Folha de S. Paulo,
14 de
dezembro de 1969
"Prá
frente", ao sopro da "generosidade"
O
trauma causado nos melhores setores da opinião pública, pela lúgubre
chacina de Los Angeles talvez não lhes tenha permitido ainda uma análise
lúcida do fato.
Tal
análise, entretanto, lhes é necessária. E até urgentemente necessária.
Pois a primeira e mais violenta impressão experimentada por aqueles
setores, com o fato, foi de surpresa. A mim não surpreendeu o fato.
Surpreendeu-me, isto sim, que com ele tanta gente boa tenha ficado
surpresa. Essa gente precisa estar vivendo na estratosfera, para ter
caído assim das nuvens com o feito de "Satã" e seus adeptos. Ora, é
grave, é muito grave para o bem comum da humanidade, que os setores mais
aptos a influenciar favoravelmente o curso das coisas estejam de tal
maneira à margem destas. Em conseqüência, convido-os a uma meditação
sumária sobre aquela lúgubre ocorrência.
* * *
Esquematizemos as coisas com base nas notícias da imprensa diária.
1)
Charles Manson, de 34 anos, filho de uma prostituta presidiária —
ex-sentenciado ele próprio, por vários delitos de regular gravidade —
dotado, aliás, de certa simpatia pessoal e de algumas qualidades
musicais, entrou em relação com vários jovens "prá frente", com os quais
formou um grupo. Outrora, as normas em vigor levavam todo jovem, e
especialmente toda jovem, a manter à distância um elemento destes. Um
colega só lhe daria sua amizade em circunstâncias muito especiais, e
depois das mais sérias provas de emenda. Mas "idéias generosas"
eliminaram, em muitos ambientes, esta precaução por demais "estrita".
Não espanta, pois, que Manson tenha podido, assim, aproximar-se de quem
entendeu.
2)
Hipnotizador possante, semeando meio magicamente o bem-estar em torno de
si, "cantando como um anjo", dizem os telegramas, é claro que Manson
divertia os companheiros. E um dos condimentos desse poder de diversão
era, sem dúvida, a extravagância. Seu grupo de hippies, vivendo
alegremente à margem de todos os princípios de bom senso, de higiene, de
correção, adotou o nomadismo, e passou a perambular de um lugar para o
outro. Tudo isto chocaria os princípios "de outrora". Dar a liderança de
um grupo a um ex-sentenciado era uma vergonha. Aceitar o poder hipnótico
dele, uma loucura. Expatriar-se das rodas de gente limpa, correta e
decente, um sinal de demência. Adotar o nomadismo, um desatino, um pacto
ignóbil com a vagabundagem. Mas, entre os espectadores do fenômeno,
muita gente "generosa" por certo sorriu: Por que coarctar a mocidade nos
caprichos que lhe são tão próprios? Aos velhos tabus de outrora faltava
generosidade. Eles proibiam, vetavam, comprimiam. Portanto encomplexavam.
A bondade consiste em tolerar, em permitir, em concordar. Viva, pois, o
bando alegre de Manson. Com o tempo voltarão seus membros,
espontaneamente, ao bom senso... É o que dizia, sobre Manson e sua
clique, muita gente, que criava um ambiente cômodo e "generoso" para
a expansão dessas loucuras.
3)
Mas, objetaria alguém "fora do vento", que poderia sair dessa
promiscuidade sexual entre os neonômades? A imensa família mental dos
generosos tem uma resposta à flor dos lábios, para essa pergunta: — Ora
esta, por que olhar as coisas tão de perto? O que vai sair da
promiscuidade? O amor, o prazer. Deixem os jovens que se divirtam. É da
idade. Filhos, não há que temê-los, pois aí está a pílula... O mais, que
importa? Estamos na aurora da sociedade permissiva, em que por largueza
de idéias tudo se aceita. E dá certo. Em Londres realizou-se um ato
sexual em pleno palco, num teatro cheio: e a casa não caiu. Na Suécia
abriu-se a porta para as ligações homossexuais. E a Suécia aí está,
firme, organizada e próspera. Então, que utilidade têm os tabus da velha
civilização, se tudo se passa bem sem eles? Assim argumentam os
"generosos".
