Folha de S. Paulo,
17 de
setembro de 1969
Sapo
de guarda-chuva, perigo máximo
A. D.
Zacharov, um dos físicos atômicos mais importantes da União Soviética,
em seu ensaio sobre o "Progresso, coexistência e liberdade intelectual",
deu da situação internacional um panorama que se pode resumir assim: 1)
se os Estados Unidos e a Rússia entrarem em guerra, a hecatombe atômica
é inevitável; 2) em conseqüência, a única saída para o mundo está na
implantação de um regime de coexistência pacífica que, de um lado,
harmonize inteiramente as relações entre os dois "grandes", e de outro
lado atenue os contrastes entre o mundo desenvolvido e o
subdesenvolvido; 3) a fim de que tal coexistência conduza realmente a
uma paz estável, cumpre que não seja simplesmente um modus vivendi
entre potências hostis. É preciso que a coexistência do futuro importe
na eliminação definitiva das causa de dissídio entre os Estados Unidos e
a Rússia. Obtido isto, Zacharov espera que não só tenhamos escapado ao
mais negro porvir, mas ingressemos numa fase áurea: os dois grandes se
desarmarão e destinarão aos subdesenvolvidos as toneladas de dólares e
rublos que invertem agora em material bélico. E assim o mundo,
unificado, conhecerá afinal a paz.
"Unificado", sim. Pois Zacharov sonha com duas espécies de unificação,
para chegar à paz. A primeira seria uma fusão do comunismo com o
capitalismo, por meio da qual Ocidente e Oriente adotariam um mesmo
estilo de pensamento e de vida, eliminando, por esta forma, mil causas
de mútuas desinteligências. A segunda modalidade de unificação
consistiria na fusão de todos os países em uma República Universal.
Como
obter essas duas fusões? A segunda parece um corolário da primeira.
Assim, ocupemo-nos só com a primeira.
Em
dois artigos recentes, publicados no conhecido diário madrilenho "Ya", o
sr. Luciano Perena apresenta uma síntese clara das elucubrações do
cientista soviético. Cita ele palavras textuais de Zacharov: é preciso
que "tanto o capitalismo quanto o socialismo" estejam "na disposição de
realizar um progresso a longo prazo, assimilando cada um os elementos
positivos do outro, e operando assim uma mútua aproximação nos aspectos
fundamentais".
Embora comunista, Zacharov reconhece a existência de "um autêntico
progresso econômico nos Estado Unidos e nos países capitalistas", e
afirma que estes "se servem realmente dos princípios do socialismo para
produzir uma efetiva melhora nas condições de vida dos trabalhadores".
Face a este quadro o comunismo em lugar de caminhar para uma guerra,
deveria "enobrecer" (!) o capitalismo "por seu exemplo e por outras
formas indiretas de pressão" e "fundir-se com ele".
De
outro lado, o comunismo deveria aceitar como fato positivo a
fragmentação ideológica que em seu seio se opera, e abrir-se assim para
um pluralismo político que o conduzisse à prática de uma democracia
política efetiva. É o que ele receberia de enriquecedor, do Ocidente.
Em
suma liberdade política efetiva, igualdade social absoluta, dirigismo
econômico total, eis a fórmula que Zacharov vê para que o mundo escape
do cataclismo atômico...
* * *
Se
algum "sapo" ler esta sumaríssima condensação do sonho zacharoviano,
estou certo de que estremecerá de gáudio a cada nova frase. Pois este
plano de difusão mundial de um comunismo que esmague a vida econômica e
social sob o mesmo rolo compressor e implante ao mesmo tempo a
liberal-democracia política, corresponde, ponto por ponto, às utopias,
aos pânicos e às velhacarias desse burgueses nédios e metidos em
automóveis de luxo, que passam pelos jovens da TFP, lhes atiram insultos
de inspiração comunista, e depois fogem numa corajosa disparada.
Confesso que considero mais perigoso para o Brasil o "sapo" do que o
terrorista. Pois não creio que o temperamento nacional se deslumbre com
a violência. Sinto-o, entretanto, sensível aos pregadores de todas as
conciliações... Tanto quiçá das falsas, quanto das verdadeiras. Assim,
julgo que a quimera zacharoviana — enquanto explicitação da fórmula
"sapo" — tem real importância entre nós. Desejo pois, opor-lhe algumas
objeções.
* * *
Serei
esquemático:
1 — a
II Guerra Mundial talvez tenha sido a mais cruenta da História. Quando
ela arrebentou, os beligerantes possuíam meios de destruição, de alcance
imprevisível — gases asfixiantes, "bombas" bacteriológicas etc. — dos
quais não fizeram uso por interesse mútuo. Agora que o perigo é tão
maior, o interesse mútuo manda, com redobrada força imperativa, que os
combatentes se abstenham da bomba de hidrogênio. Quanto às potências
ocidentais, ninguém duvida de que aceitarão com os comunistas o mesmo
convênio tácito ou secreto que cumpriram com os nazistas. Os comunistas
serão bastante cruéis para recusar este convênio? Zacharov e os "sapos"
concordarão, então, em que os comunistas são mais sanguinários do que o
próprio Hitler? Se não o são, a guerra atômica nada tem de inevitável...
2 —
Em 1939, Hitler colocou o mundo na alternativa de optar entre uma guerra
terrível e a aceitação da supremacia mundial do III Reich, bem
como da difusão universal do nazismo. Levando seu simbólico
guarda-chuva, Chamberlain foi a Munich para aceitar concessões que só
tiveram por efeito ensoberbecer e fortalecer o Führer
enlouquecido, e precipitar assim a guerra.
Afirmo que, analogamente, se o Ocidente for comunistizado, deformada a
sua estrutura social, deteriorada sua cultura, asfixiada sua economia
pelo dirigismo socialista, ficará ele muito mais exposto à sanha
conquistadora dos russos do que agora. Em outros termos, os meus
"sapos", acenando para os russos com o guarda-chuva chamberlainiano,
estão, a meu ver, precipitando a guerra que afirmam não desejar.
Mas,
dirá algum "sapo" que, segundo ele, as tensões internacionais já não são
ideológicas. Não vejo, então, como possa a cessação dessas tensões
trazer a paz.
3 —
Por fim, o auge da contradição está, na quimera "sapo", em reunir a
liberdade política e a tirania econômica. Pois num país onde toda a
economia depende do governo, a liberdade política é impossível.
Por
tudo isto, não adiro em ponto algum às elucubrações do "sapos", ganhos
desde já aos sinistros projetos zacharovianos.