Folha de S. Paulo,
4 de
dezembro de 1968
De
outra religião...
Frei
Japi, do Convento de São Domingos, oficiou, há pouco, uma cerimônia
nupcial segundo um texto litúrgico original. Tal texto foi publicado –
no todo ou em parte, não sei bem – por um vespertino digno de crédito.
Pretendo comentar hoje essa inovação litúrgica, usando ainda uma vez o
processo dos quadrinhos.
Os
tópicos que comentarei apresentam, como verá o leitor, algumas
características salientes:
a –
eles abstraem inteiramente de Deus, cujo nome nem sequer é pronunciado;
b – proclamam o amor livre, asseverando que o vínculo conjugal só deve
durar enquanto persistir o amor que lhe deu origem; c – em coerência com
este princípio, adotam uma terminologia ambígua, que tanto pode
referir-se ao casamento quanto a uma união "livre" qualquer; d – se o
texto tem referências à multiplicação da espécie, à educação dos filhos,
é sob forma de charada; e – em suas referências à questão social, deixa
ver a influência do reformismo à Comblin.
Passemos ao quadro, não sem notar que, muito laica e igualitariamente, o
folheto se refere ao sacerdote chamando-o simplesmente "Japi".
"Liturgia" de Frei Japi:
1) –
Japi – Amigos. A. e M. querem comunicar o amor que os une e pedem a mim
que presida esta cerimônia. Aos amigos presentes, que sejam testemunhas
e que com eles se solidarizem.
2) –
Noivo – A., hoje venho contente. Minha procura de uma vida autêntica
para conhecer o mundo e o homem, o que aspiro criar e comunicar, meu
trabalho e a busca do verdadeiro e do justo, quero fazê-lo com você.
3) –
Noiva – M., eu acredito em nós, e sabendo que existe uma força de
expansão e de relação chamada amor, impelindo o homem a sair de si para
se construir um grupo, confirmo minha vontade clara de viver junto de
você.
4) –
Todos os presentes – Sabemos das dificuldades que toda união acarreta e
aspiramos à solidariedade e à compreensão, para podermos crescer em
felicidade.
5) –
Padrinhos – Nós os conhecemos e esperamos que a união de vocês seja
um reforço no trabalho de libertação dos homens, um reforço no trabalho
de construção de uma estrutura social que reflita melhor a dignidade do
homem.
6) –
Noivo – Eu tomo a você, A., para minha amada mulher e estarei com você
em companhia do mundo, durante todo o tempo em que o amor nos
mantiver unidos.
7) –
Noiva – Eu tomo a você, M., para meu homem amado e quero estar
com você em companhia do mundo durante todo o tempo em que o amor nos
mantiver unidos.
8) –
Japi – Perante todos os presentes, em nome da Igreja, confirmo-vos, M. e
A., marido e mulher.
Comentários:
1) –
Estas palavras do sacerdote indicam a finalidade que os nubentes devem
ter em vista na cerimônia nupcial: "comunicar o amor" que os une. Se a
cerimônia nupcial é só isto, não se vê no que se diferencia do ato em
que um jovem e uma jovem reúnem amigos para lhes dizer que vão começar a
coabitar extramatrimonialmente.
2) –
Nestas palavras, o que o noivo enuncia de modo inteiramente explícito é
o mero desejo de instaurar um convívio, seguido da menção de alguns dos
reflexos deste convívio na sua futura existência.
3) –
"Viver junto de você": a ambigüidade continua. O casamento se reduz
então a um "viver junto" para efeitos de amor? E o que é esse charadesco
"sair de si para construir em grupo"?
4) –
"Toda união": o casamento não é senão uma união como outra qualquer?
5) –
Aqui vem expresso o que a sociedade tem o direito de esperar dos noivos.
A fraseologia – como dissemos – é própria do reformismo vago,
tendencioso e demagógico do tipo "Comblin". De família, de prole, de
educação, nenhuma palavra, desde que o texto se entenda sem
interpretações charadescas.
6) –
Neste trecho, a amoralidade do folheto litúrgico aflora por inteiro.
Esta fórmula importa na aceitação do amor livre, segundo as mais
audaciosas teorias comunistas. Pois ela faz depender a estabilidade do
casamento do mero fato da constância do "amor". Ou seja, qualquer das
partes, a qualquer momento, pode dar por findo o casamento, alegando que
o "amor" cessou.
7) –
Comentário análogo ao anterior. É de se notar a expressão "meu homem",
tão pouco usual no Brasil, para indicar o esposo, e tão própria para
caracterizar uma situação irregular e extramatrimonial.
8) –
Um casamento religioso efetuado nestes termos terá realmente a
consistência jurídica de casamento? Japi parece persuadido de que tem.
Mas a cláusula expressa de não aceitarem os cônjuges o vínculo conjugal
indissolúvel impede o ato de ser verdadeiro casamento.
Como
é fácil ver, estes textos não se ajustam de modo algum à doutrina
católica. Correspondem talvez a qualquer outra religião... Ou
irreligião.
Mas,
dirá alguém, quem sabe se o folheto é mais amplo, e a par destes contém
alguns trechos bons? É forçoso responder, então, que se os tais
possíveis trechos bons correspondem à doutrina católica, nem por isto os
que aqui citamos deixam de aberrar dela.
*
* *
Uma
ressalva final é necessária. De nenhum modo, envolvemos nesta crítica os
nubentes, seus padrinhos e familiares. O vespertino que transcrevemos
não lhes menciona os nomes. Mas por certo leram desprevenidamente o
estranho formulário sem se dar conta de seu real alcance.
As dúvidas,
naturalmente, só depois lhes ocorreram.