Folha de S. Paulo,
20 de
março de 1969
Importância da tradição no século XX
Um
conhecido me interpelou, um dia destes, na rua: "Vá lá. Você provou bem,
na FOLHA de quarta-feira, que a tradição é uma sobrevivência
indispensável do passado no presente. Mas a tradição é tão importante
que você a tenha posto antes da propriedade e da família no trinômio da
TFP?" a pergunta me espantou. Mas de relance percebi que ela ocorreria a
muita gente. Por isto, resolvi respondê-la hoje.
* * *
Sim,
a Tradição constitui um altíssimo valor de espírito, e merece em
princípio - sob alguns aspectos, é claro - preceder a família e a
propriedade. Em nossas circunstâncias concretas, ademais, a Tradição tem
um papel de tal maneira importante que, a meu ver, só uma palavra a
poderia preceder. É a palavra Religião.
Com
efeito, a Tradição defende hoje os próprios pressupostos da civilização,
e máxime da civilização perfeita que é a cristã.
Explico-me. Para não alongar por demais as coisas, consideremos só as
décadas que se seguiram à II Guerra Mundial. Incontáveis mudanças se têm
produzido, nesse período, no modo de pensar, de sentir, de viver e de
agir dos homens. Consideradas essas mudanças em seu todo - e descontadas
as exceções - é inegável que elas rumam para uma situação violentamente
oposta a todas as tradições espirituais e culturais que recebemos. Essas
tradições ainda estão vivas, mas a todo momento alguma modificação as
debilita. Logicamente, se ninguém se levantar em favor delas, acabarão
por perecer. Ora, o perecimento dessas tradições importa, a meu ver, no
maior naufrágio da História.
Passarei a dar alguns exemplos. Mostrarei com ele como tradições das
melhores vão sendo corroídas pela torção sofística de alguns conceitos,
aliás de alto valor:
-
"Bondade": segundo o sofisma moderno, quem é bom jamais faz sofrer os
outros. Ora, o esforço faz sofrer. Logo, só é bom quem não pede esforço
a outrem. A civilização cristã, pelo contrário, modelou os povos do
Ocidente conforme o princípio de que o esforço é condição essencial para
a dignidade, o decoro, a boa ordem e a produtividade da vida. Se
"bondade" é, em todos os campos, abolir o esforço, não é implicitamente
privar a vida de valores sem os quais ela não é digna de ser vivida? E
então, esta hipertrofiada "bondade" não constitui o pior malefício?
-
"Amor à criança": segundo essa "bondade" adocicada e desfibrada, o amor
à criança consiste em dispensá-la de todo esforço. Isto se pretende
conseguir por mil técnicas, cujo efeito seria instruir e formar a
criança sem nenhum sacrifício para esta. O aferramento a esta idéia vai
a ponto de se condenar as punições escolares porque fazem sofrer os
culpados, e a condenar os prêmios porque podem dar complexos aos
vagabundos. Dado que, segundo a tradição cristã e o simples bom senso,
um dos fins essenciais da educação é formar para a luta da vida através
do hábito do esforço e do sacrifício, o que é esse "amor à criança"
senão uma cruel deseducação?
-
"Simplicidade", "despretensão": simples seria quem prefere as coisas que
não exigem muito gosto, nem muito esforço. Despretensiosa seria a pessoa
que sente bem-estar em ser vulgar. A "simplicidade" e a "despretensão"
vão invadindo mais e mais os costumes de jovens e adultos. As regras da
polidez e do trato, o modo de organizar uma casa, de receber, de se
vestir, de falar, vão ficando sempre mais "simples" e "despretensiosos".
Decoro, brilho, qualidade, classe, prestígio, são valores do espírito
dia a dia menos aceitos. Ora, eles encerram muito do que a tradição nos
legou de mais precioso. Com isto, a vida vai ficando desbotada, os
estímulos nobres fenecem, os horizontes se encurtam, e a vulgaridade
invade tudo. Sob pretexto de "simplicidade" e "despretensão", é o mais
refinado comodismo que triunfa. Sim, comodismo refinado: o único "raffinement"
que nos resta.
-
"Espontaneidade", "naturalidade", "sinceridade": estas disposições de
alma levariam a evitar outra forma de esforço, o de pensar, de querer,
de se coibir. Induziriam a dar largas à sensação, à fantasia, à
extravagância, a tudo enfim. A televisão, que excita, vai assim matando
o livro, que convida à reflexão, as idéias se vão empobrecendo, e com
elas o vocabulário também. Falar se reduz, em certas rodas, a narrar em
alguns tantos vocábulos básicos alguns tantos fatos elementares.
Divertir-se é pular e dar gritos sem eira nem beira. E rir. Rir muito,
mas sem muita razão de rir. Claro está que em matéria sexual, mais ainda
do que nas outras, qualquer contenção é rejeitada. A "moral sexual" de
certa gente consiste em legitimar todos os desmandos para evitar
complexos. O pudor seria, assim, o grande inimigo da moral. A
libertinagem o caminho para a normalidade.
-
"Idéias largas": quem as tem, deve pactuar com tudo. Bispos ou
governantes, professores ou pais que não sancionem todos os disparates
que acabo de alinhar, são déspotas de idéias estreitas, que querem
manter o jugo de preconceitos já hoje insustentáveis.
Mas,
dirá alguém, tal modo de ser não é o de uma minoria de extravagantes e
não o da maioria? Não é verdade que esta assiste desolada e chocada a
tais excessos? Desolada e chocada, sim, concordo. Mas acrescento logo:
também esmagada e submissa. Pois a história de todos os "progressos"
desta década tem sido esta: a) uma minoria lança uma extravagância
"louca"; b) a maioria se arrepia e protesta; c) a minoria faz finca-pé;
d) a maioria se vai habituando, adaptando e sujeitando; e) entrementes a
minoria prepara novo escândalo; f) e este escândalo terá igual sucesso.
Assim, a maioria vai entrando nesse mundo novo, fascinada, arrepiada,
hipnotizada, como o passarinho entra na boca da cobra.
De
tanto diminuir a polidez, ela morrerá. De tanto encurtar os trajes, eles
desaparecerão. De tanto silenciar sobre valores fundamentais da cultura
e do espírito, eles desertarão a terra. De tanto estimular e desencadear
desordens, estas acabarão por invadir e submergir tudo.
Haverá algum meio de evitar isto senão lutando por nossa Tradição,
portadora de todos os valores autenticamente cristãos, ou mesmo
simplesmente humanos, que este furacão vai destruindo?