Folha de S. Paulo,
24 de abril de
1969
Família
Em
meu último artigo, falei do que é a tradição. Afirmei, sobretudo, que
são demolidores da Pátria todos os que se esforçam por promover um
progresso alheio e até hostil à tradição. Hoje, quero mostrar que a
tradição é fruto necessário da família, de sorte que, por toda a parte
em que floresça a família, ficarão impregnados de tradições os costumes
públicos e privados, a cultura e a civilização.
Ainda
desta vez, sirvo-me de alguns luminosos textos de Pio XII. Lembra ele,
antes de tudo, alguns motivos de ordem natural pelos quais a família é
uma riquíssima fonte de continuidade entre as gerações, ao longo dos
séculos: "Desta grande e misteriosa coisa que é a hereditariedade - quer
dizer, o passar através de uma estirpe, perpetuando-se de geração em
geração, de um rico acervo de bens materiais e espirituais: a
continuidade de um mesmo tipo físico e moral, conservando-se de pai para
filho; a tradição que une através dos séculos os membros de uma mesma
família - desta hereditariedade, dizemos, se pode sem dúvida entrever a
verdadeira natureza sob o aspecto material. (...) Não se negará
certamente o fato de um substrato material à transmissão dos caracteres
hereditários; para estranhar isto, precisaríamos esquecer a união íntima
de nossa alma com nosso corpo, e em quão larga medida as nossas mesmas
atividades mais espirituais dependem de nosso temperamento físico".
Em
seguida, o Pontífice trata dos fatores morais e sobrenaturais da
tradição familiar: "Mas o que mais vale é a hereditariedade espiritual,
transmitida não tanto por esses misteriosos liamos da geração material,
quanto pela ação permanente daquele ambiente privilegiado que constitui
a família, com a lenta e profunda formação das almas, na atmosfera de um
lar rico de altas tradições intelectuais, morais e sobretudo cristãs,
com a mútua influência entre aqueles que moram em uma mesma casa,
influência essa cujos benéficos efeitos se prolongam muito além dos anos
da infância e da juventude, até o fim de uma longa vida, naquelas almas
eleitas que sabem fundir em si mesmas os tesouros de uma preciosa
hereditariedade com o contributo de suas próprias qualidades e
experiências. Tal é o patrimônio, mais do que todos precioso que,
iluminado por firme fé, vivificado por forte e fiel prática da vida
cristã em todas as suas exigências, elevará, aprimorará, enriquecerá as
almas de vossos filhos" (Discurso à Nobreza e ao Patriciado Romano, "L'Osservatore
Romano" de 7/8-1-1941).
Mas,
dirá alguém, essa concepção, que parece supor um longo passado
aristocrático, é imprópria para continentes novos como o nosso. Pio XII
parece ter previsto a objeção. Diz ele: "Também nas democracias de
recente data (...) foi se formando, pela própria força das coisas, uma
espécie de nova nobreza ou aristocracia. É a comunidade das famílias
que, por tradição, põe todas as suas energias ao serviço do Estado, de
seu governo, da administração, e sobre cuja fidelidade ele pode contar a
qualquer momento" (idem, "L'Osservatore Romano" de 9-1-47).
A
tradição não é, então, o contrário da verdadeira democracia, vigente -
pelo menos em tese - em toda a América? Ouçamos Pio XII: "Segundo o
testemunho da história, onde reina uma verdadeira democracia a vida do
povo está como que impregnada de sãs tradições, que é ilícito abater.
Representantes destas tradições são, antes de tudo, as classes
dirigentes, ou seja os grupos de homens e de mulheres ou as associações
que dão, como se costuma dizer, o tom na aldeia e na cidade, na região e
no país inteiro.
"Daí
a existência, em todos os povos civilizados, de instituições
eminentemente aristocráticas, no sentido mais alto da palavra, como são
algumas academias de larga e bem merecida fama" (idem, "L'Osservatore
Romano" de 17-1-46).
Mas,
poder-se-á ainda objetar, tal concepção da família conduz a uma
sociedade escalonada em classes diversas? Perfeitamente. É ainda Pio XII
que nô-lo afirma: "As desigualdades sociais, inclusive as ligadas ao
nascimento, são inevitáveis; a natureza benigna e a benção de Deus à
humanidade iluminam e protegem os berços, beijam-nos, porém não os
nivelam. Atentai mesmo para as sociedades mais inexoravelmente
niveladas. Nenhum artifício jamais logrou ser bastante eficaz a ponto de
fazer com que o filho de um grande chefe, de um grande condutor de
multidões, permanecesse em tudo no estado de um obscuro cidadão perdido
no povo. Mas se tais disparidades inelutáveis podem, quando vistas de
maneira pagã, parecer uma inflexível conseqüência do conflito entre
forças sociais e da supremacia conseguida por uns sobre outros segundo
as leis cegas que se supõem regerem a atividade humana, de maneira a
consumar o triunfo de alguns com o sacrifício de outros. Pelo contrário,
tais desigualdades não podem ser consideradas por uma mente cristãmente
instruída e educada, senão como disposição desejada por Deus pelas
mesmas razões que explicam as desigualdades no interior da família, e
portanto com o fim de unir mais os homens entre si, na viagem da vida
presente para a pátria do Céu, ajudando-os da mesma forma que um pai
ajuda a mãe e os filhos" (idem, "L'Osservatore Romano" de 5/6-1-1942).
Vimos
que para Pio XII a desigualdade cristã é fonte de concórdia entre as
classes. Ouçamo-lo ainda: "Para o cristão as desigualdades sociais se
fundem em uma grande família humana; e (...) portanto as relações entre
classes e categorias desiguais devem permanecer governadas por uma
honesta e igual justiça, e ao mesmo tempo animadas por respeito e
afeição mútua, que ainda sem suprimir a disparidade, lhes diminuam as
distâncias e temperem os contrastes. (...) Nas famílias verdadeiramente
cristãs, por acaso não vemos nós os maiores dentre os patrícios e as
patrícias, vigilantes e solícitos em conservar para com seus empregados,
e todos os que os cercam, um comportamento consentâneo por certo com sua
posição, mas escoimado de presunção, propenso à cortesia e benevolência
nas palavras e modos que demonstra a nobreza dos corações; patrícios e
patrícias que vêem neles homens, irmãos, cristãos como eles, e a eles
unidos em Cristo, com os vínculos da caridade, daquela caridade que
mesmo nos palácios ancestrais conforta, sustém, ameniza e dulcifica a
vida entre os grandes e os humildes, máxime nas horas de dor e tristeza,
que nunca faltam" (idem "L'Osservatore Romano" de 5/6-1-1942). Noto de
passagem que o termo "patrício", usado pelo Pontífice, se refere a
membros da alta aristocracia romana.
Assim, a família gera de per si a tradição e a hierarquia social. Para
abolir a tradição e a hierarquia, é mister depauperar, estiolar, reduzir
e esfrangalhar a família.
É o que muitos não
sabem ou não querem ver...