25 de
janeiro de 1970
O
direito de saber
Um
repetido contato com o público dos países da Europa Ocidental deixou-me
absolutamente convicto de que poucos povos acompanham, como o nosso, os
acontecimentos internacionais.
A
respeito das greves que têm sacudido a Itália, por exemplo, e da crise
ministerial que ali se vai avolumando, estou persuadido de que o
brasileiro de cultura mediana possui conhecimentos sensivelmente mais
pormenorizados do que o francês ou o austríaco de igual nível. Não se
pense que a razão disto se encontra no opulento noticiário internacional
de nossa imprensa, superior habitualmente ao noticiário dos jornais
europeus. O contrário é que é verdade. Porque o brasileiro se interessa
vivamente pelo ocorrido em todo o mundo, é que a nossa imprensa lho
relata tão largamente. Diz-se que os jornais modelam o público. Mais
verdade ainda é que o público modela os jornais.
Diria
pouco quem se cingisse a afirmar que o brasileiro lê noticiários
internacionais amplos. Ele medita sobre eles, os comenta, e deles extrai
observações que depois aproveita para resolver problemas domésticos. Em
outros termos, o brasileiro possui o senso do universal. É esta uma de
nossas riquezas de alma. E felicito nossa imprensa por atender com tanta
fidelidade às exigências desse senso do universal, que nos distingue.
* * *
Por
isto mesmo, qualquer enclausuramento da opinião nacional nos tabiques de
uma informação dirigida, que lhe subtraia alguma parcela ponderável do
que no Exterior ocorre, a mim se afigura como um atentado a um dos
traços mais nobres do espírito brasileiro.
Ora
acontece que, a respeito do modo por que largos setores europeus estão
recebendo o novo texto da Missa — o novo "Ordo Missae", se quisermos
usar a expressão correta — parece-me que o público nacional está muito
pouco informado. Penso contribuir para que se remedeie a lacuna assim
criada, com algumas notícias típicas, que passarei a enunciar. Não me
assusta o melindroso do assunto, precisamente porque discordo da idéia
de que se deva sujeitar a uma filtragem de notícias melindrosas um povo
inteligente — e de tanta Fé — como o nosso.
Limito-me, na nota de hoje, a noticiar. Noticiar — repito — é atender a
um direito do público. É cumprir um dever de jornalista. Atendo aqui a
esse direito. E cumpro meu dever.
* * *
Como
todos sabem, a Missa é o ato mais augusto do culto católico, pois renova
de modo incruento o Sacrifício do Calvário. Tudo quanto toca na Missa
toca, pois, no que a Religião tem de mais nobre, sensível e vital. O
papa Paulo VI instituiu recentemente um "Ordo Missae", diferente em
vários pontos muito importantes do "Ordo" anterior, decretado por São
Pio V, no séc. XVI. Não espanta, pois, que a atenção de todos os
teólogos se tenha fixado, desde logo, sobre o novo texto.
Ora,
se em muitos ambientes este foi vivamente aplaudido, e em outros foi
recebido com uma confiante despreocupação, dois cardeais — duas
personalidades muito chegadas, pois, ao Papa — não trepidaram em
escrever a Paulo VI uma carta em que manifestavam viva apreensão e
fundas reservas quanto ao novo "Ordo". E, mais ainda, os dois purpurados
julgaram dever comunicar ao público a carta que haviam enviado ao
soberano Pontífice.
Não
veja o leitor, neste episódio, um ato de contestação teatral, destes que
se vão tornando banais na vida tragicamente conturbada da Igreja. Não é
uma atroada à maneira do cardeal Suenens. Nem um ato de oposição, no
estilo do cardeal Alfrink. Desta vez, os cardeais em causa são pessoas
famosas exatamente por sua disciplina para com o Papado. Trata-se do
célebre cardeal Ottaviani, secretário emérito da Sagrada Congregação
para a Doutrina da Fé. E do grande latinista cardeal Bacci. É
particularmente expressivo que, precisamente deles, tenha partido esse
brado pesado, comedido e respeitoso — mas que nem por isto deixa de ser
um brado — a respeito do novo texto da Missa.
