23 de
outubro de 1968
As
aflições da terceira família
Vivemos em pleno caos.
Ao
ler esta frase inicial, haverá quem tenha pensado: "Como é banal o
conceito que abre este artigo!"
Realmente, banal, banalíssimo. E esse conceito, já de si banal, eu o
apresentei em sua forma mais elementar e, por assim dizer acaciana, para
lhe realçar, até o paroxismo, a banalidade. Deste modo, posso fazer
sentir aos leitores, mesmo aos mais otimistas, até que ponto é certo,
evidente, indiscutível, que vivemos mesmo em um caos. Já que, neste
caso, como em muitos outros, banalidade é sinônimo de evidência.
Essa
sensação do caótico nos assalta a cada passo, na vida quotidiana. A todo
momento vemos pessoas cujo procedimento de hoje está em contradição com
o de ontem, e entrará em contradição com o de amanhã. Às vezes, em uma
mesma conversa, e até em uma mesma frase, nosso interlocutor externa
convicções que a lógica aponta como incompatíveis uma com outra. E é
cada vez mais raro encontrarmos pessoas que, ao longo de tudo quanto
pensam, dizem e fazem, se manifestam coerentes com alguns tantos
princípios fundamentais.
Na
apreciação deste quadro, as pessoas se classificam em três principais
famílias de almas:
a)
Uns – os menos numerosos – compreendem, admiram e aplaudem a coerência.
Por isto, estigmatizam o ilogismo ambiente e lhe imputam os piores
frutos presentes e futuros;
b)
Outros fecham os olhos para o fato e, quando este lhes entra pelos olhos
adentro procuram justificá-lo: a contradição seria, segundo eles, a
ruptura necessária do equilíbrio ideológico de outras eras, o efeito
típico do tumultuar fecundo das épocas de transição; por isto, ela não
produz desastres senão na epiderme da realidade, e tem de ser vista, em
última análise, com benigna e sorridente indulgência. A família de almas
que pensa deste modo era muito numerosa até há alguns anos atrás. Mas,
vendo que o assim chamado tumultuar fecundo das contradições vai tomando
o cunho de uma farândola de ritmo endiabrado e conseqüências sinistras,
vão rareando os que conseguem sustentar, diante dela, a despreocupação
risonha e benigna de outrora;
c)
Bem mais numerosas são as pessoas que constituem o terceiro grupo ou
família de almas. Elas suspiram diante da contradição caótica de nossos
dias, aturdem-se... e não passam disto. Mudar de posição lhes parece
impossível. Pois se a contradição as assusta, por outro lado, implicam,
do mais fundo de sua alma, com a coerência. Elas gostariam de prolongar,
contra ventos e marés, seu mundo agonizante que resulta do "equilíbrio"
de idéias contraditórias, as quais se "moderam" umas às outras em amável
coexistência. E como, para essa família de almas, as idéias são feitas
para pairar no ar, sem relação com a realidade, não há, segundo ela, o
menor risco de que esse "equilíbrio" de contradições venha a se romper
algum dia com prejuízo para a pacata e boa ordenação dos fatos. Esta
situação, intrinsecamente desequilibrada, se afigura a esta família de
almas a quintessência do equilíbrio. E, como a experiência está a
provar, escancaradamente, a inviabilidade desse equilíbrio, ela se
encontra diante de uma opção que a aterroriza: de um lado, o caos que
lhe entra como um tufão pela casa e pela vida adentro, e de outro lado
uma coerência que lhe parece correta talvez no plano da lógica, mas
espetada, desalmada, hirta, e, numa palavra, desumana. Estarrecidas
diante da opção, as pessoas pertencentes a esta família de almas param.
E ficam a suspirar, de braços cruzados, na espera obstinada de alguma
coisa que faça cessar o caos, sem que se tenha que implantar o reinado
da coerência.
*
* *
Vamos aos exemplos, quanto à terceira família de almas.
Quanto lar há que acolhe com um sorriso cúmplice a novela de televisão
imoral, ou o livreco piegas e sensual, que pinta com cores fascinantes a
imagem da vida mais dissoluta. Neste lar se nutre a certeza de que tais
miragens não produzam senão efeitos puramente platônicos. Depois, se o
filho ou a filha se transvia, as demais pessoas declaram que "não
entendem mais nada", e que "o mundo de hoje é um caos".
Quanto proprietário há que proclama, diante de seus filhos ou de seus
empregados, as idéias mais radicalmente igualitárias; toda superioridade
de categoria é para ele um insulto à dignidade humana. (Isto não o
impede aliás de fazer grossos negócios e encaixar opulentos lucros...)
Se seu filho, ou sua filha, se torna comunista, ele se espanta. Se o
empregado bem pago faz agitação, ele se desconcerta. Ele não compreende
que tenha frutificado frutos amargos de caos e desordem o que ele mesmo
pregou.
Porém, na mesma família que figuramos, em que entram a novela e o
livreco imoral, o pai e a mãe por vezes pregam também, para manter o
equilíbrio baseado na contradição, alguns princípios cristãos de moral
ou de ordem. Falam sobre a legitimidade da propriedade, declamam contra
o comunismo e mantém o respeito por certas tradições morais. Na mesma
fábrica cujo dono se diz socialista avançado, se faz propaganda
anticomunista. E se, de repente, um filho ou um operário arvora o
estandarte da TFP, a surpresa e, logo depois a implicância, são enormes.
Como imaginar que esse "equilíbrio" houvesse de se desatar em uma opção
coerente? Que esses princípios de ordem houvessem de deixar o mundo
platônico das idéias para engendrar militantes que os quisessem inserir
na ordem concreta dos fatos? Como aceitar a presença, no convívio
familiar, de pessoas coerentes, lógicas, que tomam a sério o que se lhes
ensinou sobre os fundamentos da ordem social e da civilização cristãs?
Assim, em suma, nessa família de almas se professa uma cômoda e risonha
desordem de idéias. Desordem que vem do convívio, em uma região toda
platônica, entre fragmentos de bem e de mal, de erro e de verdade.
Alguns, dentro desse ambiente, optam pela integridade da desordem.
Outros, pela da ordem. E por isto, nessa família de almas, cai-se em
susto e em pranto.
*
* *
A
situação dessa família de almas suscita problemas de mais alto vôo. A
ruína deste equilíbrio de contradições não importa em uma marcha para a
unilateralidade, o exagero, em suma, a radicalização?
Em
caso afirmativo, o contrário da radicalização é a incoerência?
Nestas perguntas se contorce e aflige, hoje, a terceira família de
almas.
Desejo tratar delas em breve.