Folha de S. Paulo,
18 de
janeiro de 1970
"Modus
moriendi"
Para
a formação dos candidatos ao Sacerdócio nascidos em Roma, existem
naturalmente, na Cidade Eterna, diversos seminários. A par destes, há
entretanto também outros estabelecimentos de formação eclesiástica
destinados a jovens das mais diversas nações. E é explicável. Com
efeito, Roma sede do Papado, é por definição o centro da ortodoxia. É,
pois, natural, que os Bispos do mundo inteiro desejem enviar para lá o
maior número de seminaristas, com o intuito de obter, desse modo,
neo-sacerdotes profundamente imbuídos do espírito da Igreja.
É bem
de ver que esse costume, de si excelente, produz uma conseqüência
preciosa. É que os Papas dispõem, assim, dos meios para modelar
diretamente numerosos jovens de todas as nações, que por sua própria
formação moral e intelectual poderão, de futuro, ocupar postos de relevo
nas atividades católicas dos respectivos países.
As
grandes universidades eclesiásticas romanas sempre regurgitaram, pois,
de alunos de todos os continentes. Paralelamente a elas existem as casas
destinadas à residência dos seminaristas. Essas casas — chamadas
habitualmente Colégios — agrupam geralmente os jovens por nação. Assim
temos o Colégio Brasileiro, como o Francês, o Germânico etc.
No
seu conjunto, insisto, este sistema constitui um valiosíssimo
instrumento para que o Papado exerça a fundo sua missão providencial na
Igreja.
* * *
Como
bem se pode imaginar, o zelo dos papas, a partir de 1917, se voltou
especialmente para os colégios das nações subjugadas pelo comunismo. Os
recrutas de tais colégios são, habitualmente, jovens nascidos de
famílias que, não se conformando com o jugo comunista, conseguiram
refugiar-se no mundo livre. Ou então jovens detrás da cortina de ferro
que enfrentando obstáculos e riscos fáceis de se imaginar, conseguiram
chegar até Roma.
De
tais jovens, a Igreja tem os mais preciosos serviços a esperar: o
incremento da fé entre os refugiados, a infiltração por detrás da
cortina de ferro, etc.
Por
isto mesmo, também, os regimes totalitários sempre tentaram infiltrar
espiões e agentes em tais estabelecimentos. Ainda na semana passada, as
agências telegráficas se referiram a documentos recentemente publicados,
os quais revelam, de um lado, a infiltração do nazismo nos seminários
romanos, durante a última guerra, e, do outro lado, a infiltração de
agentes de Stalin no Vaticano.
Nada
mais explicável, pois, do que procurar a Santa Sé, com extremos de
solicitude, proteger contra tais infiltrações especialmente os colégios
de nações bolchevizadas.
* * *
É no
contexto destes fatos, que se deve avaliar o verdadeiro alcance da
notícia publicada por um órgão da imprensa paulista, na semana passada:
o novo diretor do Instituto Magiar de Roma, monsenhor Fabrian Arpad, foi
designado pela Santa Sé mediante prévio "agreement" do governo de
Budapeste — pois daqui por diante os reitores dos colégios de nações
comunistas não serão mais nomeados sem o "placet" dos respectivos
governos.
Para
alguém obter este "placet" — ponderamos — deverá evidentemente ter a
simpatia dos comunistas de sua Pátria. E para ter essa simpatia, o
mínimo necessário é não ser incômodo ao comunismo... Ora, sendo a
filosofia e o regime econômico-social comunistas exatamente o contrário
da Religião e da civilização católicas, é bem de se ver que longa
seqüela de efeitos temíveis decorrem da nomeação de reitores daqueles
Colégios segundo a nova praxe.
Tão
funestos são esses resultados, que à primeira vista nos sentiríamos
propensos a duvidar da notícia. Mas, infelizmente, nos dias revoltos e
confusos que correm, essa dúvida não pode ser tão consistente quanto
outrora.
Inclusive se pode conjeturar toda uma série de pressões e ameaças, as
quais, para evitar mal maior, possam ter inclinado o Vaticano a
aceitação de tal risco.
Mas
estas considerações estão à margem de meu tema. Minha intenção, no caso,
não é de estudar a atitude da Santa Sé, mas a do governo húngaro
comunista.
* * *
Por
mil jeitos e trejeitos propagandísticos, o comunismo procura fazer crer
que está pronto para um "degelo" em relação à Igreja. E propenso, em
conseqüência, a dar a esta uma certa liberdade de ação para além da
lúgubre cortina.
Um "modus
vivendi" com a Santa Sé poderia regulamentar essa liberdade. Era só a
Igreja não incomodar o comunismo... Assim pensam os ingênuos...
À
vista disto, pergunto como crer na sinceridade destes propósitos, se até
em Roma a "longa manus" do comunismo procura coarctar a liberdade da
Igreja... e logo em matéria tão imensamente delicada. Se tal acontece,
por exemplo, no Colégio Húngaro de Roma, que está tão distante de
Budapeste, como duvidar de que isto, ou algo pior ainda, ocorra
continuamente em cada sacristia e em cada convento da Hungria atual?
Com
estas intenções da parte dos comunistas, o que poderá ser um "modus
vivendi" com a Igreja? O que é — pergunto — um contrato em que uma das
partes, a Igreja, entra disposta a cumprir todas as suas obrigações, e a
outra entre com o intuito de por chicana e má intenção na execução de
cada cláusula?
Um "modus
vivendi", não. Um "modus moriendi", isto sim.
Digo-o para alertar os perpétuos sonhadores de utópicos acordos com o
comunismo...