Há
tempos, as agências telegráficas publicaram algo sobre esta carta. Não
dispondo aqui do espaço necessário para a transcrever. Menciono apenas
que, segundo os dois cardeais, o novo "Ordo" apresenta a Missa, não como
um sacrifício conforme à doutrina católica, mas como uma ceia. E isto —
acentuam eles — se aproxima do conceito protestante. Creio não ser
preciso dizer mais, para que o leitor se dê conta da gravidade do
pronunciamento dos dois cardeais...
No "Courrier
de Rome" (25-7), leio uma declaração que, procedente de fonte
diametralmente oposta, caminha para a conclusão a que chegaram os dois
cardeais. Uma das mais célebres instituições protestantes da atualidade
é o convento de Taizé, na França. Ora, em artigo publicado no diário
católico parisiense "La Croix" o "irmão" Thurian, de Taizé, escreveu: "A
reforma litúrgica deu um passo notável (com o "Ordo" novo) no campo do
ecumenismo. Ela se acercou das próprias formas litúrgicas da Igreja
luterana".
Tudo
isto talvez explique o fato de que uma parte ponderável do Clero francês
continue a celebrar a Missa no texto de São Pio V. Recebi de Paris a
relação mimeografada, contendo a relação "incompleta" das igrejas em que
se celebra a Missa "à antiga", com os respectivos horários. Trata-se
nada menos de 19 igrejas e capelas em Paris, e 102 em 36 cidades de
província.
* * *
Talvez espante ainda mais o leitor o fato de que, da catolicíssima
Espanha, tenha partido uma atitude ainda mais impressionante. Na revista
"Que Pasa?" de Madrid (n.º 315, de 10 deste mês), leio que a Associação
de Sacerdotes e Religiosos de Santo Antônio Maria Claret — em cujas
fileiras estão inscritos nada menos que 6 mil sacerdotes — enviou uma
carta ao pe. A. Bugnini, secretário da Sagrada Congregação para o Culto
Divino, reputado o autor do novo "Ordo", na qual lemos esta frase: "Nós,
sacerdotes católicos, não podemos celebrar uma Missa da qual o sr.
Thurian, de Taizé, declarou que poderia celebrá-la sem deixar de ser
protestante. A heresia não pode jamais (nos) ser imposta por
obediência". Assim, para essa prestigiosa Associação sacerdotal, não
celebrar a Missa segundo o texto novo é um imperativo de consciência.
Para
voltar à França, forneço aos leitores ainda uma notícia, aliás apenas
colateral ao assunto. "La Pensée Catholique", editada em Paris pelo Abbé
Luc Lefevre, é um dos mais altos órgãos da cultura religiosa
contemporânea. No no 122
(1969) dessa revista (pp. 53-54), leio que em não pequeno número de
igrejas os padres progressistas fazem uma estrepitosa pressão moral para
que todas, absolutamente todas as pessoas presentes comunguem. A sagrada
hóstia é recebida na mão, e não mais na boca. Muitos dos presentes, não
se sentindo em condições de comungar, levam as hóstias de volta para
seus lugares. E ali as deixam. De sorte que, terminada a Missa, se
encontram hóstias atiradas nos bancos, ou até rolando pelo chão. Isto já
não é raro em certas igrejas.
A
hóstia é o próprio corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo...
* * *
Não é
bem verdade que estas são coisas que nosso público tem o direito, o
triste direito de saber?
O
povo católico mais numeroso da terra é o brasileiro. Lúcido,
inteligente, marcado pelo senso do universal, não pode ficar na
ignorância da controvérsia que o novo texto da Missa vai despertando.
Piedoso, sinceramente piedoso, ele não pode deixar de se interessar —
por outro lado — pelo que conta a "Pensée Catholique" e que constitui,
não uma controvérsia mas uma ignomínia.