Folha de S. Paulo,
1° de
março de 1970
O
binômio medo-simpatia
Em
artigo anterior, procurei traçar um panorama da história da luta de
classes na França, durante os últimos 200 anos. Nele analisei
especialmente a conduta da aristocracia ante a ofensiva vitoriosa da
classe burguesa, e em seguida a da burguesia face à ascensão como que
inelutável do proletariado.
Assim, fiz notar essencialmente que:
1 — A
vitória do republicanismo-burguês sobre o monarco-aristocratismo não se
deveu unicamente ao fato — descrito muito simplisticamente por bom
número de divulgadores da História de que as "idéias novas" foram
conquistando rapidamente adeptos sempre mais numerosos, ao passo que as
"idéias velhas" iam perdendo seus "fiéis". A realidade foi bem mais
complexa. O monarco-aristocratismo conservou vitalidade política
inegável, e possibilidades de vitória muito ponderáveis, pelo menos até
1870, isto é, durante os cem anos (em números redondos) que se seguiram
à queda da Bastilha.
2 — À
vista desta vitalidade obstinada do monarco-aristocratismo, suas enormes
catástrofes políticas não se podem atribuir exclusivamente a uma perda
dos adeptos que se bandearam para o outro lado mas à debilidade, face à
tática sagaz da Revolução, dos adeptos que permaneceram fiéis;
3 —
Essa tática, empregada em cada grande lance republicano-burguês, pode
definir-se como o binômio medo-simpatia: a) No primeiro momento, ela
consiste no desfechar de um ataque radical e violentíssimo contra o
monarco-aristocratismo. Os partidários deste resistem algum tanto, são
derrotados, e os que sobrevivem passam por todos os infortúnios
imagináveis. Tudo isto os imerge no medo. b) Numa segunda fase, essa
tática leva a Revolução a retroceder algum tanto, e a conceder aos
derrotados da véspera alguns bocados do que haviam tido outrora. Tal
gesto desperta, da parte dos "beneficiários", uma tal ou qual simpatia
para com a nova ordem de coisas, e lhes prepara o espírito para a
aceitação de algo das doutrinas da Revolução. E assim se acende neles o
desejo de conservar o status quo a todo transe, para que não se
percam os bocados recuperados. O oposicionista de ontem prefere "ceder
para não perder". Ceder a vaga esperança de recuperar o muito que
perdeu, para não perder a fruição do pouco que recuperou. Ele se faz
então situacionista, meio resignado e meio persuadido. c) Vem depois
outra violenta arremetida revolucionária que tira aos
monarco-aristocratas seus bem-amados bocados. d) Mas esta arremetida é
seguida de novo "retrocesso" em que a Revolução restitui ao adversário
algumas migalhas restantes dos minguados bocados que lhe tirara. e) Atua
de novo o binômio medo-simpatia. O monarco-aristocrata cede mais uma vez
"para não perder" suas adoradas migalhas. E por análogo processo, as
migalhas se vão fazendo microscópicas, até deixarem de existir.
Em
conseqüência, a vitória do republicanismo-burguês sobre o
monarco-aristocratismo se deveu em grande parte a uma tática muito
sagaz, que deteriorou neste o espírito de luta, a capacidade de
resistência e a esperança de uma cabal vitória.
* * *
Análogo processo, o comunismo vem empregando em relação à burguesia. E
com êxito ainda maior. O reinado da burguesia na França começou a
parecer definitivo pelo menos a muitos a partir de 1870. Vejamos como se
desenrolou o processo medo-simpatia a partir dessa data:
1 —
MEDO. A terrível explosão da Comuna de Paris em 1870, com seus
incêndios, seus fuzilamentos, suas cenas de rua em estilo jacobino, deu
aos burgueses a sensação de que os dias do Terror poderiam voltar de um
momento para outro. Resultado: o pânico. Essa sensação foi prolongada
continuamente durante a "Belle Époque" por uma agitação de massas
liderada por chefes com o "facies" sombrio e sanhudo, por atentados
anarquistas espetaculares etc. A isto que continuou mais ou menos depois
da I Guerra Mundial se somou, no período de "entre les deux guerres", a
impressão causada pela dramática implantação do comunismo na Rússia, a
onda comunista a custo reprimida na Hungria, na Áustria, na Alemanha e
na Itália, as perseguições comunistas dramáticas no México e na Espanha
etc. Os êxitos do comunismo depois da II Guerra Mundial acentuaram ainda
mais este pânico. As perspectivas de uma guerra atômica leva-os em
muitos setores ao paroxismo.
2 —
SIMPATIA. Uma longa série de vitórias da Revolução, em sua fase
antimonárquico-aristocrática e depois em sua fase antiburguesa, induz os
burgueses de si imensamente menos combativos do que os nobres a não
lutar. Ao lado deles, ordeiro, letrado, risonho, polido, vem o
socialismo, que lhes promete uma ajuda se eles "cederem para não
perder". Que os burgueses entreguem parte do pão: os socialistas o
ajudarão, contra o comunismo, a conservar a outra parte.
O
burguês, para ganhar um aliado sem o qual a vitória lhe parece
impossível, deixa-se persuadir. E cede. Cede até com certa simpatia,
quer porque sua formação teoricamente igualitária o preparara para o
socialismo, quer porque o socialismo lhe parecia um protetor. Feita a
concessão, havia um período de relativa paz.
3 —
NOVO MEDO. Na extrema esquerda, o radicalismo e a violência se
reacendem. O burguês se apavora novamente.
4 —
NOVA SIMPATIA. O socialismo se acerca mais uma vez do burguês.
Promete-lhe coligar-se com ele contra o comunismo, se o burguês ceder
seus bocados, e se contentar com algumas migalhas. O burguês "cede, para
não perder" tudo. Nova simpatia. Nova distensão. Depois nova tensão, e
assim por diante.
* * *
Em
suma, sem jamais subir ao poder, o PC, astutamente auxiliado pelo
socialismo, vai conseguindo a metamorfose da sociedade burguesa. Isto na
Europa.
Só na
França? Quem não vê que o processo se tornou universal?
O
leitor se perguntará a que altura do processo revolucionário, operado
pelo binômio medo-simpatía, estamos nos dias de hoje.
Na
selva das "cisões" comunistas, no tremedal das manobras socialistas,
progressistas e "sapas", procurarei apontar no próximo artigo a quantas
estamos deste processo em primórdios de março de 1970
Como
o leitor verá, uma das figuras centrais do panorama será Roger Garaudy.