Folha de S. Paulo,
13 de
novembro de 1968
Face ao apogeu soviético: moleza ou força?
Entre as primeiras notícias depois da vitória de Nixon, chamou-me a
atenção uma sobre o princípio inspirador da política de paz do futuro
presidente. A paz deveria, segundo este, continuar a ser negociada com
todo o empenho, mas a partir de uma posição de força, e não de moleza.
O
enunciado deste princípio contém uma censura implícita à política de paz
de Johnson. Pelo menos de algum tempo para cá, esta não se tem baseado
em posições de força. É o que recente atitude dos Estados Unidos, nas
negociações de Paris com o Vietnã do Norte, tornou meridianamente claro.
A
divergência entre os dois homens públicos – Nixon e Johnson – diz
respeito à problemática seguinte:
a)
Desde a morte de Stalin, os sucessivos dirigentes da União Soviética não
têm cessado de sorrir ao Ocidente, com acenos de paz. Simultaneamente,
os serviços de propaganda russa se puseram a noticiar, com insistência,
uma série de mudanças, cujo reflexo junto à opinião pública do Ocidente
foi muito favorável: uma incipiente restauração da iniciativa privada,
uma atenuação da centralização burocrática, uma mitigação da perseguição
religiosa etc.;
b)
Ao mesmo tempo que o colosso soviético foi polindo suas arestas em
relação ao Ocidente, ele pareceu enfraquecer-se dentro do próprio mundo
comunista: o cisma iugoslavo, o cisma chinês, os ímpetos autonomistas
verificados em alguns países satélites da Europa, foram dando a
impressão de que o poderio soviético ia decaindo sensivelmente;
c) A
opinião pública do Ocidente, cuja maioria fora, até então, favorável a
uma rígida política anticomunista, se viu posta diante de dois
problemas: à vista deste adversário, já agora tratável, seria o caso de
manter a intransigência de outrora? Dado o declínio de sua força, seriam
ainda aconselháveis contra ele as medidas de cautela antigamente
indispensáveis?
d)
Em outros termos, uma política confiante, de concessões sistemáticas e
desinteressadas da parte do Ocidente, estimularia as boas tendências
nascentes na Rússia? Um moderado desarmamento do Ocidente, atenuando no
mundo comunista o receio de uma agressão norte-americana, contribuiria
para que tivessem livre curso os fatores que vinham causando o
desconjuntamento do bloco comunista? Em caso afirmativo, o caminho para
a paz seria o das concessões;
e)
Ou, pelo contrário, deveríamos admitir que essas concessões
proporcionariam compensações aos soviéticos, tornando-os mais seguros de
si e mais empreendedores, reparando as brechas que as divisões no bloco
comunista haviam feito no seu prestígio mundial, e lhes dando, assim,
meios para conter a inveja dos chineses e a insubordinação dos
satélites? Em caso afirmativo, as concessões resultaram nocivas à causa
da paz. E, para a consolidação desta, seria preferível uma diplomacia
temperada pela firmeza.
*
* *
Qual
dos dois tem razão?
Vejamos em que situação se encontra o perigo soviético, neste final do
governo Johnson.
Para
corresponder às esperanças de paz – que os sorrisos copiosos dos
soviéticos e as reformas internas infatigavelmente alardeadas por sua
propaganda suscitavam – Johnson acabou por adotar, no Vietnã, uma
política de concessões que importou em conferir aos comunistas da FLN
uma situação oficial igual à do governo anticomunista de Saigon. Este
fato, precedido da humilhação inaudita do apresamento impune do "Pueblo"
pelos comunistas norte-coreanos, abalou a fundo o prestígio
norte-americano em todo o Extremo-Oriente e na Austrália.
Pari passu,
os ingleses se retraíram do Oceano Índico, deixando um vácuo perigoso,
que os Estados Unidos não preencheram. A diplomacia soviética vem
explorando a fundo essa situação militar que deixa aterrorizadas e à
mercê da Rússia as nações não comunistas do sul da Ásia.
No
Mediterrâneo, os ingleses também se retraíram. E os soviéticos, tirando
implacavelmente partido dessa catástrofe, introduziram ali importantes
forças navais. Essas forças constituem uma ameaça evidente para o sul da
Europa. De outro lado, elas dão apoio aos regimes socialistas da RAU e
da Argélia. Dessas duas nações – sobretudo da RAU (*) – se irradia uma
propaganda pró-soviética, que sopra a guerra santa e a xenofobia do
pan-islamismo e visa suscitar a revolução social em todos os povos
muçulmanos da Ásia Central e Meridional. No dia em que os soviéticos
conseguissem "arrombar" o estreito de Suez, tornar-se-iam donos do
Mediterrâneo e do Oceano Índico.
Por
outro lado, a diplomacia soviética soube estimular, com habilidade
mefistofélica, as pretensões de de Gaulle. Com isto, a França se
distanciou dos Estados Unidos, a unidade política da Europa Ocidental se
quebrou, e a NATO sofreu um golpe do qual provavelmente não se refará.
Enquanto tudo isto se passava, no interior da União Soviética os germes
de descontentamento foram reprimidos cruelmente. E de novos progressos
da iniciativa privada e da descentralização não se tem falado mais.
Para
dar o remate a esse quadro lúgubre, a ocupação da Tchecoslováquia
desferiu um golpe terrível no autonomismo tcheco, e provou que o Cremlim
não está menos disposto do que outrora, a utilizar a força bruta para
manter na obediência os satélites. O que ainda mais se confirmou pela
publicação, na imprensa soviética, de um elenco de princípios diretivos
do convívio entre as nações do "bloco", que continha a definição do
direito da URSS, de intervir manu militari nos países que se
afastassem da "linha justa" doutrinária do Cremlim.
Em
uma palavra, mesmo os que acreditam irrestritamente na autenticidade das
rixas entre nações e correntes comunistas (e eu sou dos que não
acreditam) são obrigados a reconhecer que o Ocidente nunca esteve tão
débil e tão dividido quanto neste melancólico final do governo Johnson.
Ou, em outros termos, que a União Soviética jamais esteve tão poderosa
quanto agora.
A
experiência provou que o caminho da paz não passa pelo pantanal das
concessões sistemáticas e incondicionais.
Tudo
isto posto, resta-nos fazer votos de que Nixon seja fiel a sua bela
máxima de procurar a paz na diplomacia com firmeza.
(*)
Nota inserida pelos compiladores: “A República Árabe Unida (RAU) foi um
país que nasceu da união entre as repúblicas do Egipto e da Síria,
estabelecida em 1 de fevereiro de 1958, como um primeiro passo a caminho
da "nação pan-Árabe" (Ver Pan-Arabismo) e desmantelada em 1961 na
sequência de um golpe de estado. Foi criada quando um grupo de líderes
políticos e militares da Síria, preocupados com o perigo da derrubada do
seu regime por comunistas, pediram ajuda ao Egipto de Gamal Abdal Nasser.
“A
união das duas nações tinha como capital o Cairo e, após a sua nomeação
em 5 de fevereiro de 1958, a presidência de Nasser. Conselheiros e
técnicos egípcios estiveram activos na Síria e a ameaça comunista foi
derrotada.
“Ironicamente, a nova nação acabou por ser suportada por precisamente
aquela mesma força que ela receava. A União Soviética, desejosa de
angariar alianças na Guerra Fria, começou a vender armas para a jovem
república, uma prática que continuaria, mesmo depois do colapso da RAU.
Esta caiu em 1961, após um golpe de Estado na Síria. O Egipto continuou
a intitular-se RAU até à morte de Nasser em 1970” (cfr.
Wikipédia em português).