Folha de S. Paulo,
12 de março de
1969
TFP - Tradição
Quando se fala de tradição, o que logo ocorre a grande número de pessoas
é a Inglaterra atual, com a Rainha, a Câmara dos Lordes, as Rolls-Royce,
os chapéus-côco, a distinção e a fleugma britânicas. Como fundo de
quadro, a palavra evoca reminiscências brasileiras de tempos mais
remotos. Assim os patriarcais casarões de fazendas com seus terreiros,
suas palmeiras e as senzalas próximas. Ou a quinta da Boa Vista, as
barbas brancas de D. Pedro II e o sorriso afável de Da. Teresa Cristina.
E ainda o Rio plácido e galhofeiro da 1ª. República bem como a São Paulo
aristocrática e circunspecta, familiar e divertida, da alta do café.
Tudo isto sem esquecer a Bahia vivaz e indolente, gulosa e musical, que
ostentava, mais ou menos na mesma quadra, as galas antigas dos tempos
dos governadores Gerais e as fulgurações, então ainda recentes, da
nomeada de Rui Barbosa. E a Minas incomparável do Aleijadinho, cuja
expressão máxima são, a meu ver, os profetas majestosos e coléricos da
escadaria de Congonhas do Campo.
Todas
estas impressões, vistas em seu conjunto, causam nos espíritos reações
desencontradas.
Para
inúmeras pessoas, a tradição - assim entendida - é algo que vai mudando
de colorido ao longo dos dias, em função das impressões sucessivas que o
estilo de existência de nosso tempo lhes vai causando. Há horas em que a
trepidação das megalópolis modernas fascina essas pessoas, e as
entusiasmam as organizações colossais, os planejamentos ciclópicos e as
técnicas de hoje, que vão transformando em realidade a "science fiction".
Nestas horas, a tradição parece a tantos de nossos contemporâneos um
triste atraso. Diante da ventania que vai derrubando todas as
hierarquias e soprando para longe todos os trajes, sentem a tradição
como se fosse jugo e abafamento. Nas ocasiões, pelo contrário, em que a
vulgaridade ovante de um mundo sempre mais igualitário, os ritmos
estrepitosos, frenéticos e atravancados da existência atual, a
instabilidade ameaçadora de todas as instituições, de todos os direitos
e de todas as situações causam neuroses, angústias e extenuações a
milhões de nossos coevos, a tradição se lhes apresenta como um remanso
de elevação da alma, bom senso, boa educação, boa ordem e, em suma, de
sábia arte de viver.
Assim
sendo, como julgar então a Tradição? O que pensar desses momentos de
apetência e dos longos dias de fastio um e outro excessivos, como o são
os acessos de fome e de inapetência de certos doentes?
Muitos são os que não sabem como resolver o conflito de alma fugidio e
subtil, que, a este propósito, por vezes os dilacera. E porque não
sabem, fogem do tema.
Esta
fuga cria, sem dúvida, uma zona de silêncio em torno do assunto. Mas tal
silêncio não significa, em geral, indiferença. Pelo contrário, resulta,
a um tempo, de perplexidade e de hipersensibilidade. O assunto dói
demais. Não é melhor, então, esquivá-lo e beber um whisky?
* * *
Para
não fugir mole e desanimadamente do problema, mas resolvê-lo; para
adquirir, assim, uma paz interior que a verdade dá por inteiro e todos
os whiskies do mundo não podem proporcionar; é para isto que convidam
"subliminarmente" os estandartes rubros com o áureo leão heráldico que a
TFP levanta em tantas cidades do Brasil.
* * *
Mas,
então, que significa esse estandarte? Que o passado deveria ter ficado
imóvel? Que tudo no presente deve ser aceito?
O
estandarte da TFP não foge ao problema: recusa-o. Ele nega que a
tradição seja só passado, e portanto não caiba no presente. A verdadeira
tradição não é - em princípio - só pelo passado enquanto passado, nem só
pelo presente enquanto presente. Ela pressupõe dois princípios:
a -
que toda ordem de coisas autêntica e viva tem em si um impulso contínuo
rumo ao aprimoramento e à perfeição;
b -
que, por isto, o verdadeiro progresso não é destruir, mas somar; não é
romper, mas continuar para o alto.
Em
suma, a tradição é a soma do passado com um presente que lhe seja afim.
O dia de hoje não deve ser a negação do de ontem, mas a harmônica
continuação dele.
Em
termos mais concretos, nossa tradição cristã é um valor incomparável que
deve regular o que é hodierno. Ela atua, por exemplo, para que a
igualdade não seja entendida como o arrasamento das elites e a apoteose
da vulgaridade. Para que a liberdade não sirva de pretexto ao caos e à
depravação. Para que o dinamismo não se transforme em delírio. Para que
a técnica não escravize o homem. Numa palavra, ela visa impedir que o
progresso se torne desumano, insuportável, odioso.
Assim, a tradição não quer extinguir o progresso, mas salvá-lo de
desvarios tão imensos que o transformam em barbárie organizada. Essa
barbárie contra a qual se levanta outra barbárie, esta descabelada e
furibunda: a do marcusianismo.