Folha de S. Paulo,
11 de
janeiro de 1970
Turismo do sossego
Há
diferentes modos de entender as férias.
Para
quase todo o mundo significam elas correria. E correria atrás de
emoções. O estilo de emoções, como é natural, varia. Panoramas de mar ou
de montanha, hotéis de luxo ou contato com a selva, imersão no passado,
no clássico roteiro de maravilhas em Minas ou na Bahia, ou antegosto da
loucura psicodélica com que nos ameaça o dia de amanhã: tudo vale desde
que traga emoções. Emoções violentas, sensacionais colhidas a 120 por
hora, que se sobreponham às trepidações e aos sustos da vida quotidiana.
O que
pensar deste sistema de fazer férias? — Reduzamos o problema a seus
termos mais simples. Desde que cada emoção importe em uma fadiga, o
pressuposto dos repousos emocionantes consiste em que uma fadiga se cura
arcando com outra fadiga de gênero diverso. Ora esta solução me parece
questionável. Pois o bom senso inclina a pensar que o remédio próprio
para o cansaço, em lugar de ser outro cansaço... é o descanso. Ao menos
assim opinaria o Conselheiro Acácio.
Mas
como descansar, então? — A resposta não é fácil. Contudo, certamente não
consiste em terminar as férias de língua de fora.
De
minha parte, nada me parece mais arriscado do que aconselhar aos outros
como descansar. Quanto a mim encontrei para este ano uma fórmula feliz.
E quero comunicá-la aos leitores.
Trata-se, bem entendido, do repouso de um paulistano. Isto é, de um ente
humano que vive, come e dorme na barulheira, anda na buraqueira, respira
um ar empestado, trabalha num ritmo extenuante, e é forçado, pela
ferocidade das circunstâncias, a fazer na correria até as coisas que de
si deveriam ser mais tranqüilas e distensivas, como comprar, dar e
receber presentes de Natal. Eu estava, pois, com saudades de
normalidade. Queria encontrar um canto onde pudesse inserir-me em uma
vida diferente. Uma vida calma, de ritmo humano, que me desse ocasião
para imergir na estabilidade, no sossego, no equilíbrio e na sadia
despreocupação dos outros. Nada de obras de arte excepcionais, riquezas
estonteantes, luxos aliciantes e, menos ainda, de psicodelismos
horripilantes.
Fartura proporcionada, trabalho sério e calmo, bem-estar e disposição
para viver, equilíbrio generalizado dos homens e das coisas, foi o que
encontrei em uma cidade não distante de São Paulo. E encontrei de
surpresa. Passando férias na fazenda de amigos, fui espairecer como de
estilo na cidade próxima. E aí dei com este oásis. Também, não perdi
mais um só dia. Todas as tardes, feita a sesta, ia eu da calma do campo
para a da cidade, trocando, não um cansaço pelo outro, mas uma forma de
sossego pela outra. E assim fiz meu "turismo do sossego".
* * *
Três
praças, cada qual com sua fisionomia própria, dão o tom na cidade.
Entreligam-nas ruas com árvores em flor, calçadas por um "petit pavé" do
melhor gosto, conservado de modo a dar inveja ao paulistano. Essas ruas
compõem a espinha dorsal da cidade. Pelas cercanias, um casario alegre e
despretensioso, vai galgando montanhas de pequena altura e espraiando-se
para o rio, onde a cidade se mescla com a natureza campestre. Um pouco
por toda parte, se notam as casas térreas do fim do Império e primórdios
da República. Construções de fachadas calmas e sisudas, dando em geral
para a rua, com beirais de portas e janelas bem ornamentadas e
comodamente esparramados em amplos terrenos propícios à sombra e ao
descanso.
A
praça principal tem como elemento dominante uma Matriz, modelo de bom
gosto e despretensão. Forte, séria, sisuda, é o verdadeiro centro de
gravidade espiritual da cidade. De um lado e do outro, a par de
construções antigas, moradias mais recentes, agências bancárias em
estilo moderno, e até um "arranha-céu". Mas a Matriz parece não perceber
nada disto, imersa que está na placidez de seus tempos de outrora. E
quando bate o sino, seus sons descem harmônicos e se espraiam na praça
ajardinada onde encontram nas pessoas e nas coisas, a mesma ressonância
dos tempos idos.
Outra
praça próxima é também formada em torno de uma igreja. Mas, esta, leve,
festiva, com algo do gracioso próprio às construções coloniais. Ela
parece sorrir ingenuamente e convidar para o mesmo sorriso os que
passam.
A
terceira praça é propriamente um jardim público: um grande viveiro de
aves, arvoredo frondoso, criançada a correr, e a um canto um velho bonde
que parece dormir o sono pré-letal do macróbio. A alguma distância,
aparece pintada com gosto a fachada senhorial do "palacinho" de um Barão
do Império.
Nas
ruas, a gente que trabalha passa sem correr. Da janela de uma residência
térrea, uma dona de casa que, interrompendo placidamente os afazeres,
mantém uma conversa sobre tudo e sobre nada com duas amigas de passagem
pela rua. Na loja próxima, bem fornecida, sem estar entretanto
abarrotada, os fregueses entram sem pressa, são atendidos sem demora,
escolhem com calma e saem contentes, se cumprimentam e se estimam. Em
suma, o passado ali não embolorou, nem o presente enlouqueceu, nem o
futuro amedronta. Vive-se bem, a vida de todos os dias.
Qual
é esta cidade, que talvez pareça banal aos caçadores de emoções, e aos
turistas ávidos de verdadeiro repouso se afigurará, quiçá, um éden algum
tanto quimérico? — Ela merece bem o nome que usa. Esse nome lhe vem da
excelsa Patrona, que parece resguardá-la, ampará-la da estagnação e da
modorra de certos ambientes antigos, como das tragédias, dos excessos e
dos tumultos modernos. A Patrona é Nossa Senhora do Amparo. Já se vê
qual é o nome da cidade.
Amparo - São Paulo
Amparo irradia sua placidez digna, familiar e cristã para toda a
redondeza. A zona tem qualquer coisa de afável que a torna
inconfundível. Eu diria que é uma certa forma de saúde de alma, que
irradia da Matriz e se difunde em ondas concêntricas até bem ao longe.
Não será a crença tranqüilizadora, no amparo da Padroeira, mais do que
isto ainda, a realidade desse amparo, a estender-se como um manto sobre
a região?