Folha de S. Paulo,
1° de
fevereiro de 1970
D.
Helder cria problema — Comunistas aplaudem
No
momento em que escrevo, dom Helder deve estar terminando sua "tournée"
pelo Velho e Novo Mundo. Como de hábito, não perdeu ele ocasião alguma
para promover sua costumeira política. Exemplifico com o que ele
inventou de fazer no Canadá. Todos sabem que a aliança deste país é
fundamental para segurança dos Estados Unidos. A fronteira do "Dominion"
com a América do Norte vai de oceano a oceano, e é a mais extensa que há
na terra, entre dois países. Atacado pelo Canadá, os Estados Unidos são
como um homem com um punhal cravado nas costas. Ora, Pierre Trudeau, o
atual primeiro-ministro canadense é sabidamente um esquerdista pouco
simpático à nação vizinha. Nesta situação espinhosa, dom Helder nada
achou de melhor a fazer do que incitar o Canadá a assumir a liderança
das reivindicações do Terceiro Mundo em relação aos dois super-grandes,
isto é, a América do Norte e a Rússia. Assim, fez o que pôde para criar
um mal-estar entre as duas grandes nações setentrionais de nosso
Continente.
Mas —
objetaria algum "sapo" — neste caso o lance de Dom Helder não afeta
também Moscou? — A resposta é simples. Quem sofreria mais os
inconvenientes imediatos e os riscos futuros de um mal-estar com o
Canadá? A Rússia remota? Ou os Estados Unidos vizinhos? É claro que
mais, incomparavelmente mais, sofreriam estes. Ou seja — em outros
termos — o que a Rússia perderia pelo esfriamento de relações com o
Canadá seria largamente compensado com o que ela lucraria pela
debilitação dos Estados Unidos. Este modo de apresentar o problema bem
mostra a quem Dom Helder realmente foi nocivo.
* * *
Chegando a Roma, o arcebispo de Recife foi recebido pelo papa, e pouco
depois deu uma farfalhante entrevista à imprensa.
Depois, sempre trêfego, foi a Montreux, onde, perante o famigerado
Conselho Mundial das Igrejas, propôs um projeto extravagante, ou seja,
uma reunião de técnicos das maiores universidades européias com líderes
das principais religiões, para definir o que deve ser feito com relação
às mudanças de estrutura. Nessa antipática miscelânea de religiões e
universidades, dom Helder, sempre utópico e alheio às exigências da
realidade concreta, não quis incluir precisamente o setor dos homens
práticos, isto é, dos empresários. É que os espíritos utópicos e
demagógicos têm horror à contribuição dos homens de ação, aos quais
consideram uns desmancha-prazeres, que os forçam a descer da esfera
divertida do sonho, para a realidade séria e sem graça da vida concreta.
* * *
Mas,
afinal, tudo isto não é tão importante, pois não vai além da importância
de dom Helder. É triste, muito triste, isto sim. E principalmente
enquanto motivo de tristeza merece análise. Importante, realmente
importante é o que se passou com dom Helder em Roma. A importância, no
caso, não vem de dom Helder mas do papa. Pois dom Helder — bem no meio
de sua "tournée" lança-chamas — esteve com Sua Santidade, e depois deu
uma versão própria do que ocorreu entre ambos. O fato de essa versão ter
sido espalhada aos quatro ventos, no Brasil e no Exterior, isto sim, é
importante, na medida em que insinua uma atitude do chefe da Cristandade
diante das proezas de dom Helder.
* * *
Lembremos antes de tudo que — segundo uma "fonte oficial" do Vaticano —
o encontro teria sido "muito cordial".
Dom
Helder falou com o Santo Padre sobre suas "experiências passadas" e seus
"projetos". A julgar pelo que deixou entrever o arcebispo, não recebeu
ele a menor censura. Pelo contrário, saiu da audiência confiante e com
"sua alma de bispo reconfortada".
Mais
adiante disse que, a seu ver, o Brasil "deve pensar em modelos
socialistas proporcionais às nossas necessidades particulares".
E
depois de dizer que — segundo pensa — esse socialismo brasileiro não
coincide com o que se pratica atualmente nos países socialistas,
acrescentou: "Sonho com uma socialização que seja realmente capaz de
criar condições de desenvolvimento integral do homem, como define a
encíclica "Populorum Progressio".
Por
fim, desmentindo a versão de que a Santa Sé lhe teria limitado a
faculdade de fazer pronunciamentos sobre matéria econômico-social,
declarou ser "plenamente livre para expressar suas idéias em qualquer
parte do mundo". Inclusive no Brasil, portanto.
A
esta declaração taxativa, o arcebispo acrescentou um longo período
enrolado e ambíguo: "No entanto, no Brasil existe um problema de
oportunidade prática, que é conseqüência das diferentes posições em
relação à realidade do país, as quais podem ser encontradas também nos
meios católicos". Dou prêmio a quem entender isto.
* * *
Releva notar que estas declarações de dom Helder, embora cheias das
habituais sinuosidades, reticências e escapatórias, em sua linha geral
não só induzem os leitores a formar a impressão de que recebeu um "placet"
de Paulo VI, bem como a aceitar a idéia de que há possibilidade de se
construir, para o Brasil, um socialismo católico. Acerca deste último
ponto, o que temos sustentado é exatamente o contrário. Se católicos
transviados, e até um arcebispo "sonhador", quiserem construir um regime
autenticamente socialista, este regime será intrinsecamente atentatório
aos dois mandamentos da lei de Deus: "Não roubarás" e "Não cobiçarás os
bens do próximo". O fato de uma violação da lei de Deus ser praticada,
não por materialistas mas por católicos ou até por clérigos,
absolutamente não batiza nem a torna lícita.
Ora,
fazendo esta apologia do socialismo, logo à saída de uma audiência papal
tão "cordial" e que tanto o "reconfortou", dom Helder faz crer que nada
do que declarou é contrário às diretrizes que — presumivelmente —
acabava de receber de sua santidade.
* * *
Há,
esparsos pelo Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, 2.000.368 católicos
que pediram ao Santo Padre providências para que cesse a infiltração
comunista em meios católicos. Entre os signatários do gravíssimo
documento estão ministros de Estado, altas personalidades do mundo
cultural, social e político, figuras exponenciais do clero e das Forças
Armadas etc.
Até
agora, a mensagem tão reverente e filial está sem resposta.
Ponho-me na pele de um leitor comum. Diante das declarações de dom
Helder, e do silêncio até agora mantido pelo Vaticano sobre o pedido de
dois milhões de fiéis anticomunistas, compreendo que esse leitor — um
tanto desavisado e ingênuo como é o geral deles — fique confuso e
perplexo. E isto tanto mais quanto os comunistas não perderam ocasião de
triunfar com o "êxito" de dom Helder.
Na
Itália, com efeito, o único jornal a dar importância à entrevista de dom
Helder foi o diário "Unità", órgão do Partido Comunista, que publicou
toda a matéria realçada por um título de chamada na primeira página bem
ao lado de uma fotografia de policiais fazendo uma carga de cavalaria
contra desordeiros, à saída de uma igreja no Rio.
* * *
Se o
Vaticano for devidamente informado de todo este complexo de fatos,
criado pelas declarações do arcebispo vermelho, e se condoer da
perplexidade cruel em que estas põem o homem da rua, temos de estar
certos de que tomará uma atitude esclarecedora. Qual seria esta? Um
desmentido às declarações de dom Helder? Ou — se quiser poupar este —
uma resposta alentadora ao abaixo-assinado da TFP? É problema de
pormenor, para cuja solução sobram ao Vaticano classe, tradição e
experiência para resolver.