Folha de S. Paulo,
21 de
dezembro de 1969
Sacerdotes, militares, juizes e mestres
Fim
de ano. A mocidade se prepara febrilmente para os vestibulares. É a
etapa suprema para a solução da magna questão: que carreira escolher?
Inúmeros dentre eles fazem, no momento, o balanço último e decisivo
entre os prós e os contras das várias carreiras em perspectiva. E
naturalmente, cada qual fixa sua escolha em função de dados pessoais: os
atrativos que sentem por esta ou aquela matéria, as promessas, as lutas
e as incertezas de tal ou tal outra situação futura, etc. Entretanto,
esta escolha afeta também — e altamente — o interesse nacional. É sobre
este último ponto que convido o leitor para uma reflexão.
* * *
É
fundamental, para um país, ter os homens certos nos lugares certos. Isto
importa — quanto ao dia de amanhã — em que, para as carreiras-chave,
afluam o que poderíamos chamar os jovens-chave. Ou seja, os moços que a
natureza e a educação dotaram do maior potencial de fé, de moralidade,
de talento, de dinamismo, de intrepidez, de sadia obstinação no esforço
e na luta. Se a compacta maioria dos moços assim dotados se orienta para
um só (ainda que nobilíssimo) tipo de carreiras, deixará
insuficientemente guarnecidos no futuro próximo, muitos postos-chave. E
com isto o próprio futuro do país poderá periclitar...
Há
certas carreiras de importância tal, que não basta ao país serem suas
fileiras habitualmente preenchidas por homens capazes e probos. É
preciso que, nas situações pinaculares dessas carreiras, haja bom número
de pessoas de valor exponencial, aptas a resolver as situações críticas
que a vida pública traz sempre e capazes, ademais, de elevar por seu
exemplo o "tonus" da produção dos homens normalmente competentes que as
lotam.
Cumpre aprofundar este último ponto. Um grande profissional difunde em
torno de si como que uma luz, a qual comunica um redobramento de
categoria e eficiência a toda a massa de seus colegas. No Brasil, por
exemplo, muita gente bem dotada toca excelentemente piano porque temos
Guiomar Novaes. Não a tivéssemos, e o "tonus" da produção artística
dessa gente — entretanto bem dotada, insisto — seria de menor categoria.
Assim, o efeito difuso da presença das figuras pinaculares em uma
carreira ou profissão vai muito além da mera atuação individual dessas
figuras. Tais pessoas elevam toda a sua classe.
Tudo
isto posto, nasce uma pergunta: a mocidade brasileira se distribui
harmonicamente pelas várias carreiras-chave?
* * *
Serei
concreto. Sem pretender fazer uma tabela de todas as carreiras-chave,
quatro há que indiscutivelmente o são: o sacerdócio, as armas, a
magistratura e o magistério. Em outros termos, um país que, nessas
carreiras, tenha um pequeno contingente de homens exponenciais, está
exposto a vegetar sem progresso autêntico nem verdadeira glória, nos
períodos tranqüilos; e a sucumbir nos períodos tormentosos. Ora, não são
de tranqüilidade os prognósticos para os dias de amanhã...
Assim, pergunto: essas carreiras contam, nas suas condições presentes,
com todos os fatores para atrair à escola de um forte contingente de
jovens-chave?
Compreendo bem que carreiras tão elevadas devem ser desposadas muito
mais por ideal do que por vantagens pessoais. Mas é justo, é legítimo
que um jovem idealista pense no apoio que deve a seus pais, e, excetuado
o seminarista, à família que vá fundar. Essas quatro carreiras-chave,
que perspectiva oferecem neste sentido? E, ademais, o que se faz em
nosso ambiente, para suscitar, prestigiar e firmar esse idealismo?
* * *
Prefiro não tratar — nas circunstâncias presentes — do espinhoso
problema do sacerdócio. Isto é, da carreira mais alta, mais santa, mais
admirável que seja dado a um homem trilhar. Doe-me por demais fazê-lo. E
tenho para isto motivos tragicamente óbvios dos quais um salta aos
olhos: é a extrema dificuldade de se indicar aos jovens, seminários em
que a peçonha do progressismo não se tenha esgueirado, ou não se possa
introduzir de um momento para outro.
Mas
pensemos nas três outras carreiras. Uma característica de todo povo em
ascensão, ou no fastígio, é que, em seu seio, o militar, o magistrado e
o professor estão nimbados por uma auréola que iguala e supera as
maiores dentre as maiores. O tipo humano que cada uma destas carreiras
modela, é tido, em povos tais, não só por admissível e correto, mas por
admirável, pleno, sublime. Povos assim cultivam uma profunda admiração,
uma lúcida compreensão, um enternecido enlevo pelos trabalhos, pelas
fadigas, pelas lutas que essas carreiras trazem. E se empenham em
recompensar, de todos os modos cabíveis, os que nelas autenticamente se
imolam.
Pergunto agora: isto é inteiramente assim na juventude do Brasil atual?
— Respondamos com franqueza.
A
mentalidade desenvolvimentista de largos setores de nossa mocidade tem
um olho penetrante, o qual vê, com uma acuidade extrema, a importância
da produção econômica, e o que há de atraente nas atividades técnicas,
que esta exige. Porém, a acuidade do outro olho vai morrendo. Sim, o
outro olho deveria ver — com clareza ainda maior — que o desenvolvimento
plenamente humano supõe propulsão ainda mais forte nas coisas do
espírito que nas da matéria. Ora em numerosos ambientes, o sentido da
vida vai sendo cada vez mais o dinheiro. De onde, em muitas famílias uma
propensão a encaminhar os jovens sempre mais para as carreiras
lucrativas. Daí também uma tendência, nos orçamentos públicos e
privados, a pagar fartamente os técnicos-chave da propulsão econômica. E
a tornar, de medíocre para suficiente, a remuneração do militar, do
mestre ou do juiz.
Considerem-se as presentes condições de vida de um juiz, militar ou
professor sob o aspecto do lucro, não seria — com freqüência — mais
vantajoso ser, já não digo um técnico, mas proprietário de um botequim
muito bem afreguesado? Ora, pergunto, é isto justo, cabível, decoroso?
Facilita-se, assim, a indispensável distribuição dos jovens-chave pelas
carreiras-chave? Que futuro se nos prepara com este desenvolvimentismo
caolho?
* * *
A
solução fundamental está, a meu ver, em que as famílias, a imprensa, o
rádio, a televisão etc., promovam uma correção urgente deste fenômeno de
"caolhização". Que assim se reavive, em todos os setores da juventude, a
admiração, um tanto esmaecida pelas carreiras-chave do desenvolvimento
espiritual. E também em que — custe o que custar — nos orçamentos
públicos e privados se faça um esforço urgente, sério, eficaz, para
tornar essas carreiras muito bem remuneradas e atraentes.
* * *
Uma
objeção: a carreira militar contribui, como as de juiz e professor, para
o desenvolvimento espiritual de um país?
A
resposta exigiria um espaço de que não disponho. Brevissimamente
respondo que sim. Um dos critérios para aquilatar o valor de um povo
autenticamente pacífico é a intensidade de sua admiração pelas virtudes
militares. Em certo sentido, nada é mais precioso do que a paz, mas a
paz que importe numa subestima dos valores militares, se putrefaz.
E a putrefação da paz... gera guerras.