Folha de S. Paulo,
18 de
junho de 1969
Um
espectro se afasta do mundo e outro ameaça a Inglaterra
No
meio de tantas notícias dramáticas, que a todo momento as agências
noticiosas despejam sobre as multidões superexcitadas de nossos dias,
bom é que se dê relevo a uma informação altamente auspiciosa. Devemo-la
ao Sr. Addeke H. Boerma, diretor-geral de Alimentação e agricultura das
Nações Unidas (FAO).
Quando de sua recente passagem pelo Rio, o sr. Boerma - o qual, dado seu
alto cargo naquele organismo internacional, dispõe presumivelmente do
mais completo conjunto de informações existente no mundo sobre a matéria
- afirmou, em entrevista coletiva à imprensa, que não haverá fome em
nosso planeta na década de 1980. Esclareceu ele que o fato de muitos
países estarem próximos de atingir o desenvolvimento agrícola, e o
incremento, em escala mundial, da qualidade das sementes - entre outras
causas - estão afastando a fome das regiões mais necessitadas. Mencionou
ele o exemplo típico do Paquistão e das Filipinas, que antes importavam
alimentos e se encontram agora a ponto de exportar cereais. Assim,
conclui o sr. Boerma, é para a abastança, e não para a miséria, que o
mundo caminha.
Não
sou especialista nesta matéria, porém não tenho dificuldade em aceitar
as afirmações do diretor-geral da FAO. Tanto mais quanto os argumentos
sobre os quais assenta sua previsão se circunscrevem ao mero terreno
agrícola. E paralelamente, nos vêm, de outro setor, informações
igualmente auspiciosas. Conhecedores profundos das riquezas submarinas
vêm afirmando, ultimamente, haver nos Oceanos recursos alimentícios
incalculáveis, que as técnicas modernas podem por, perfeitamente, à
disposição dos homens. Foi, se não me engano, o chanceler Magalhães
Pinto que - baseado em informes científicos - declarou à imprensa, há
não muito tempo, serem as riquezas contidas nos mares ainda mais amplas
para abastecer o homem, do que as proporcionadas pela terra. Como se
sabe, a técnica moderna está capacitada para extrair, desde logo, e em
larga medida, tais riquezas.
Se
realço estes aspectos alvissareiros de nossa conturbada realidade, não é
apenas para distender o leitor. É também para pôr em embaraço os
demagogos de todo naipe.
Quando a Encíclica "Humanae Vitae" condenou o uso da pílula
anticoncepcional, asseverou-se que a Igreja concorria assim para que
ficasse superpovoado o planeta já a caminho da miséria. Como sustentar
agora esse prognóstico sombrio?
De
outro lado, os argumentos mais sonoros dos incorrigíveis paladinos da
demolição da propriedade privada se baseiam em uma suposta indigência,
na qual o mundo se iria atolando mais e mais. No que ficam, à vista
destes dados, os seus prenúncios morbidamente trágicos?
Não
penso abalar com isto os demagogos. Em todos os tempos foram eles
infensos ao dado concreto, ao fato real, à investigação séria. Seu mundo
é o do vazio e da quimera.
Mas,
pelo menos, dou aos leitores alguns argumentos para os reduzir ao
mutismo.
E que
boa obra é emudecer um demagogo!
* * *
Uma
grande revolução está em vias de se dar na Grã-Bretanha. A Câmara dos
Comuns aprovou recentemente um projeto de lei "alargando" os casos em
que se concede o divórcio. Se tal projeto for aprovado, o divórcio
também será dado por consentimento mútuo, depois de dois anos da
separação dos cônjuges.
Em
outros termos, isto eqüivale quase ao amor livre adotado na Rússia e em
outros países comunistas. No regime do amor livre, é verdade, não se
exige para o divórcio o consentimento dos dois cônjuges; basta o
requerimento de um deles. Porém, nada é mais fácil ao cônjuge
descontente do que forçar o outro a concordar com o divórcio: basta
brutalizá-lo. A futura lei inglesa é, pois, um incentivo à crueldade.
Também é verdade que, na Inglaterra, serão necessários dois anos para
que um divorciado contraia nova união. Nos países comunistas, pelo
contrário, um novo "casamento" é possível logo depois da separação.
Porém, nos numerosíssimos casos em que a causa real do divórcio for uma
relação extraconjugal, haveria muita ingenuidade em supor que essa
relação se interrompa castamente, em respeito à lei, para só se refazer
dois anos depois. De qualquer modo, a perspectiva da "liberdade" dentro
de dois anos dará aos concubinatários o alento para uma espera que será
um verdadeiro "casamento de experiência" com vistas à nova união legal.
Em
artigo publicado nesta seção, há 15 dias, citei a opinião da revista
russa "Agitador", segundo a qual a erosão da moral ocidental vai
encaminhando o mundo livre para a aceitação de um aspecto característico
e fundamental do regime comunista, isto é, o amor livre. Assim, será
para o comunismo que Inglaterra dará um passo agigantado, se o projeto
em questão for convertido em lei. Agora, resta a pergunta cruel: nesta
emergência, o que fará a Câmara dos Lordes, o que fará a Rainha? A
primeira aprovará, a segunda sancionará o projeto comunistizante? Ou
recusarão a essa vitória do comunismo a chancela das tradições
veneráveis, dos altos princípios que representam? Se não resistirem,
acontecer-lhes-á algo de pior do que o perecimento: terão perdido o
significado e a razão de ser...