Folha de S. Paulo,
30 de
julho de 1969
O
sapo quer coexistência e Comblin
Encontrei novamente o sapo, meu colega de infância e de bancos
acadêmicos. Ele parecia ter esquecido inteiramente o azedume com que, há
dias, se despediu de mim. Abriu um largo sorriso logo que me viu entrar
no restaurante. E, com um gesto de mão, me convidou para a sua mesa.
–
"Tenho várias notícias para você", me foi ele dizendo, com certo ar de
vitória.
Na
realidade, a primeira notícia não era notícia, era invectiva:
–
"Então, começou ele, o..., o...", e procurava um nome que insistia em
não lhe vir à mente.
–
"O... quem?", perguntei?
–
"Ora, o Secretário de Segurança de Minas".
Procurei também lembrar-me do nome, porém não consegui. Na mesa havia
três mineiros que também não souberam dizer.
–
"Enfim, continuou meu sapo, que grande homem esse tal Secretário, hein?
Trancou mesmo a campanha de vocês, em toda Minas. Muito bem! É o que se
deveria fazer em todo o Brasil. Não compreendo essa moleza do Governo
Federal".
–
"Mas, retruquei, você não se diz democrata-cristão? Como cristão, você
deveria apoiar nossa campanha contra o IDO-C e os "grupos proféticos",
que infiltram o ateísmo na Igreja. Democrata, você deveria ser a favor
da liberdade de pensamento, consagrada pela Constituição. Você deveria,
portanto, protestar contra o gesto do Secretário".
– "Lá
vem você com suas tiradas, exclamou o sapo. Se vocês saem à rua, os
comunistas também têm o direito de sair. E os choques são inevitáveis.
Foi para prevenir situação como esta, que, a meu ver, se fez o golpe de
13 de dezembro: igualdade para todos, e paz no Brasil".
– Oh,
esta é grave, exclamei, e até gravíssima. Então, o golpe terá sido o
contrário do que o Brasil inteiro pensou.
Em
vez de pôr os comunistas fora da lei, produziu uma espécie de Estatuto
do Comunista. Fica assegurado aos comunistas o direito de fazer toda
espécie de infiltrações onde bem entenderem. Se alguém, em praça
pública, levantar a voz contra tão grande perigo, os comunistas podem
impedi-lo a pau e fogo, que a polícia não intervirá. Ou, por outra, ela
intervirá para obrigar ao silêncio os que alertam o país contra a
avançada velhaca do comunismo. É esta espécie de coexistência pacífica,
que você aplaude?"
–
"Sim. Exatamente isto. Proibindo a TFP de sair à rua, o Secretário
mineiro consegue que os comunistas também não o façam. Se a TFP sair à
rua, eles sairão igualmente. Isto é que é igualdade!"
–
"Igualdade entre os que estão fora da lei, como nós? O que é então a
lei? Uma brincadeira?"
–
Olhe, Plinio, você goste ou não, a coisa é mesmo assim. O tal Secretário
andou bem. Fechada, em Minas inteira, a campanha da TFP... Ótimo!"
A
esta altura, um dos nossos comensais mineiros se dirigiu ao sapo,
diplomática e maciamente: - "Escute, você vai além do Secretário. Ele
proibiu a campanha da TFP em praça pública, não a campanha de casa em
casa". E o outro acrescentou sorrindo: - "Não seja mais secretarial do
que o Secretário". O sapo mastigou freneticamente uns pobres camarões,
dignos de melhor sorte. E fingiu não ter ouvido.
Resolvi espetá-lo. E disse: - "Pois mesmo assim discordo categoricamente
do tal Secretário... aliás o único no Brasil a entender desse estranho
modo a missão da polícia".
O
sapo saltou: - "Só ele, não. Dom Zattera também". Desta vez, quem pulou
fui eu: - "Como assim? Dom Zattera, o bispo de Pelotas?"
