Folha de S. Paulo,
1° de
janeiro de 1969
Questão trabalhista... astronáutica
Enquanto o mundo inteiro vibra de entusiasmo com o feito do coronel
Borman, do major Anders e do capitão Lovell, algumas pessoas já se
interrogam sobre quais as recompensas com que os Estados Unidos
testemunharão aos três imortais astronautas o apreço e a gratidão do
povo norte-americano.
A
pergunta tem todo o cabimento, pois se há um caso em que a admiração e o
reconhecimento públicos têm ocasião de se externar com magnificência, é
este. Antes de tudo, porque se trata de um feito sensacional, e -
seja-nos permitida a expressão - televisionável. Caso se tratasse de
festejar um novo Homero, um Fra Angélico redivivo, ou um Fleming, as
massas de hoje seriam menos vibráteis. Mas tratando-se de astronautas,
que forma de mérito é mais palpável para as multidões que o deles?
Ademais, com quanta clareza está posto aos olhos de todos o imenso
tesouro de aplicação, de paciência, de esforço, de capacidade e de
coragem que os três militares foram obrigados a gastar, para que
chegasse a termo sua missão! E quão evidente é que o êxito dessa missão
abre - pelo menos em certa ordem de realidades - vias inteiramente novas
para o futuro dos homens! A todo momento aflora, nos meios de
publicidade como nas conversas, a comparação entre o feito de Borman,
Anders e Lovell e o de Colombo. É supérfluo dizer mais sobre a grandeza
da última viagem astronáutica. E então a pergunta se impõe: qual será a
recompensa dos três êmulos do Descobridor?
* * *
É
sabido que Colombo, antes de partir para a conquista do novo mundo, fez
com os Reis Católicos um tratado em que recebia a promessa de cargos de
mando, honrarias e bens imensos, caso tivesse êxito em seu
empreendimento. É sabido também que Fernando e Isabel não cumpriram o
prometido. Não importa entrar aqui na análise dos motivos justos ou
injustos que levaram os soberanos a agir assim. O fato é que a
posteridade, julgando talvez os fatos um tanto superficialmente, lançou
contra este modo de proceder do régio casal uma censura incondicional e
sem matizes: eles violaram o tratado feito e faltaram com a gratidão
devida ao Herói. Nesta atitude da posteridade ficam assentes, como
pressupostos de comezinha justiça, os seguintes princípios:
a -
Como os particulares, também os Reis e os povos devem gratidão a seus
benfeitores;
b -
Se o benefício traz, para a nação, gloria e vantagens, a recompensa ao
benfeitor deve consistir não só em vantagens mas também em honrarias;
c - A
magnitude da recompensa deve ser proporcionada à do benefício;
d -
Assim como a gratidão de um particular não tem por objeto somente o
benfeitor, mas inclui a descendência deste, a recompensa dos Estados aos
grandes benfeitores da Nação deve estender-se também aos seus
descendentes.
Eram
estes princípios geralmente admitidos. Por força deles, os grandes
generais e os grandes estadistas receberam, freqüentemente, dotações,
títulos e castelos; e expiravam tranqüilos, deixando suas famílias
cumuladas de prestígio e de bens. Tais princípios de justiça, o bom
senso universal sempre os fez seus, com aplicações diversificadas
segundo os tempos e os lugares, e não é em nome dos costumes do século
XVI, mas em nome do bom senso perene e universal, que tem sido
severamente julgada a conduta dos Reis Católicos para com Colombo.
Sem
embargo disto, e embora esse julgamento continue sempre severo, os
tempos foram mudando. Por um contradição curiosa, nossa época, cada vez
mais exigente no que diz respeito à recompensa do trabalho manual,
vai-se tornando insensível aos imperativos de justiça no tocante à
recompensa dos grandes feitos, que demonstram alto nível de capacidade
ou valor moral. O acesso à riqueza e às honras vai sendo cada vez mais
difícil para o grande talento e a grande coragem. Está longe o tempo em
que, por exemplo, um membro da Academia Francesa de Letras tinha, no
protocolo oficial, honras análogas às de um Duque e Par de França, ou em
que as estirpes dos formados em escola superior, como a Universidade de
Coimbra, ascendiam paulatinamente à nobreza. Vai parecendo cada vez
menos normal o que os nossos avós consideravam, em tese (e digo em tese
porque, admitindo embora o princípio, não raras vezes o violavam),
indiscutível: ao grande talento, à grande capacidade, à grande coragem
não convém como prêmio a mediocridade econômica e social.
É
bom, é ótimo velar pelo respeito aos direitos do trabalhador manual.
Será isto uma razão para que se negligencie a tutela dos direitos do
valor intelectual, ou da coragem, máxime em suas expressões mais
salientes? Parece-me que de modo nenhum.
* * *
Estas
considerações me vieram ao espírito lendo as primeiras notícias sobre os
prêmios que serão dados aos astronautas. Como é natural, terão o
clássico "triunfo", com desfile, concentração de massas populares, chuva
de papel picado etc. Anders subirá de um grau, isto é, de major a
tenente-coronel. Borman e Lovell já foram promovidos há pouco, por
outros feitos. Se interpretei bem o noticiário algum tanto confuso, há
dificuldades legais em que sejam promovidos mais uma vez em breve prazo.
Todos os três receberão também uma medalha de honra. E ponto final.
Nisto se cifram as recompensas... pelo menos segundo até agora se
entrevê.
Amanhã virão talvez novos heróis com novos feitos astronáuticos, que
eclipsarão a lembrança dos heróis de hoje. A glória, a imensa glória de
Borman, Anders e Lovell, ficará num "arrière plan", passará a ser uma
glória com gosto de champanha aberta na véspera. E, assim, é o caso de
perguntar se não seria eqüitativo dar-lhes recompensas muito maiores,
que jamais permitissem o embaçamento de sua glória.
Estou
vendo daqui, da calma de meu escritório, um leitor que salta exclamando:
"Este embaçamento nunca se dará quanto ao espíritos profundos, capazes
de pensar". É verdade caro leitor, respondo eu: isto nunca será assim
para um simples punhado de homens. Vejo outro leitor a me dizer: "Mas os
três astronautas fizeram isto sem ambicionar recompensas". Respondo: ao
benfeitor desinteressado não se deve gratidão? O desinteresse não é
então título para uma dobrada retribuição?
* * *
Como
se vê, a questão de justiça, levantada pelo grande feito astronáutico,
ainda quando considerada no que chamaríamos o plano trabalhista, é grave
e interessante.
Ela
suscita outra questão não menos grave nem menos interessante. Se
consideramos justo que os homens que prestam ao país serviços relevantes
por seu talento e sua coragem, ao morrer, deixem na penumbra e na
mediocridade sua descendência - então só há um meio para que alguém
proveja largamente ao futuro dos seus: é cuidar de seus negócios
particulares. Ora, de cabeça fria, ninguém pode concordar com isto.
Razão a mais em prol da munificência a que os astronautas fazem jus.