Folha de S. Paulo,
5 de
março de 1969
Ó vós
todos que passais pelo caminho...
Nas
folhas do "Diário Ilustrado" de Santiago do Chile, acabo de ler um
episódio desolador. Julgue o leitor.
Dezoito sacerdotes, professores da faculdade de Teologia da Universidade
Católica daquela capital, publicaram uma declaração peremptória contra a
Encíclica "Humanae Vitae" de Paulo VI. O fato é insólito por muitos
lados. Antes de tudo porque aquele documento faz jus a todo o acatamento
dos fiéis. Seria escandaloso que contra ele se levantasse qualquer
católico leigo: a fortiori, é berrante que contra ele se insurjam
professores de uma Faculdade de Teologia. Nessa pirâmide de agravantes,
há mais. É que o professor de Teologia não é responsável pela formação
doutrinária do povo fiel. Esta pertence aos bispos. Incitando o povo
contra a "Humanae Vitae", os 18 teólogos criaram para os bispos
conscientes de seu dever uma situação intolerável. Por fim, dado que a
esses teólogos está confiada a formação religiosa de grande parte do
Clero chileno de amanhã, é muito de se temer que este saia tão rebelde
quanto seus mestres, ou até mais. Por onde tudo, neste episódio, é
escândalo, revolta e perigo.
O
leitor estará a imaginar que a Cúria de Santiago desautorou de público
os eclesiásticos insubordinados, e lhes tirou as funções docentes. Não.
O Episcopado chileno, todo ele, se manteve mudo e de braços cruzados...
E
depois? Prepare-se o leitor para mais. Inconformada com o silêncio dos
bispos chilenos a Santa Sé, por meio do cardeal Garronne, prefeito da
Sagrada Congregação para a Educação Católica - escreveu ao Núncio em
Santiago, exprobrando seriamente o silêncio dos bispos (na carta o
purpurado afirma, de passagem, um fato aliás ainda mais chocante: alguns
Episcopados europeus também se insurgiram de público contra o documento
papal). A mando do cardeal Garronne, o Núncio comunicou aos bispos a
grave censura do Vaticano, e lhes incumbiu de tomar medidas próprias a
reparar o mal feito pelos 18 teólogos insubordinados.
Onde
público fora o escândalo, seria normal que publica fosse a reparação.
Qual. Os bispos chilenos nada deixaram filtrar, do pronunciamento
romano, para o público desconcertado e desedificado. Foram tão benignos,
tão mansos, tão doces para com os rebeldes, que se limitaram a lhes
cochichar em segredo a merecidíssima advertência.
Neste
ínterim, o "Diário Ilustrado" do dia 19 de fevereiro publicou a carta do
Núncio contrária aos 18 rebeldes. O que fez a Cúria de Santiago?
Abandonou sua linha de mutismo e doçura, e fulminou uma nota violenta
contra o jornal, afirmando que era lícito aos bispos não publicar a
carta do Vaticano, e o jornal violara, portanto, um direito episcopal.
Balanço: face ao crime gravíssimo de incitar o público à desobediência
para com a Encíclica, mansidão total e requintada...; face à incorreção,
muito menos grave, de publicar um documento reservado, furor, estrépito
e vitupérios.
Que
contradição poderia ilustrar melhor o triste caso que se vai
generalizando em ambientes católicos cada vez mais extensos?
Escrevendo estas palavras, penso no Brasil.
Com
efeito, acabo de ler, em um diário sério - cujas notícias, salvo sólidas
provas em contrário é forçoso ter por verídicas - que o Clero de Belo
Horizonte, reunido sob a presidência do arcebispo d. Rezende Costa,
indicou o pe. Michel Le Ven e mais outro padre para as funções de
"conselheiro espiritual" do Clero. O pe. Le Ven é um dos missionários
franceses presos em Belo Horizonte como comunista. Caberá ao pe. Le Ven,
sempre segundo a notícia, ter "encontros periódicos com os padres das
várias paróquias para esclarecer dúvidas que surjam sobre o exercício do
Sacerdócio". Como se vê, não há função melhor para espalhar o comunismo
na Igreja.
Pois
bem: que significa essa eleição? Todos os jornais noticiaram a
instauração do processo contra o missionário. Nenhum - que me conste -
publicou a conclusão do inquérito. O público tem pois, o pe. Le Ven por
suspeito de comunista. Nesta emergência, confiar-lhe tal função não é
deixar o público atemorizado, chocado, confundido?
Com
que objetivo foi feita essa desconcertante indicação?
Quem
desvendará este mistério? Quem responderá a esta pergunta?
* * *
"Ó
vós todos que passais pelo caminho, parai e vede se há dor semelhante à
minha dor". Estas palavras trágicas de Jeremias exprimem toda a aflição
dos verdadeiros católicos ante o moderno drama da Igreja.
Não é
bom que essa dor se publique e frutifique em outras preces?
P. S.
- Estava concluído este artigo, quando chegaram os resultados quase
completos das eleições no Chile.
Diante de um avanço comunista considerável, Eduardo Frei se apresentara
candidato à Presidência da República propondo a via demo-cristã
"intermediária" entre os adeptos e os adversários do comunismo: fazer
algumas das reformas sociais desejadas pelos comunistas, para os
contentar e lhes abrandar o ímpeto. Tratava-se da "luta" anticomunista
clássica do PDC no mundo inteiro, capitulada na fórmula "ceder para não
perder". Por esta fórmula, quanto maiores as concessões ao comunismo,
tanto maiores as vitórias contra ele. Em rigor de lógica, conceder tudo
ao comunismo seria matá-lo...
Frei
enveredou resolutamente por este caminho. E as eleições de domingo
deveriam testar seu êxito. O teste revelou um fracasso. Os comunistas
ganharam: tinham 18 cadeiras na Câmara anterior e obtiveram mais 5. O
Partido Nacional, que é anticomunista, teve um progresso espetacular; de
8 cadeiras passou a 34. O eleitorado não confia, pois, nos suspeitos
emplastros de Frei. O PDC sofreu um recuo impressionante, de 82
deputados que tinha, passou para 56.
Verificou-se, pois, que o eleitorado se vai afastando do programa
pedecista, que quer apagar a fogueira comunista com jatos de gasolina,
isto é, capitulações. E está de parabéns Fábio Vidigal Xavier da
Silveira, que previu o fato em seu "Frei, o Kerensky chileno".