Folha de S. Paulo,
15 de
março de 1970
A
manobra Garaudy
Vejamos hoje - e assim fica encerada esta série - alguns aspectos da
política dita de convergência para a qual Roger Garaudy convida os
capitalistas e os comunistas de nossos dias.
Ressalto, em duas palavras, o alcance do tema. Especialista do PC
Francês para assuntos religiosos, Garaudy atuou como um dos intelectuais
mais importantes na preparação da colaboração entre comunistas e
católicos. Dadas as imensas vantagens auferidas - e exploradas a fundo
pelo comunismo internacional com tal colaboração – não é lícito ver, no
papel desempenhado por Garaudy nessa matéria, uma simples atitude
individual. Evidentemente, a aproximação entre comunistas e católicos
foi um golpe planejado pelas mais altas cúpulas vermelhas. E Garaudy
lhes serviu de instrumento. É preciso ser muito ingênuo para - ao vê-lo
preparar agora outra "colaboração" - não concluir que ele estará agindo,
mais uma vez, a mando das mesmas cúpulas.
Trata-se para o comunismo, de obter da parte dos capitalistas o emprego
de uma política entreguista análoga a que, em outro campo, seguem os
católicos progressistas. Trabalhada pelo binômio medo-simpatia que já
descrevi em artigo anterior, a burguesia bem pode ser conduzida a
renunciar por si própria a decisivas parcelas de seu poder, com a ilusão
de que lhe é útil "ceder para não perder". O que poderá proporcionar ao
comunismo imensos e fáceis progressos que o deixem desde logo a um passo
do triunfo final.
Nesta
perspectiva, toda a algazarra feita contra Garaudy no recente congresso
do PC francês bem pode ser mera encenação para convencer o público de
que não é a serviço do Kremlin que o intelectual francês atua.
Isto
posto, não é tanto o pensamento de um homem que analisaremos, mas, neste
pensamento procuraremos os indícios de uma das mais importantes manobras
comunistas de todos os tempos.
A
obra recente em que o escritor comunista indica o rumo atual de seu
pensamento, não a encontrei ainda em livraria. Mas as correspondências
telegráficas revelam pontos importantes a tal respeito. É possível
discernir, assim, o engodo do novo lance garaudino.
Antes
de tudo, note-se que Garaudy não critica as metas e programas do PC
francês. Ele sustenta que, a tal respeito, nenhuma mudança é desejável.
Sua critica é sobre matéria que, nesta perspectiva, ocupa plano
secundário, isto é, certos métodos de pensar e agir, que ele deseja
mudar. Garaudy se tem em conta de ortodoxo, e é com base na ortodoxia
comunista que ele discrepa do PC de seu país ao qual por sua vez obedece
estritamente a Moscou.
No
discurso de Garaudy no recente Congresso de seu partido, acentuou ele -
como aliás, em sua obra Marxisme du XXe Siècle - o caráter
essencialmente relativista da doutrina de Marx. E assevera que este
último não pretendeu fixar um modelo ideal do Estado socialista, válido
para todos os tempos e países. De onde se infere que pode haver formas
ideais do socialismo diversas, para o Oriente e o Ocidente, por exemplo.
Assim, os comunistas em dia com o pensamento real do mestre devem estar
preparados para aceitar como válida alguma nova fórmula de socialismo
que brote no Ocidente.
De
outro lado, considera Garaudy que o capitalismo norte-americano, fruto a
seu ver de uma superior evolução, se está metamorfoseando paulatinamente
pela concentração etc. em uma forma de socialismo, o qual tende a chegar
a um comunismo autêntico, se bem que sui generis.
Assim
parece concluir-se que a "aile marchante" da comunistização do mundo já
não está só em Moscou. Ela existe também no que o capitalismo ocidental
têm de mais "prá frente", de mais evoluído. Em outros termos, seria
inútil lutar contra o comunismo, e quase supérfluo lutar em favor dele:
ele virá mesmo!
Um
exemplo dessa imensa evolução e de suas repercussões na moderna
formulação de certos conceitos socialistas estaria na ampliação do
quadro dos assalariados.
Segundo uma concepção já envelhecida, assalariado é, por excelência, o
trabalhador manual, o técnico pertencente à classe burguesa, que vive, o
mais das vezes, não de salário, mas de honorários. E era, segundo os
socialistas, um aliado natural do proprietário contra o trabalhador
manual.
Com o
curso do tempo, assevera Garaudy, as coisas mudaram. O número de
trabalhadores manuais especializados, e até altamente especializados,
cresceu muito. De outro lado, os técnicos cada vez mais reduzidos à
condição de assalariados. De onde ter-se alterado a antiga frente de
luta da revolução social. Esta engloba, ou pelo menos tende a coligar
contra o capital além dos trabalhadores manuais, também os demais
assalariados. E entre estes os próprios diretores enquanto não são
proprietários da empresa.
Isto
aceito sem mais, não seria difícil ver que ao capital, isolado e
debilitado, só bastaria capitular. Serão independentes e felizes, na
concepção garaudiana, os capitalistas esclarecidos que, "cedendo para
não perder", aceitem sucessivas renúncias às suas vantagens para obter a
sobrevida de outras, até que por fim desapareça suavemente a propriedade
individual da empresa.
Com
isso, se evitarão as guerras e as revoluções sociais, e o mundo
descansará em paz.
Esta
concepção, assim apresentada em linhas gerais, deixa na penumbra
problemas capitais que afugentariam os burgueses, capitalistas ou
trabalhador intelectual. Por exemplo, qual a diferença entre as
concretas condições de vida de uns e outros e as de um trabalhador
manual? Qual a possibilidade, para o trabalhador intelectual, de gerir
suas economias, de sorte a se tornar dono de um patrimônio individual?
Terão seus filhos especiais facilidades para adquirir instrução e
educação proporcionadas às dos pais, e que assegurem às várias gerações
de uma mesma família pelo menos um pouco de continuidade de nível?
Análogas perguntas se poderiam fazer quanto à sorte do ex-proprietário e
dos seus.
Bom
pretexto de abreviar e simplificar tudo isso pode ser deixado na sombra
por uma propaganda hábil. O leitor apressado e incauto só vê assim, nas
elucubrações de Garaudy, a quimera brilhante de um socialismo novo, que
acomoda tudo e suprime as dores de cabeça.
* * *
Em
síntese, o que faz Garaudy com este convite a que o Ocidente aceite isto
que seria um comunismo novo?
Anteriormente, conseguiu ele levar um certo número de clérigos e de
católicos leigos transviados a tentar com suas próprias mãos o
estrangulamento da Igreja.
Agora, tenta ele induzir a massa dos burgueses a estrangular com suas
próprias mãos a classe a que pertencem.
Este
é o ponto de vista estratégico, o balanço da nova manobra garaudiana.
Manobra muito sagaz, se se leva em linha de conta o fracasso do
comunismo.
Sim,
o fracasso. Pois por suas próprias mãos ele nem de longe seria capaz de
acabar com a Igreja. E também não com a propriedade privada e a
hierarquia social.
Que
remédio tem então o comunismo, senão tentar esse duplo estrangulamento
com as mãos de clérigos e burgueses?
Quiçá
seja esta a manobra suprema do comunismo para conquistar, sem riscos,
sem sangueira, a posse do mundo.