O
sapo tirou do bolso um jornalzinho que desdobrou e mostrou com volúpia.
Era uma folha de Pelotas, de 9 de julho. Realmente, ali se noticiava que
o Delegado Regional de Pelotas proibira nossa campanha naquela cidade, a
pedido de Dom Zattera, pois este não gostava de nossa forma de atuar.
Olhei pasmo. Um dos meus simpáticos mineiros interpretou meu pensamento:
- "Curioso, disse ele. No Brasil, a Igreja está separada do Estado, mas,
em Pelotas, a polícia funciona como se estivesse em vigor a Inquisição.
Basta o bispo não gostar, que a polícia proíbe". O outro mineiro
acrescentou com discreta malícia: - "Será que vão proibir a propaganda
protestante lá?"
O
sapo acabara de trucidar o último camarão. - "Isto, não creio, disse
ele. Acho que Dom Zattera é um homem esclarecido, e favorável à mais
total liberdade de opinião".
Olhei
para os mineiros, e todos rimos. O sapo percebeu que tinha caído em
contradição: em lugar de se defender, tomou pois um ar de bonomia, e riu
também. Coaxava ele os últimos tons de seu riso, e já sua mão tirava do
bolso outra página de jornal. Era uma folha do Rio, do dia 26 de julho.
E foi dizendo: - "Então, a TFP tentou invadir o recinto do Seminário do
Ipiranga, para distribuir aos bispos, ali reunidos, um opúsculo contra o
Cardeal Suenens, hein? Isto é obra de carbonários, e não de medievais
defensores da Tradição, Família e Propriedade!"
Em
toda a extensão de sua esparramada boca, meu sapo sorria, espreitando de
antemão minha derrota. Os mineiros, chocados com o "feito" da TFP, me
fitavam.
–
"Saiba, meu caro, disse eu, que isto não passa de invencionice. A TFP
nada tem com esse estudo sobre a atitude do Cardeal Suenens. Não creio,
aliás, que o tal opúsculo tenha sido distribuído, à força, entre os
Bispos. Em todo o caso, me dirigi ao Cardeal Rossi e ao jornal,
desmentindo que a TFP tenha tido a menor participação em tal fato".
–
"Ah, disse o sapo, já mais calmo, então está tudo em ordem".
– "Em
ordem não, protestei. Você acha normal que a todo momento estejam
surgindo contra a TFP calúnias escritas ou orais? De onde, de que máfia
de sapos saem elas?"
Pensei que o sapo fosse estourar. Pelo contrário, ficou macio e desviou
o assunto: - "E o pe. Comblin, disse ele, que derrota para a TFP! Depois
de toda a campanha contra ele, hei-lo livre como um pássaro, fazendo
conferências".
E o
sapo me mostrou um folheto de propaganda do II Curso de Medicina
Pastoral do Instituto Nacional Pastoral. Lá estava anunciada uma
conferência do Pe. José Comblin sobre "Teologia, técnica e fé".
O
sapo comentou: - "Como você vê, o Pe. Comblin não é um subversivo.
Senão, jamais teria sido convidado para essa conferência. Ninguém tomou
a sério a denúncia da TFP".
–
"Perdão, disse eu, ninguém tomou a sério o Pe. Comblin. Pois, que o
"documento Comblin" é subversivo, ninguém o pode negar. E se não se
tomou a sério o conteúdo do documento dele, é a ele mesmo que não se
tomou a sério".
O
sapo estava recebendo a conta do garçom. O assunto o absorveu tanto, que
se desinteressou da defesa do pe. Comblin. Tendo dividido a despesa com
seus convidados, o sapo se levantou. Todos o imitamos. Foi o momento
mais agradável do almoço.
* * *
Enquanto saíamos, ouvi um mineiro dizer discretamente aos outros: -
"Essa do pe. Comblin fazer a tal conferência aqui em São Paulo é forte".
Os três
estavam evidentemente preocupados.
E eu também.