na criação, da qual vive a região.
Outros optam pela professora. Ela representa o ensino, o saber, a
cultura, bens maravilhosos do espírito, para os quais ela abre as portas
às gerações que vêm. Ela é mais do que um agente de produção econômica.
É um fator de elevação humana. É pastora de crianças. O que vale mais do
que ser pastora de ovelhas. E, realmente, com que cuidado as dirige
quando caminham em direção à praça da matriz, a fim de rezar o
Angelus ao som das badaladas que marcam o fim do trabalho na doçura
da tarde. E quando, depois, reúne em roda, em torno do poço, as crianças
para cantarem alegres uma ciranda, antes de as reconduzir aos lares
próximos.
Todos
hesitam entre uma e outra. Pois não há quem não aprecie uma e outra. Os
exaltados das duas correntes começam a surgir. É que a questiúncula
local envolve um problema mais alto, que aflora na argumentação de
alguns. O que vale mais? A prosperidade, que uma simboliza, ou o saber,
que a outra representa? E, de um ponto de vista bem outro, o que mais
merece homenagem, a graça da pastora ou a doce sisudez da mestra?
Problemas universais, problemas de todos os tempos, que por isto mesmo
agitam, sempre que as vicissitudes da vida os põem em foco.
A um
intervalo da discussão a voz do velho se faz ouvir. — E o heroísmo?
Também não tem ele seu mérito, um mérito que seria injusto não levar em
conta, já que é de méritos que se trata? Fui soldado, como sabeis, disse
ele. Senti a beleza do sopro que nos levantava o ânimo na hora do
combate. Evocamos então os ambientes felizes onde a vida cotidiana se
desenrola entre o trabalho, a prece, o estudo e o lar. Guerreávamos para
que em paz as pastoras pudessem continuar a conduzir suas ovelhas, as
mestras ensinassem desanuviadas as crianças, nos lares as esposas
tranqüilas tudo preparassem com dedicação para o esposo que vem do
trabalho, e nas igrejas se rezasse sem perturbação pela glória de Deus
no mais alto dos céus, e pela paz na terra para os homens de boa
vontade. Para que os princípios de justiça e caridade, sobre os quais
toda esta ordem cristã repousa, não fossem impunemente violados pelo
inimigo agressor. Então nossas almas se tornavam imensas, na proporção
do ideal que defendíamos. Nossa têmpera se tornava rija como o aço, e
nossa coragem mais forte que a do lobo ou do javali. Avançávamos,
lutávamos, feríamos e matávamos, quase tão alegres como se nos tocasse
ser feridos e morrer. O ideal era tudo. Oh, a alegria exaltante da
proeza, oh, a grandeza sagrada, a beleza cristalina da luta. A esta
altura, o velho estava de pé. Sua voz cava se fazia ouvir no silêncio da
sala. Ninguém imaginara que um frêmito de autêntica sublimidade fosse
percorrer uma sala, há poucos instantes ainda, tão pacata. O velho,
cansado, sentou-se. Suas últimas palavras foram: Proponho que discutam
se não cabe, entre a mestra e a pastorinha, um lugar para o nome de
nosso matador de feras. Não haverá jamais um primado para quem é herói?
Havia
emoção e também certo constrangimento entre os ouvintes: há poucos dias,
no sermão, o vigário lembrou aquelas palavras de Nosso Senhor Jesus
Cristo: ninguém tem maior amor do que aquele que dá sua vida pelos seus
amigos.
Ia
assim a discussão, e os partidos se dividiam. Uns eram pelo guardião
heróico. Outros eram contra ele. Que fosse a professora ou a pastora, já
não importava. O essencial era, para muitos, que a primazia não coubesse
àquele desmancha prazeres da aldeia, àquele homem antipático, com suas
vítimas gotejando sangue.
Para outros, o
indispensável era premiar o herói.
Como
de costume, nas ocasiões críticas, chegara a vez do agente de negócios
dizer a palavra decisiva. Os olhares se voltavam para ele. E aos poucos
se ouviu sua voz cheia de inflexões, que ia subindo. Comoveu a todos
quando, com entusiasmo, elogiou a missão da pastora. Deixou a todos
absortos e interessados quando se estendeu sobre a utilidade da cultura.
Por fim à maneira de uma sentença, dirigiu-se ao velho. Respeitava-o,
disse em tom grave. Mas a era da luta passara. O mundo caminharia algum
dia — e já começara a caminhar — para a fusão de todas as religiões,
todas as raças, todos os povos. Os homens evoluídos não podiam senão ter
horror ao sangue que se derramava. Que alguém, por dinheiro, aceitasse a
missão de matar animais selvagens, era uma triste necessidade. Mas daí a
pôr a luta — o pretenso heroísmo — no mesmo nível, e talvez acima, da
cultura e até da produção econômica, que anacronismo! E, politiqueiro
conciliador, concluiu propondo uma salva de palmas que simbolizasse a
estima de todos pela pessoa do velho, e, ao mesmo tempo, a aceitação da
opinião dele, comerciante: excluir da porfia o matador.
Uma
salva de palmas estrugiu na sala. Só uns tantos discordaram irritados.
Era
tarde. Todos se levantaram.
* * *
Na
manhã seguinte, não se viu o caçador na praça. Nem nos outros dias.
Passara a terras longínquas, para se enriquecer, por sua vez, em alguma
profissão sem risco. E toda gente se esqueceu do episódio.
No
ano seguinte, o número de javalis e de lobos cresceu um pouco. E no
seguinte outro tanto. No terceiro ano, a cultura dos campos decaíra.
Havia algumas crianças órfãs, e a pobreza entra em alguns lares.
O
velho agente de negócios resmungou: — Não se pode mais morar aqui. E
mudou para longe.
Quanto à aldeia, continuou a definhar...