Plinio Corrêa de Oliveira

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

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27 de agosto de 1969

O "plateau de fromages"

Há alguns anos, o comunismo internacional constituía um monolito doutrinário, cultural e político.

Posteriormente, esse monolito se foi fragmentando. Na Europa, surgiram os cismas iugoslavo e albanês. Na Ásia, abriu-se a imensa frincha com a China. Daí, decorreu o fracionamento dos meios comunistas de todo o orbe em duas tendência rivais, a pró-russa e a pró-chinesa. A revolução marcusiana de 1968 e a agitação checoslovaca tornaram — por sua vez — mais precisa a distinção, já antes esboçada entre o neo-comunismo liberal e até anárquico, e o comunismo soviético, ferrenhamente ditatorial.

Isto tudo, fora da Rússia. Dentro desta, também, o feitio monolítico do comunismo sofreu profundas alterações. Ao lado dos comunistas de velha cepa staliniana, apareceram os comunistas "degelados" do tipo Kruchev. Depois, surgiram os comunistas pós-kruchevianos, que parecem uma mistura de kruchevismo e stalinismo. Os pós-kruchevianos se bipartem, ainda, em pombos e falcões. E, por fim — a julgar pelas verbosas informações do escritor Kuznetsov — o comunismo russo vai perdendo a identidade consigo mesmo, e vai dando em algo de brutal e indefinido, que reserva em seu bojo toda espécie de surpresas. A chama do comunismo se teria refugiado no peito de alguns intelectuais perseguidos.

Como se vê, é tudo heterogeneidade e confusão. Dir-se-ia que os fragmentos do comunismo perderam seus contornos, derreteram, e acabaram por se transformar em um magma, no qual laivos dos mais diversos se encontram, se combinam ou se repelem, sem contudo deixar de fazer parte da mesma massa líquida.

Bem sei que, para o fato, têm aparecido múltiplas explicações: rivalidades de chefes e de clãs no interior da Rússia, choques de interesses nacionais dentro do bloco soviético, explosões de liberalismo feitas em reação ao meio século de tirania etc., etc. A "inteligentzia" de todo o mundo se dá função de desenvolver estas explicações. Filósofos, sociólogos e literatos têm divagado à vontade sobre o assunto. Cada qual procura motivar o fenômeno segundo o ângulo do qual o observa. Estas explicações, que o mais das vezes não se contradizem, vão sendo despejadas sobre o público através de livros, conferências, revistas e jornais. No conjunto, elas incutem na opinião de todo o Ocidente a convicção de que, em dado momento, se puseram em ação fatores múltiplos e díspares, nascidos das mais profundas e misteriosas entranhas da realidade, os quais, à uma, trincaram e liqüefizeram o velho monolito.

O pressuposto desta convicção é que todos os comunistas que se agitam nesse pandemônio são sinceros. Que todos dizem o que pensam e cumprem o que dizem. Cada qual teria, assim, no caos vermelho, um jogo próprio, que executará até o fim.

Não disponho de elementos para discorrer, aqui, sobre se a enxurrada de explicações nascidas desse pressuposto são inteiramente objetivas. Mas parece-me pouco prudente e contrário às leis da lógica admitir — como ponto de partida para uma tão ampla visão da presente realidade comunista — um pressuposto que não tenha sido sujeito previamente a uma cuidadosa análise.

Em primeiro lugar, notemos que a cisão Rússia-China, tão vistosamente afirmada na imprensa dessas duas potências, é bem menos profunda do que parece. Entre os dois "grandes" do comunismo, persistem pontos de contato de importância vital, cuidadosamente deixados na sombra por ambos. Assim, Moscou e Pequim continuam a apoiar o Vietnã do Norte, e isto com tanta efusão e vigor, que Nixon se considera forçado a abandonar gradualmente à sua triste sorte o Vietnã do Sul.

Em segundo lugar, não percamos de vista que Chang Kai-Chek só não desembarca suas tropas na China Continental, para ali iniciar a contra-revolução, porque os Estados Unidos lho proíbem. E porque esta proibição? Os Estados Unidos poderiam quiçá ser derrotados pela China? Evidentemente, não. Se o desembarque dos chineses, em apoio dos anticomunistas de sua pátria, não se opera, é porque os Estados Unidos receiam represálias soviéticas. Por tudo isto, é forçoso admitir que a Rússia e a China não estão tão cindidas assim. E que ambas escondem algo por detrás de sua alardeada cisão.

Mas, perguntará algum leitor, qual o interesse que todas essas aparentes cisões do comunismo trazem para o jogo deste? Não é patente que o caos só traz desvantagem?

De minha parte, acho aí a palavra "só" muito leviana. Pois algumas vantagens, eu as vejo claras. Apontarei aqui apenas uma.

Há muitos anos, Moscou vem tentando uma velhaca "coexistência pacífica" com o Ocidente. Visando assim desmobilizar a reação anticomunista mundial, os dirigentes do Kremlin puseram em jogo todos os seus recursos propagandísticos. Em vão. A imensa maioria dos ocidentais desconfiou tratar-se de uma manobra, e permaneceu obstinadamente fria.

Agora, com o fracionamento do monolito, a desconfiança diminuiu. O comunismo começou a parecer menos maquiavélico. Tomou ares de espontâneo em suas reações, de aberto no revelar suas mazelas internas, de mais sincero, em uma palavra.

Acresce que os vários laivos dentro do magma comunista vão tomando um aspecto curioso. Há um laivo para cada gosto. Quem no mundo ocidental gosta de liberdade, de aventura, de atrevimento, pode enfeitiçar-se com o comunismo marcusiano. Quem gosta de dramas sentimentais, pode enternecer-se com a desventura dos intelectuais comunistas perseguidos da Rússia. Quem, pelo contrário, aprecia a ordem, a organização, o método, tem em Duclos o paradigma do homem ponderado, inteligente e firme. Quem aprecia a agressão, a violência, o crime, já não precisa recorrer aos romances policiais: leia a vida de Chê e de Camilo Torres, ou medite sobre as máximas de Mao Tsé-tung. Se, pelo contrário, algum aprecia o diálogo, volte os olhos para o labioso PC italiano. Se alguém espera tudo de uma política de mútuas concessões, olhe para Ceausescu e para Tito. Em suma, dir-se-ia que, como no clássico "plateau de fromages" francês, em que há queijos para todos os gostos, também o comunismo atual é um imenso "plateau" de comunismos, com variedades dele para todos os sabores.

Sim, para todos, inclusive para o de certas direitas. Pois pode algo agradar mais a esta, do que a ditadura ex-comunista que alguns Kuznetsovs vêem emergir da Rússia atual?

Desmobilização da desconfiança universal, abertura de incontáveis zonas de simpatia em toda a opinião mundial, nada poderia servir melhor à causa da coexistência insidiosa proposta pela Rússia... enquanto esta se vai armando até os dentes.

Se, pois, esse fracionamento do bloco comunista proporciona à sua causa polpudos interesses, forçoso é perguntar se esse "plateau de fromages" oferecido pelo urso comunista ao mundo não é uma grande manobra.

Manobra que, como é óbvio, se utiliza de muita gente que não percebe que a está ajudando...


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