Folha de S. Paulo,
8 de
março de 1970
Garaudy esboça outra "aproximação"
No
grande público, um acontecimento já velho de meio século, como a
revolução bolchevista de 1917, imprimiu marcas profundas, que ainda
perduram. A queda súbita e espetacular do czarismo, com sua seqüela de
perseguições e massacres, produziu um trauma tão profundo na
sensibilidade dos povos civilizados, que ainda hoje, quando se fala de
comunismo a reminiscência desses episódios trágicos ocorre à maior parte
das pessoas.
Esta
associação de imagens é tanto mais explicável quanto ao longo destas
cinco décadas, o comunismo parece ter deitado todo o seu empenho em
conservar, e acentuar até, o pânico universal que provocou em 1917. Em
todos os quadrantes, soprou ele continuamente o ódio, provocou
agitações, tramou atentados, suscitou revoluções e atiçou guerras. Ainda
hoje é a presença do comunismo que faz pesar sobre o mundo a ameaça
apocalíptica da destruição atômica. Tudo isto - bem se sabe - não
decorre de circunstâncias fortuitas. Está na própria essência da
doutrina comunista a justificação dos meios violentos, sempre que
necessários, ou pelo menos convenientes, à vitória do marxismo. E -
conforme vimos nos artigos anteriores - corresponde às normas básicas da
estratégia comunista imobilizar os adversários pelo medo.
Tudo
isto torna inteiramente explicável que, para incontáveis pessoas, o
perigo comunista consista essencialmente na eventualidade de uma
explosão à maneira de 1917.
* * *
Ora –
já o vimos também em outros artigos – reduzir a isto o perigo vermelho
importa em simplificar muito o assunto. Na realidade, o comunismo não
progrediu só – nem principalmente – com sangueiras e chacinas. Em várias
fazes de sua história, ele têm tido necessidade de contemporizar, de
sorrir, de fazer promessas, para adormecer a vigilância e a
combatividade do adversário, antes de se atirar sobre ele. Para a
eficácia desse tipo de artifícios, evidentemente de nada serviriam ao
comunismo demagogos descabelados ou terroristas lúgubres. Eram-lhe
necessários doutrinadores labiosos, que encontrassem "pontos comuns"
para convidar o adversário para uma colaboração cheia de ciladas.
Precisava ele de diplomatas sutis, alguns deles infiltrados até em
pontos-chaves dos países do inimigo, para conseguir "Yaltas" de todo
gênero. Tinha mister de simpatizantes até entre suas vítimas, para
suscitar nestas o desejo de capitulações mais ou menos veladas, no
estilo "ceder para não perder". Com todo este aparelhamento, em pleno
tempo de paz, sorriso a lhes iluminar o olhar e a lhes florir nos
lábios, os chefes comunistas têm conseguido mais nos últimos 20 anos, do
que com toda a espécie de violências.
* * *
Venho
falando sobre a tática comunista em termos genéricos. Infelizmente, não
me é difícil ilustrar minhas assertivas com o exemplo clássico.
Este
exemplo claríssimo, arquetípico, espetacular e dramático, pode o leitor
encontrá-lo examinando o que se passa nas fileiras católicas. Nem Nero,
nem Diocleciano nem Juliano, o apóstata, nem os reformistas do século
XVI, nem os revolucionários franceses de 1798, nem Lenine, nem Calles,
nem os republicanos espanhóis jamais conseguiram causar à Igreja um dano
comparável à confusão, à desordem, à esquerdização que entre os
católicos se originou e se vem agravando a partir do momento em que os
comunistas iniciaram a sua famosa "politique da la main tendue".
Sim,
a mão do adversário, quando se estende traiçoeiramente como se fosse
amiga, pode ser, em determinadas circunstâncias, muito mais perigosa do
que se segurasse um punhal ou carregasse uma bomba. O processo do
comunismo, repito, se tem realizado mais com o sofisma, a infiltração, o
sorriso hipócrita, do que com a violência. Não é tanto recrutando novos
adeptos quanto cegando, dividindo, adormecendo e corrompendo os
não-comunistas, que ele obteve seus maiores êxitos.
A
utilização do binômio medo-simpatia, cujo complicado mecanismo descrevi
neste jornal, é um dos meios mais importantes do comunismo para chegar a
este fim. É assim que ele manobra, para seu proveito, o pânico que
imobiliza e a astúcia que seduz suas vítimas.
* * *
Tudo
isso posto, é o caso de nos perguntarmos a quantas se encontra, no
momento, fora do campo religioso, essa avançada blandiciosa do
comunismo.
Pergunto, em outros termos, se nas fileiras dos proprietários e nas dos
trabalhadores intelectuais ou manuais não se delineia algum fenômeno
análogo. Pergunto, se prestando atenção, não encontramos, nestas várias
categorias, elementos que, discretamente por enquanto, vão fazendo um
papel análogo ao que desempenham na Igreja o pe. Comblin e outros
carbonários de nome francês, russo ou brasileiro. E indago, por fim, se
dentro de algum tempo esses meios não estarão tão convulsionados quanto
os ambiente católicos.
A mim
parece que sim. E esta suspeita cresceu de ponto quando vi, no
noticiário da imprensa, que um personagem comunista dos mais suspeitos
"estendia a mão" de modo sensacional, ao capitalismo norte-americano.
Este
personagem teve papel de grande realce na aproximação do comunismo com a
Igreja. Parece-me que ele prepara agora análoga manobra, com análogos
objetivos e análogos métodos, contra outras frentes de luta comunista
para conquista ideológica e política do mundo.
Este
personagem é o veterano diretor do PC francês, o especialista caviloso
em assuntos religiosos, o expositor labioso e brilhante que responde com
o nome de Roger Garaudy.