Folha de S. Paulo,
13 de
agosto de 1969
A
clareza, essa polidez
É de
Luís XVIII a conhecida máxima de que a polidez dos reis consiste na
pontualidade. Jules Renard, provavelmente inspirado na sentença do
monarca francês, deu-se o trabalho de excogitar no que consistiria a
forma típica da polidez do homem de letra, e concluiu que é a clareza.
Parece-me que ele tem razão. Se alguém tem o desejo de ser lido,
mostrar-se-á amável esmerando-se em ser claro. Penso, de minha parte,
que a clareza também dever ser inerente à polidez de quantos atuam na
vida pública. Pois, para atrair a consideração e a confiança das
multidões como das elites, a primeira condição é uma contínua clareza no
pensar e no agir.
Assim, julgo-me no caso de dar uma informação cabal aos meus leitores no
tocante a dois telegramas publicados na imprensa diária, que relatavam
uma estranha atitude do governo chileno, face a meu ensaio "Baldeação
Ideológica Inadvertida e Diálogo".
Publiquei esse estudo primeiramente no Brasil (em "Catolicismo", n.º
178-179, de outubro-novembro de 1965, e quatro edições, num total de 30
mil exemplares, pela Editora Vera Cruz, São Paulo, 1966). Depois, foi
ele editado em outra línguas (em espanhol, pelas editoras "Cruzada",
Buenos Aires, 1966; "Speiro", Madrid, 1966; "Syllabus", México, 1966; em
alemão, pela "Editora Vera Cruz", São Paulo, 1967). E por toda a parte
circulou ele, criticado por uns e aplaudido por outros, sem qualquer
impedimento de autoridades de qualquer natureza. Nada mais normal na
vida de um livro, especialmente quando da natureza deste.
Com
efeito, em essência, desenvolvo eu, neste trabalho, a tese de que o
diálogo pode ser um bom meio para fazer o escâmbio de idéias entre
pessoas de convicções opostas. Mas que, como todas as coisas nesta
terra, pode ele ser desvirtuado para maus fins. Descrevo, depois, o mais
corrente de tais desvirtuamentos, e termino demonstrando que este
costuma ser utilizado pelos comunistas para "baldear" inadvertidamente
muitos incautos, das suas convicções anticomunistas originárias, para a
filosofia evolucionista e materialista de Marx. Ao longo do ensaio, não
ataco um só governo e nem uma só pessoa. Nem o comportaria a natureza
toda doutrinária do assunto.
Há
dias atrás, a editora argentina "Cruzada" enviou, para serem colocados
no Chile, por volta de duzentos exemplares desse meu estudo. E teve a
surpresa de saber que a alfândega chilena apreendera os volumes. Passei,
pois, ao presidente Eduardo Frei um telegrama de protesto contra a
arbitrariedade dos prepostos aduaneiros de seu governo. E ele, com uma "grandeur"
à de Gaulle (só permissível aliás aos pouquíssimos mortais que têm o
passado do discutido ex-presidente francês) não se dignou
responder-me... Publiquei então meu telegrama na imprensa brasileira.
Dias
depois, um porta-voz do governo chileno declarou à Associated Press
quais as razões da medida. Ao lê-las na imprensa brasileira, não pude
deixar de sorrir, tais eram as suspicácias demonstradas pela Gestapo
alfandegária montada pelo regime pedecista chileno. Julgue-as o leitor.
1 —
Tenho — afirma o porta-voz — "ostensivo e estreito contato" com o Sr.
Fábio Vidigal Xavier da Silveira, autor do livro "Frei, o Kerensky
Chileno". Ora, este livro fora considerado "insultante" a Frei e à
democracia cristã chilena pelo governo daquele país. Logo, meu livro,
creio que por osmose, poderia também ser "insultante" contra o
melindroso Chefe de Estado e sua grei. A isto respondo ser bem verdade
que conto, entre meus amigos, o jovem e brilhante autor de "Frei, o
Kerensky Chileno". Meus leitores conhecem esta obra, pois dela já dei
conta nesta coluna (artigo de 8 de janeiro p.p.). E também
porque o livro circula largamente em nosso meio. Eles sabem, portanto,
que esse trabalho de crítica cerrada ao governo pedecista chileno, nada
contém entretanto de "insultante". Enfim, para provar isto aos que não
tenham lido o trabalho do meu amigo, declaro aos leitores ter este
recebido cartas de franco e rasgado apoio das seguintes personalidades:
do cardeal Nicolás Fasolino, arcebispo de Santa Fé, Argentina; dos
ministros almirante Augusto Hamman-Rademaker Grunewald, general Afonso
Augusto de Albuquerque Lima e coronel Jarbas Passarinho; do governador
Paulo Pimentel; de Mons. Alfonso Maria Buteler, arcebispo de Mendoza,
Argentina; Mons. Antônio Corso, bispo de Maldonado — Punta del Este,
Uruguai; de D. Antônio de Castro Mayer, bispo de Campos; de d. José
Maurício da Rocha, bispo de Bragança Paulista, e de numerosas outras
personalidades do mundo político e social.
Julga
possível o leitor, que pessoas de tanta responsabilidade fossem capazes
de aplaudir assim uma obra que faltasse com a cortesia devida a um Chefe
de Estado estrangeiro, máxime de um país irmão?
Ver
injúrias onde não existem, desconfiar de um livro só porque seu autor é
amigo do autor de outro livro do qual não gosta: não cheiram a Gestapo
esta susceptibilidade, esta desconfiança superexcitada, esta prontidão
em adotar medidas policialescas?
2 —
Sou presidente do Conselho Nacional da TFP brasileira. Ora — acrescenta
o referido funcionário do governo do Chile — a TFP andina move
"violenta" oposição ao governo desse país. E, em conseqüência, a
alfândega chilena se julga no direito de prender meu livro. A palavra
"violenta", usada pelo porta-voz de Frei, merece um protesto. Pois ela
parece insinuar que a TFP usa meios violentos em sua oposição ao
führer pedecista chileno. Ora isto é rotundamente falso. A valorosa
TFP chilena se tem oposto, isto sim, à reforma agrária socialista e
confiscatória de Frei. Mas sempre dentro da lei, e empregando os métodos
genuinamente pacíficos característicos de todas as TFPs. Por isto mesmo,
existe ela à luz do sol, sem que o governo chileno tenha encontrado
motivos para obstar o seu funcionamento. Então pergunto: se no Chile tem
livre trânsito a TFP, com que lógica quer o governo andino cercear o
passo a um livro, só por ser escrito pelo presidente do Conselho
Nacional da TFP brasileira?
Enfim, pouco depois veio do Chile outro telegrama anunciando,
gravemente, que meu livro fora analisado pelos poderes chilenos, e,
comprovado seu caráter meramente ideológico, se lhe permitia circular...
Eis
tudo explicado para os meus leitores, espero que com a clareza na qual
Jules Renard viu a suprema polidez de quem escreve...