Folha de S. Paulo,
30 de abril de
1969
Desconcertante!
Num
mesmo jornal, duas notícias me caíram quase ao mesmo tempo sob os olhos.
A
primeira dava conta de que o Episcopado paraguaio está em franco
conflito com o governo. As coisas parecem caminhar para um embate entre
o Poder Espiritual e o Temporal, que talvez será o maior ocorrido na
história daquele país. Uma das razões mais agudas da crise parece ser
que os presos políticos estariam sofrendo maus tratos insuportáveis. Dos
arraiais do clero já têm partido protestos. E o arcebispo Mons. Aníbal
Porta dirigiu uma carta aberta ao Chefe do Estado, na qual denuncia "as
desumanas condições reinantes nos presídios".
A
notícia desperta naturalmente simpatia, pois é conforme ao papel da
Igreja tomar a defesa dos desvalidos. Está aí um belo gesto, desses que
nada têm do ressaibo de esquerdismo, e que por sua nobreza descansa o
espírito de tantas decepções a que vem sujeitando a atormentada vida
religiosa de nossos dias.
Entretanto, o gesto não tem mesmo tal ressaibo? A dúvida me passou pela
cabeça quando me lembrei de que o governo paraguaio costuma deter
freqüentemente agitadores comunistas. Esses presos políticos, pelos
quais tanto se interessam os srs. bispos do Paraguai, não serão, pelo
menos em bom número, comunistas? As dúvidas e as objeções começaram a me
invadir o espírito. Não seria de elementar justiça, por exemplo, que, no
momento em que ataca o governo por maltratar comunistas, o Episcopado
elogiasse a firmeza com que o marechal Stroessner reprime as tramas
vermelhas em seu país?
Já
vejo alguém a objetar enfurecido: nunca, é uma aberração elogiar no que
quer que seja o chefe do governo paraguaio: ele é um fascista!
Não
conheço o marechal Stroessner, e estou pouco informado sobre sua
atuação. Suponhamos que ele seja realmente um fascista. Esta razão
escusará a omissão do Episcopado paraguaio? Então, para os comunistas
clemência, e para um fascista nem sequer justiça? Não é isto
desconcertante?
Como
me agradará saber que em alguma próxima publicação os srs. bispos do
Paraguai saibam remediar essa contradição, colocando ao lado de seu
pedido de clemência, palavras de caloroso apoio à vigilância e à firmeza
do governo na repressão ao comunismo! Confesso, porém, que neste sentido
minhas esperanças são fracas...
* * *
Razões para este desalento não me faltam. Uma delas está precisamente na
outra notícia sobre a qual caíram os meus olhos. O Episcopado cubano
está com uma pastoral coletiva pronta, a ser lida em todas as igrejas,
protestando em termos violentos contra o bloqueio estabelecido pelos
Estados Unidos em torno da ilha.
Uma
vez que notoriamente, o governo de Fidel Castro utiliza o território
cubano como entreposto soviético e chinês de exportação de idéias
subversivas e de guerrilheiros para toda a América, vejo no bloqueio de
Cuba uma medida justa, e indispensável para a defesa do nosso
continente. A atitude do Episcopado cubano me parece, pois, exatamente o
contrário da que deveria ser. Se nesta matéria alguma coisa pusesse
pasmar hoje em dia, eu diria que esta é pasmosa.
Não
quero, entretanto, deter-me neste ponto. Como se sabe, Fidel Castro fez
de "La Cabana" um dos lugares mais sinistros de nossos dias. Ali são
detidos, maltratados e trucidados quantos agem contra o comunismo. De
algum modo, toda Cuba é uma "La Cabana", uma imensa prisão onde os
cubanos de ambos os sexos, que não foram mortos ao pé do "paredón" ou
que não conseguiram escapar para o exterior, são sujeitos a
arbitrariedades de toda ordem, a trabalhos forçados nas propriedades
agrícolas do Estado etc. Ora, se os bispos do Paraguai são tão solícitos
na proteção de presos comunistas, por que os bispos de Cuba são tão
frios na defesa das vítimas da tirania comunista?
Com
estas palavras, não indago somente por que na projetada pastoral - que
já deve ter sido publicada domingo - não figura, ao menos segundo
parece, nenhuma palavra de comiseração para com as vítimas de Fidel
Castro. Minha pergunta vai mais fundo. Os bispos cubanos sabem
perfeitamente que, pleiteando a supressão do bloqueio americano,
trabalham para consolidação do governo Fidel Castro. Isto é, para a
permanência do carrasco no poder. Mais uma vez pergunto: não se
compadecem eles de seus compatriotas?
Estes
prelados imaginarão talvez, com atitudes tais, aproximar da Igreja os
comunistas? Se for assim dão provas de uma falta de tino desconcertante.
Ao mesmo tempo que se põem eles a pastorear lobos como se fossem
ovelhas, vão perdendo com rapidez vertiginosa sua influência sobre suas
verdadeiras ovelhas, os católicos fiéis, sempre mais chocados com
atitudes tão censuráveis.
Vendo
tanta desorientação em hora tão grave, fico a me perguntar com que
termos um historiador realmente católico, daqui a cem anos, há de
comentar fatos tais.