Folha de S. Paulo,
8 de
outubro de 1969
Concordo com Fidel, discordo do Monsenhor
Logo
que chegados à terra de exílio, os quinze comunistas "permutados" para
resgate do embaixador Elbrick foram festivamente acolhidos pelos seus
consectários brasileiros e mexicanos. Vivas, aplausos, homenagens, nada
lhes faltou. Mas parece que a maioria deles não se deram por saciados.
Treze foram a Cuba, a fim de receber novas manifestações.
Muito
protocolarmente, Fidel Castro os recebeu acompanhado do ministro das
Comunicações e de membros da comissão central do PC cubano. Como de
costume em tais circunstâncias, houve discursos de parte a parte.
Animados, os nossos conterrâneos pareciam ter experimentado até o desejo
de ficar morando em Cuba. Pois asseveraram, na ocasião, que gostariam de
"transformar Cuba em nossa casa".
Fidel
Castro, cujo temperamento bilioso é bem conhecido, talvez se tenha
irritado com a inopinada perspectiva de um convívio tão íntimo. Pois,
segundo noticiou a imprensa, ele se pôs a dissertar logo adiante sobre
temas cubanos, até se referir naturalmente ao plantio de cana. Como sabe
o leitor, o corte da cana é feito compulsoriamente pelos infelizes
cubanos, em favor do Estado. A essa altura de sua digressão, e correndo
o olhar viperino sobre os treze hóspedes — estudantes, ex-sargentos e
intelectualóides afeitos aos atrativos da vida de cidade — lhes disse
maliciosamente: "Se querem fazer exercício, podem cortar um pouco de
cana".
Francamente, achei ótima a idéia. É mesmo a primeira vez — e
provavelmente a última — em que me sinto de acordo com Fidel. Para curar
as efervescências dos treze citadinos, haverá coisa melhor do que um
forte e sadio trabalho de roça?
Os
treze visitantes não pensaram do mesmo modo. E, conhecendo a quantos
imprevistos está sujeito quem se encontra em país comunista, preferiram
passar sob silêncio o perigoso e incômodo convite...
* * *
Segundo as estatísticas do Instituto Pastoral da Holanda, há atualmente,
naquele país, 400 sacerdotes a menos do que em 1965. As ordenações
sacerdotais, que foram 421 em 1957, caíram para 145 em 1968. O total dos
padres que abandonam o ministério chegou a 7,2 por cento no ano passado.
Diante de tal massa de apostasias atuais e de outras presumivelmente
mais numerosas em perspectivas, o Episcopado holandês fundou até um
instituto especialmente destinado a ajudar os clérigos e religiosos que
abandonaram ou vão abandonar a vocação. Assim, é a própria hierarquia
que se empenha em tornar fácil e desembaraçado o caminho dos que
deixaram as fileiras sagradas.
Tudo
isto — mais o famigerado catecismo holandês, e tantas outras coisas —
importa em estranhas mudanças no modo de ser e de agir das autoridades
eclesiásticas batavas. Em conseqüência, muitos sacerdotes e leigos se
manifestam chocados e apreensivos. Duas organizações, "Confrontação" e
"Legião de São Miguel" coligam e representam na Holanda os católicos
que, contra tantos ventos, se mantém fiéis à tradição.
Falando sobre o descontentamento destes últimos, Mons. Zwartkruis, bispo
de Haarlem — ao que tudo indica, um progressista — informou à imprensa
que está recebendo muitas cartas exprimindo estranheza e desconcerto
diante do que vem acontecendo. O prelado asseverou "que tenta responder
a cada um". Depois acrescentou uma observação de arrepiar: "O notável no
caso é que, apesar de tudo, eles (os descontentes com o progressismo)
continuam acreditando na Igreja".
Cai o
número de vocações, o escândalo das apostasias se avoluma, os católicos
mais fiéis se assustam, e monsenhor continua tranqüilo. Só não
compreende que os filhos mais fiéis à Igreja ainda continuem a crer
nEla!
Para
chegar a este resultado, valia à pena fazer tão imensas reformas?
Por
certo, o sr. bispo de Haarlem, se consultado, apontaria como remédio a
tantos males, novas reformas ainda mais profundas e espetaculares...
Pois
a febre de mudar é assim. Para corrigir o efeito de uma mudança
desastrosa, ela induz sempre a mudanças ainda maiores.
* * *
Uma
amigo bávaro me escreveu assustado com o alastramento da mesma febre em
sua terra. Partidário do que ele chama de "reformas moderadas" na Igreja
e no Estado, assusta-se agora com as mil coisas que vê mudarem-se
vertiginosamente em torno dele. E para explicar seu modo de sentir à
situação, empregou em sua carta esta curiosa comparação: "Estou como
alguém que desejava trocar os peitoris das janelas, e nota que lhe vão
reformando a casa inteira, a ponto de a tornar irreconhecível".
É bem
real que a autoridade de S. Tomás pouco ou nada vale para os
progressistas. Mas os católicos firmes na doutrina continuam a acatar,
como sempre, o Doutor Angélico.
Assim, para uso deles, cito aqui um luminoso comentário da Suma
Teológica sobre a mudança das leis, tanto civis como eclesiásticas:
"Como já dissemos, a lei humana pode ser retamente mudada, na medida em
que essa mudança da lei, por si mesma, traz certo detrimento para o bem
da comunidade. Porque, para a observância da lei, contribui enormemente
o costume, a ponto de que aquilo que se faz contra o costume geral,
ainda que seja em si mesmo mais leve, na verdade parece mais pesado. Por
onde, mudada a lei, diminui sua capacidade de se impor, na medida em que
se destrói o costume".
Depois destas sábias palavras, tão próprias a curar o prurido
reformatório do qual tantos padecem hoje, o doutor comum estabelece as
condições para que uma mudança seja razoável: "Portanto, nunca deve ser
mudada a lei humana, a menos que, por outro lado, haja uma compensação
para o bem comum, proporcionada ao prejuízo causado pela mudança. E isto
se dá: que quando da nova disposição legal provém alguma utilidade
máxima e evidentíssima; que quando há máxima necessidade de mudança, ou
porque a lei costumeira contém manifesta iniqüidade, ou porque a sua
observância é sumamente nociva. Por isso, o jurisconsulto (romano) diz:
"no constituir uma nova lei, deve ser evidente sua utilidade, para que
seja justificado afastarmo-nos da lei antiga, que por muito tempo foi
tida como justa" (Suma Teológica, Ia, II ae, q. 97, art. 2, c. "Da
mudança das leis" — Os grifos são nossos).
Como
esta cautela no mudar destoa da mania de tudo inovar por toda a parte, a
todo propósito e a todo momento!
Que
magnífica lição de sabedoria... para os que são capazes de dela fazer
uso.