8 de
fevereiro de 1969
Como
ruiu a pirâmide de Quéops?
Suponho que a grande maioria dos leitores só se deu conta, clara e
categoricamente, de que existe uma crise na Igreja, por volta de 1964,
quando figuras do Clero e do laicato católico assumiram, em face da
situação criada pelo então presidente João Goulart, uma atitude
diametralmente oposta à que seria de esperar. De lá para cá, os sintomas
dessa infeliz crise de tal maneira se fizeram agudos e característicos,
que tornaram patente tratar-se não apenas de uma crise, mas de uma crise
imensa, vertiginosa, apocalíptica. Muitos pensam - e com razão - que
seja, talvez, a maior delas, maior, por exemplo, que a do arianismo ou a
do protestantismo.
Diante de tal cataclismo, que por certo mataria a Igreja se Ela fosse
mortal, a pergunta vem, espontânea: como puderam as coisas chegar tão
rapidamente a esse estado?
Esta
pergunta, importante por si mesma, cresce ainda em alcance se, em
conformidade com nosso artigo anterior, lembrarmos as mil inter-relações
que a presente crise religiosa tem, forçosamente, com as crises de outra
índole que devastam, no mesmo momento, o País. Vamos, pois, à resposta.
Imagine o leitor que lesse na imprensa a notícia espantosa de que - sem
terremoto algum - a pirâmide de Quéops trincou, e uma grande parte dela
foi ao chão. Ao lado, um despacho telegráfico informaria que as causas
do desastre começaram em 1964. Seria legítimo pôr em dúvida a
informação. Pois então um edifício, que resistiu durante milênios a
todas as intempéries, poderia ser trincado e derrubado - sem cataclismo
- por uma causa que atuasse só durante 5 anos? É improvável.
Pois
a mesma observação de bom senso poderia ser feita a propósito da Santa
Igreja de Deus, edifício todo espiritual, todo sobrenatural, imortal por
desígnio e promessa de Deus, e, pois, incomparavelmente mais sólido do
que a pirâmide de Quéops.
Com
as imperfeições inerentes a toda a comparação entre a Igreja e o que é
terreno, penso que o símile é, todavia, ilustrativo.
Assim
se vê, com efeito, quão explicável é que, no Brasil, o incêndio na
Igreja tenha começado muito antes de 1964. Na realidade - e não há que
espantar - começou ele a deitar seus primeiros fogachos por volta de
1940.
* * *
Procedente de vários focos localizados na Europa, incubou-se, por
etapas, em setores religiosos do Brasil, desde 1937, aproximadamente,
até 1943, uma mentalidade dominada por uma obsessão: resolver o conflito
entre a Igreja e o século mediante uma capitulação completa, isto é, por
uma reinterpretação da doutrina da Igreja, uma reforma de suas leis, sua
liturgia, seu modo de ser, que a ajustasse totalmente com o que é
moderno.
A
palavra "moderno" é viscosa. De um lado, tem ela um sentido bom. Assim,
quando se fala da astronomia moderna, indica-se o acervo dos
conhecimentos do passado acrescidos e retificados pelo imenso tesouro de
aquisições devidos à investigação contemporânea. Todo este cabedal
resulta do impulso vindo das gerações anteriores, o qual nos trouxe ao
ápice presente, e com nosso esforço ruma para ápices sempre mais altos.
Uma tal modernidade só pode ser bem vista pela Igreja. E, nesta
perspectiva, a atualização de alguns tantos aspectos secundários e
contingentes da vida da Igreja pode ser um bem.
Mas a
palavra "moderno" tem também outro sentido, e este é péssimo. Segundo
tal sentido, a moça de mini-saia é mais moderna que a de saia de
comprimento normal. A seminua seria mais moderna que a de mini-saia, e
assim por diante. Em arte, quanto mais extravagante, tanto mais
"moderno". Noutra ordem de idéias, o socialista "moderado" se considera
moderno em face do anti-socialista. O socialista de extrema esquerda se
gaba de moderno diante do "moderado", e o comunista se considera
arqui-moderno, isto é, despreza como fósseis os socialistas de todas as
gamas anteriores. E assim poderíamos multiplicar os exemplos.
Em
última análise, "moderno" é, neste sentido, algo cuja plenitude, cujo
nec plus ultra está no delírio e no comunismo. Assim, se a Igreja
deve ajustar-se a este segundo sentido de modernidade, Ela renuncia
implicitamente a ser Ela mesma.
Bramindo por um ambígua modernização, propondo de cambulhada coisas
excelentes, coisas discutíveis e coisas péssimas, e fazendo em geral das
excelentes e das discutíveis pretexto para as péssimas, esse espírito de
falsa modernidade começou a se manifestar em alguns movimentos de si
excelentes. Como estou narrando, nos estritos limites de um artigo,
fatos em extremo complexos, limito-me a apontar o que havia de
germinativamente péssimo em dois desses movimentos que, entre 1937 e
1943, deitaram raízes no Brasil:
a -
Ação Católica: tendência a solapar o princípio de autoridade, tornando
os leigos virtualmente independentes do Clero; freqüentação habitual de
locais que todos os moralistas reprovavam, sob pretexto de ali levar "o
Cristo"; negação da desigualdade harmônica entre as classes sociais;
favorecimento da luta de classes.
b -
Movimento litúrgico: tendência a solapar o princípio da autoridade,
identificando e nivelando, de algum modo, o sacerdote celebrante com os
fiéis; subestima das formas de piedade católicas mais hostilizadas pelos
teólogos não católicos, especialmente os modernos: devoção ao Sagrado
Coração de Jesus, à Eucaristia extra Missam, a Nossa Senhora, aos
Santos, às imagens sagradas, à espiritualidade de Santo Inácio de
Loyola, de Santo Afonso de Ligório, à Via Sacra, ao Rosário etc.
c -
Em ambos os movimentos: subestima da ascese, do sacrifício, do combate
às paixões desordenadas por meio da vontade humana fortalecida pela
graça.
Deixo
de lado a apreciação de certos fenômenos concomitantes, tais como o
maritainismo, para me ater só a estes. Analise agora o leitor tudo
quanto hoje o desola em tantos meios católicos. Verá que quase sempre é
o auge das tendências que acabo de enumerar.
* * *
Mas,
perguntar-me-á alguém, não é isto uma fantasia? Como provar que
problemas tais já causavam preocupação em tão remotas eras? Não estava
tudo tranqüilo na Igreja entre 1937 e 1943? Precisamente em 1943 foi
publicado em São Paulo (Editora Ave Maria) um livro intitulado "Em
Defesa da Ação Católica". Esse livro trazia um prefácio honroso do
então Núncio Apostólico no Brasil, hoje Cardeal Aloisi Masella.
Denunciava a obra exatamente o que aqui está afirmado. O livro foi
escrito pelo presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica de São
Paulo naquela época, que é o autor deste artigo. Esse livro, cuja
difusão nas cúpulas católicas foi enorme, constituiu uma bomba de que o
grande público pouco soube, mas que nos meios católicos repercutiu
intensissimamente. Em sua difusão se empenharam a fundo os atuais
veteranos do Conselho Nacional da TFP.
Estamos assim na
pré-história da TFP.