Folha de S. Paulo,
19 de
abril de 1970
O
gládio, as batatas e o astro
Certo
interlocutor, progressista antimilitarista, fez-me a objeção seguinte:
“A ação doutrinária da TFP contra o comunismo e o que V. chama os
corolários "católicos" deste, o democristianismo e o progressismo,
carece de alcance prático. Estamos sendo governados por militares.
Deixem, pois, que os militares resolvam, com os seus meios específicos,
os problemas atuais. Os jovens da TFP fariam melhor em abandonar esta
luta colocada em termos de força, e empregar em atividades
economicamente produtivas o tempo e as energias preciosas que dedicam à
ação ideológica".
Deixo
de lado certos aspectos psicológicos da objeção, como o mal disfarçado
desejo de criticar as Forças Armadas e de as privar de qualquer simpatia
no meio civil, ou então a evidente vontade de acabar com a atuação da
TFP. Tomo a objeção em tese. E passo a lhe dar resposta.
* * *
Logo
à primeira vista, o que me chama a atenção é o caráter anacrônico das
concepções de meu progressista. Em nossa época, a eficácia da ação e da
contra-ação psicológicas foi plenamente posta em evidência pelos
acontecimentos. E, por isto, nenhum homem público – civil ou militar,
pouco importa – acredita em soluções colocadas apenas em termos de
força.
Espanta, pois, que este objetante afirme ser possível focalizar e
resolver o problema da subversão, no Brasil, em meros termos de força...
* * *
De
outro lado, a mentalidade de meu objetante choca por sua dureza.
Suponhamos que a Forças Armadas - de nosso ou qualquer outro país -
consigam atemorizar e assim reduzir ao silêncio toda a população civil.
Pergunto se há algo de mais triste para militares autênticos, do que
tratar sua própria pátria como uma terra conquistada, que só pelo
chanfalho obedece à lei. Então, uma ação ideológica que esclarece o
povo, levando-o a compreender e a admirar a ação anti-subversiva dos
poderes competentes, e a colaborar com estes na repressão aos
subversivos, não seria, também nesta hipótese, de um valor moral
inestimável?
Será
que o fanatismo progressista - só a fim de ter pretextos para atacar as
Forças Armadas - chega a ponto de desejar para o Brasil este tratamento
de país vencido, no qual o mero chanfalho mantivesse a ordem, cessado
todo esforço persuasivo contra a subversão?
* * *
Ouço
meu progressista sussurrar que nessa ação esclarecedora, os próprios
órgãos militares a poderiam exerce sem o apoio de mais ninguém. A ação
da TFP seria portanto inútil... o que por sua vez conduziria a reduzir
ao silêncio a TFP.
Também aqui, se bem que progressista, meu objetante se revela
desconcertantemente anacrônico. Pois todos os pedagogos e sociólogos
insistem hoje em geral até com grande exagero na importância da
cooperação de alunos e subordinados, para o êxito da autoridade docente
ou governamentista. Meu objetante, pelo contrário, finge conceber a ação
suasória do poder público como a de um mestre-escola obsoleto, que
ensina sua cartilha a um povo inteiro, quieto e passivo.
Não.
Ao poder público, seja ele exercido por militares ou civis, cabe
indiscutivelmente uma importante missão no informar e orientar a opinião
nacional. Mas tal missão não pode ser realizada adequadamente sem a
cooperação de múltiplas forças vivas, espontaneamente nascidas do
próprio povo, cheias de convicção, de idealismo, e de sadia
autodeterminação.
E é
precisamente na conta de uma dessas forças, que milhões de brasileiros
têm a TFP…
* * *
Na
realidade tudo quanto há de estreito e canhestro nas concepções de meu
objetante se torna ainda mais palpável se considerarmos a essência do
comunismo e, mais ainda, a essência do que realmente afirmo serem os
corolários “católicos” deste, o democristianismo e o progressismo.
O
comunismo é fundamentalmente uma seita ideológica. Seus adeptos se
aglutinam em torno de uma concepção filosófica peculiar, do universo, do
homem e da vida. O objetivo supremo deles é impor tal concepção a todos
os homens.
Pela
própria natureza dessa seita, o modo específico de a combater tem de ser
ideológico também. Em lutas como esta, a força tem por vezes um papel
legítimo e indispensável, mas que jamais é exclusivo. Pois em última
análise, idéias com idéias se combatem.
A
História está cheia de exemplos de estruturas políticas e sociais que –
apoiadas na mera força – ruíram pela ação ora tempestuosa e rápida, ora
lenta e sorrateira, de ideologias contrárias. Faltou-lhes a sustentação
ideológica indispensável.
* * *
Tal
afirmação, que é certa quanto ao comunismo, é evidentissima quanto ao
progressismo.
Este
último é um problema, uma crise ou – se assim se pode dizer – uma doença
na Igreja. Ora, pelo próprio caráter natural e sobrenatural desta, os
problemas internos dEla não podem ser resolvidos com preterição das
questões de doutrina e da ação ideológica.
É
isto tão certo, que em 20 séculos de existência, nunca uma crise
doutrinária, no seio desta, chegou a termos sem remédios também
doutrinários.
Dada
a diversidade, por assim dizer infinita, das circunstâncias de tempo e
de lugar, o modo pelo qual a Igreja tem chegado ao desfecho doutrinário
de conflitos como este variou muito ao longo dos séculos e dos milênios.
Mas,
frequentemente – e talvez na maioria dos casos – a presença do erro
dentro da Igreja suscita de início apreensões e críticas da parte de
membros mais clarividentes: por vezes padres ou simples leigos.
Atacados, os partidários do erro se defendem ocultando o cunho herético
de suas doutrinas e acusando a parte adversa de difundir calúnias. Estes
treplicam com provas. Daí se incendeia uma “guerra” ou “guerrilha”
doutrinária, que é afinal resolvida pela autoridade, em termos de
ensinamento doutrinário.
Longe
estamos de negar ao poder público o direito de preservar o Estado dos
efeitos funestos que esta ou aquela corrente doutrinária heterodoxa
possa ter no âmbito temporal.
Mas
inegável é que – enquanto problema interno da Igreja – a crise
doutrinária não se soluciona fora do campo doutrinário.
Ora,
quem denuncia, neste campo, os erros religiosos nocivos ao Estado,
presta relevante serviço a este, e não só à Igreja.
Pois
quando um erro doutrinário de implicações sociais e econômicas ferve na
Igreja, é como um vulcão cujas lavas tendem sempre a transbordar para a
esfera do Estado.
A
luta doutrinária levada a cabo pela TFP, contra as implicações sociais e
econômicas do progressismo é, pois, indispensável no quadro dos
problemas que ora se põem à nossa atenção.
Tudo
isto torna bem explicável porque querem os progressistas silenciar a TFP.
* * *
Ouço
ainda meu progressista rosnar com escárnio: “Tudo isto é mito. Na
realidade a força não precisa do apoio da doutrina, mas da fartura. Com
energia, boas finanças e boa administração tudo se resolve”.
Desta
feita, não lhe respondo. Para que responder? Que argumento dar a quem
nega ao pensamento o direito de cidadania nos domínios do real?
Calo-me. E fico a pensar em certa raça de almas de que fala Claudel,
utilitárias a ponto de desejar que os astros caiam do céu e se
transformem em batatas…