4)
Vistos com "compreensão" por todo um setor de gente "decente-permissiva"
Manson e seu bando foram valentemente "prá frente", permitindo-se mais e
mais desatinados. Vontade de sensações fortes? Aí está o haxixe ou o
LSD. Vontade de violentas orgias? É só atirar-se nelas. Vontade de
experiências mentais aventurosas? Manson está à mão para abrir as portas
das sombrias regiões do hipnotismo. O gosto da extravagância é
insaciável. Da originalidade estúpida e chocante ele convida a passar
para a sujeira desgrenhada. Desta, impele a rolar para a corrupção. A
corrupção, por seu próprio dinamismo, estoura em orgia. Posto assim tudo
de pernas para o ar na existência terrena, a ofensiva da extravagância
parte rumo ao extraterreno. Sempre "prá frente", o passo seguinte é a
blasfêmia. Entra-se pelo misticismo satanista, ultraja-se Deus, adora-se
o demônio etc.
5) Um
belo dia, nasce a vontade de fazer mais uma coisa proibida. Uma coisa
bem nova e bem proibida. Um crime, por exemplo. E na lógica
"permissiva", não há motivo sério para recuar diante de mais este
"tabu": comete-se pois o crime. Para que o crime seja bem "prá frente"
em seu gênero, é preciso que seja bem sádico, bem cruel, bem
horripilante. Quanto mais melhor. Mata-se então Sharon Tate e sua
"entourage". Mata-se o velho casal Labianca. Tudo por razões fúteis, com
agravantes de punhaladas, chicotadas, tatuagens... ritos cruentos feitos
para adorar o demônio!
Não é
tudo claro, concatenado, lógico?
Pobres canalhas de Manson e congêneres. Merecem a cadeira elétrica,
segundo a lei norte-americana. São culpados, é certo...
Serão
eles os mais culpados?
* * *
Não,
mil vezes não.
Tivessem eles encontrado em torno de si, na gente decente, uma opinião
pública firme e unânime, que lhes incutisse o respeito religioso à lei
moral, às conveniências, às boas maneiras, ao asseio, e provavelmente
logo nos primeiros passos teriam parado ou até recuado.
Mas
eles encontraram, na orla do mau caminho, a cumplicidade, ora imbecil
ora safadamente demagógica, dos "generosos". Sentiram-se impunes,
"compreendidos" e até veladamente estimulados em círculos "generosos".
Esses
"generosos" bem mereceriam que se lhes fizesse algum dia o relato de
corpo inteiro. São amáveis para com os maus, mas verdugos dos bons.
Sabem intimidar e perseguir com mil sarcasmos quem discorda de sua
"generosidade". Não recuam diante dos "slogans" mais agressivos: "Você é
retrogrado, reacionário, abafado, despótico, descaridoso", e lá vai a
cantilena.
Mas
sorriem para toda forma de imprudência, extravagância e desatino. E
assim, com essa "generosidade" que tem mão para o mal e contramão para o
bem, a juventude encontra pista livre para os rumos cujo último
paradeiro é o crime.
* * *
Abriram os melhores setores da opinião os olhos para este papel dos
"generosos"? — Não se espantam do crime. É a coisa mais tragicamente
inevitável, neste clima cada vez mais dominado pelos "generosos",
"permissivos" e de "idéias largas".
Sim,
esses "generosos", são sempre iguais a si mesmos também em outros
campos. Dizendo-se católicos, abrem as portas do ateísmo. Dizendo-se
moderados, estão sempre a apoiar os comunistas, deste ou daquele modo. E
dizendo-se amigos de todos, têm sempre um "slogan" ultrajante para quem
põe o dedo na chaga de sua tonta ou falsa generosidade.