Folha de S. Paulo,
9 de julho de 1969
Sapo zangado
Há
dias, vi de longe, caminhando pela rua, um prospérrimo industrial
progressista, meu conhecido desde os tempos de meninice. A vida o havia
transformado, deixando nele suas marcas sensíveis: no todo, dava a
impressão de um autêntico gentleman de nascença, até certo ponto
desfigurado em nababo, e, paradoxalmente, um tanto proletarizado. Como
de costume, sua fisionomia otimista e distendida dava a impressão de uma
bonomia que chegava até à ingenuidade. Mas um observador atento não
teria dúvida em reconhecer algo de astuto e mordaz, a se agitar por
detrás dessa simplicidade de alma. Enquanto eu assim o analisava, ele
veio distraidamente caminhando em direção a mim. Quando estávamos a dois
passos um do outro, ele me reconheceu. Sua fisionomia se modificou desde
logo. Tornou-se seca e reservada. A ingenuidade lhe sumiu dos olhos e
deu lugar a uma expressão metálica. A esperteza, essa ficou.
Cumprimentamo-nos, e ele foi logo dizendo:
–
"Olhe, não estou gostando da campanha da TFP. Vocês excitam o
adversário, em lugar de o derrotar. Não é assim que se faz com os
inimigos. Convida-se-os para um diálogo cordial. Fazem-se-lhes algumas
concessões. Por exemplo, dá-se-lhes razão em algumas de suas críticas.
Concorda-se com algumas de suas metas. Ouvem-se-lhes os argumentos com
todo o respeito. Com isto, se lhes amolece o ânimo, se lhes cativa a
simpatia e eles acabam por abandonar as suas posições.
Vocês
da TFP fazem exatamente o contrário. Declaram-se em desacordo com tudo
quanto eles pensam. Não transigem em nada. É natural que eles saiam mais
enfurecidos do que nunca. Em lugar de atenuar as tensões, vocês as
acentuam.
Por
isto mesmo, tomo em face da TFP uma atitude militante. Desaprovo-a.
Recomendo que ninguém a apoie. E que, quando seus rapazes estão na rua
em propaganda, se passe por eles sem os ouvir, tratando-os como se
fossem transparentes".
–
"Enfim, respondi, tentando um amável gracejo, você é um adversário que
nos nega pão e água?"
–
"Precisamente... E, por mim, eu proibiria a TFP de sair à rua com suas
vistosas campanhas".
–
"Então, lhe objetei, estou sem entendê-lo. Se você está tão persuadido
da eficácia dos métodos de combate pacíficos, por que não os emprega
contra a TFP? Vamos, meu caro, desarme a carranca, sorria, diga que
lados positivos encontra em nossas idéias e em nossas campanhas,
faça-nos algumas concessões táticas, para nos amolecer, dissolver e nos
eliminar do mapa ideológico brasileiro".
Este
convite ao diálogo irritou ainda mais o meu capitão da indústria, que
exclamou irritado:
–
"Não adianta, com vocês nada adianta. É só mesmo combatendo-os em toda a
linha".
–
"Mas, então, disse eu, não venha com essa de que, em relação a todo e
qualquer adversário, você recomenda táticas benignas e distensivas. Para
uns vale o diálogo e para outros a bordoada. Não é bem isto?"
–
"Com os inflexíveis devo ser inflexível respondeu ele".
– "E
quem são estes inflexíveis, perguntei. Só nós da TFP?"
–
"Não. Todos os extremistas. Sou um homem de centro".
–
"Mas, objetei, se você recomenda inflexibilidade com os extremistas
porque censura nossa inflexibilidade com os comunistas? Com ele é que
somos realmente inflexíveis. Se você participa dessa inflexibilidade, do
que nos acusa? Ou não é com os comunistas, mas só conosco, que você é
inflexível? Se é só conosco, reconheço-o bem, meu inveterado
progressista. Você, no fundo, não é um centrista, mas um esquerdista
camuflado".
