Folha de S. Paulo,
8 de
fevereiro de 1970
Não,
para o centauro
A
imprensa noticiou, nesta semana, que o Sr. Gabriel Valdez, ministro das
Relações Exteriores do Chile, iniciou contatos metódicos com todos os
embaixadores ibero-americanos acreditados em Santiago, a fim de obter
que Cuba seja admitida na OEA e assim reintegrada no convívio das nações
americanas.
À
primeira vista, a causa pode parecer simpática. A palavra "integração" —
e, analogamente, o vocábulo "reintegração" — foi dotada, pela propaganda
esquerdista mundial, de um alto poder talismânico. É só pronunciá-la,
para, em certas esferas de opinião, conquistar desde logo todas as
simpatias. Assim ocorre, por exemplo, no setor exíguo, bilioso e
endinheirado de meus amigos "sapos".
Na
realidade, as coisas estão longe de ser tão simples. As integrações ou
reintegrações são louváveis quando põem em conexão pessoas, valores ou
coisas sadias e harmônicas. São um desastre quando enxertam o que é
doente no que é saudável, ou quando implicam na conjugação de
heterogêneos.
Isto
é de observação corrente. Verifica-se no enxerto de plantas, e mais
ainda, no de órgãos humanos.
Não
me espanta que o chanceler do governo demo-cristão chileno pleiteie essa
integração teratológica da Cuba comunista com uma América
fundamentalmente anticomunista. A democracia-cristã é, ela mesma, uma
conjugação instável de elementos incompatíveis, uma espécie de centauro
ideológico, meio cristão e meio socialista. É essa incongruência
visceral que vai desagregando o centauro, no mundo inteiro. Coerente com
sua congênita heterogeneidade, é explicável que o chanceler chileno
tente como que "centaurizar" a América, nela pendurando — como uma cauda
de cavalo grotesca — a "democracia" cubana. Será talvez, a última
façanha do pedecismo antes do próximo pleito eleitoral, em que o
valoroso povo andino o varrerá do cenário político.
Está,
porém — no meu direito de inveterado lutador contra todas as
incongruências — de desejar que os governos do continente digam um
rigoroso não à proposta do centauro. E isto por muitas razões.
Passo
a enumerar algumas delas:
1. O
regime cubano, por ser comunista, é intrinsecamente injusto.
Reconhecê-lo, admiti-lo como membro valido de nossa comunidade de
nações, importa em pactuar com a injustiça institucionalizada. Não posso
aprovar que assim procedam as nações civilizadas da América.
2. O
regime de Fidel Castro só se mantém pela violência. Se em Cuba se
realizasse uma eleição verdadeiramente livre, precedida de amplos e
genuínos debates políticos, é indiscutível que Fidel Castro seria
fragorosamente derrotado. Não é à toa que o ditador cubano cerca seu
país de arame farpado e arrocha todas as liberdades. A "integração" de
Cuba de Fidel não seria pois a integração da Cuba autêntica, mas de uma
pseudo-Cuba, ou melhor, de uma anti-Cuba. Desse modo, aceitaríamos no
convívio continental, não o irmão verdadeiro, mas o impostor, o inimigo
mortal deste. Agindo dessa forma, máxime com a agravante de um inteiro
conhecimento de causa, praticaríamos uma injúria gratuita ao irmão
infeliz e oprimido.
3.
Mais ainda. Os numerosos cubanos exilados, e os que em Cuba esperam, com
uma perseverança profundamente respeitável, a aurora do dia da
libertação, têm direito a receber dos demais povos do continente todos
os graus e formas de solidariedade política, para sacudirem o jugo do
tirano. A "integração" do regime comunista cubano representaria a
consolidação do "castrismo" e a morte dessa nobilíssima esperança.
Cometeríamos, assim, o pecado de quebrar o arbusto partido, e extinguir
a mecha que ainda fumega (cf. Mt. 12,20).
4.
Mais especialmente penso nos inúmeros cubanos e cubanas, que trabalham
como escravos nas lavouras de cana, para a realização do sonho
megalótico com o qual Fidel Castro presume remediar os efeitos
catastróficos de sua má administração. Pergunto a meus patrícios se
iremos consolidar essa escravidão, nós que nos gloriamos de ter
emancipado, a 13 de maio, o elemento servil.
5. De
mais a mais, não podemos reconhecer foros de seriedade a um governo que
pratica oficialmente a pirataria, como meio de remediar os efeitos de
sua péssima administração. Na realidade, nem sequer merece ele o nome de
governo. Ora, o que são os seqüestros de avião, senão atos de
escancarada pirataria? Como "integrar" a "gang" que reduziu à conclusão
de antro de piratas a Pérola das Antilhas?
6.
Nego que essa integração nos seja imposta por qualquer razão política
ponderável. A minúscula republiqueta a que Fidel Castro reduziu Cuba,
não tem prestígio, nem riqueza, nem força que explique (falo em
explicação e não em justificação, note-se) a capitulação de toda a
América diante dela. Ora, é bem de uma capitulação que se trata, já que
os povos da América expulsaram Cuba da OEA, em 1962, e agora deveriam,
segundo quer Valdez dirigir-lhe o convite para voltar. E isto sem que
tivesse ocorrido qualquer fato novo nas suas relações.
Mas,
dirá alguém, feita a reintegração, pelo menos cessarão os seqüestros, e
poderemos ir passear tranqüilos na Europa e nos Estados Unidos. A
objeção vale como piada, não como argumento. Pois seria de pasmar que
pagássemos nossa liberdade turística permitindo que Fidel Castro
mantivesse seqüestrada toda a sua nação.
* * *
Estas
razões devem levar as nações americanas — e especialmente as
ibero-americanas, irmãs de Cuba pela fé e pela raça — a recusar a
proposta do centauro... Máxime se deve esperar esta atitude do governo
brasileiro, instaurado para o fim específico de combater, como um mal
supremo, o comunismo em nosso país.
Se
não o fizesse, à sua conduta se poderiam aplicar as palavras desabusadas
de Pascal: "Verdade aquém dos Pirineus e erro além dos Pirineus".
Mais
do que ninguém, deve dizer não ao centauro o Brasil, que, de 1964 para
cá, tanto tem lutado para não se deixar "centaurizar".
Nós
que, há dias, tivemos a alegria de aplaudir o governo por haver dito não
à pornografia, esperamos para breve a alegria de lhe aplaudir este outro
não.