Nossa
velha amizade de antigos tempos permitia o tom de minha resposta. Ele o
entendeu bem, e, acentuando a nota íntima, escapou do cerco com uma
interjeição: "Fascista!"
Eu
lhe lembrei então os velhos tempos em que a testa de um valoroso grupo
de católicos, reunidos na redação do "Legionário", combati rijamente as
direitas totalitárias, então em seu apogeu, o nazismo, o fascismo e o
integralismo. E lhe fiz observar que ele ficara de fora desta luta.
Meu
progressista riu-se gostosamente diante dessa reminiscência que lhe
lembrava a mocidade. Mas, enquanto ria, elaborou outro argumento:
–
Plinio, não se esquive falando só da atitude da TFP face ao comunismo.
Há também o progressismo... Você diz que eu sou progressista. Não é bem
assim. Quero até combater certos excessos do progressismo. Contra esses
excessos, você há de concordar em que minha tática amena é a única
eficaz. Veja como fez o Concílio. Em toda a linha do possível, procurou
aplacar o progressismo. E isto logo desde o começo, nos dias do
inesquecível João XXIII".
–
"Não me cabe discutir aqui as metas do Concílio, respondi, mas julgo que
não se pode pretender que ele tenha aplacado o progressismo. As
repetidas queixas de Paulo VI sobre o que se passa dentro da Igreja,
provam até que o progressismo está mais sanhudo do que nunca, em todo o
orbe católico".
–
"Bem, bem. Lá vem você com suas expressões pomposas: 'o orbe católico'.
Deixemos isto. Olhemos para o nosso Brasil. Não é verdade que, até a
campanha de vocês, o progressismo estava tranqüilo? E que vocês é que o
agitaram novamente?"
–
"Você - pelo menos - está agitado, isto é evidente. Quanto à calmaria
progressista, anterior à nossa campanha, nada mais natural. Tal seria
que, apesar de ninguém o atacar, ele ainda se irritasse. Então, vocês
progressistas se sentem donos do terreno, que não toleram qualquer
discussão? Já se sentem no direito de passar à descompostura, diante das
objeções ideológicas corteses da TFP? Por que não tentam o diálogo?"
– Já
se vê? É você com sua velha mania de argumentar. Olhe, se vocês se
calarem, não haverá progressismo".
– "E,
se falarmos, você teme o êxito da TFP, não é isto?"
–
"Vocês são uns antiquados".
–
"Sim, tão bem acolhidos, que você teme nossa atividade mais que a de
seus caros comunistas".
–
"Mas, enfim, você não negará que o progressismo estava tranqüilo".
–
"Tranqüilo, sim. Inativo, não. O progressismo é um fenômeno universal,
que resulta de causa ideológicas, sociais e até políticas profundas, a
que todos os países, hoje, estão sujeitos. Não pense que, fechando-nos a
boca, você elimina o progressismo. Se é que você o quer eliminar... Você
pensa envolver o Brasil numa muralha chinesa, que os ventos ideológicos
de fora não vençam. Não há muralhas para idéias..."
–
"Idéias, ideologias, este não é o meu mundo. Deixo-o com estas quimeras
e vou trabalhar um pouco para o Brasil. Produzir é nossa solução, disse
ele estendendo a mão".
– "E
eu fico aqui pensando um pouco, pelo Brasil. Produção sem ideologia, do
que adianta? Uma coisa e outra devem conjugar-se".
Quando ele estava a dois passos, voltou-se e me disse:
– "Em
um artigo, há dias, você chamou de sapo os burgueses que passam de
automóvel, por seus jovens, gritando-lhes desaforos, que você diz
inspirados no esquerdismo. Nada me impedirá de lhes dizer umas boas,
quando eles me puserem de mau humor com seus estandartes, suas capas e
seus sorrisos".
Ele
sorria.
–
"Sapo", gritei-lhe eu. E sorri também.