Folha de S. Paulo,
9 de
outubro de 1968
"Violência"
De
todos os lados espocam atualmente manifestações de violência. Violência
física ou moral. Mas sempre violência.
Não
mencionarei senão fatos recentes, que dizem mais diretamente respeito ao
tema de que vou tratar:
1 –
Na Rússia, o "Pravda" publicou um longo artigo de Kovalev, sobre a
liberdade e a autodeterminação das nações integrantes do bloco
soviético. Destaco do artigo dois conceitos textuais. Um é o seguinte:
"Um país comunista tem a liberdade de determinar seu próprio caminho,
mas não tem a liberdade de se afastar do comunismo". Isto significa que
a liberdade consiste no direito de ser como Moscou quer, e não de outro
modo. Esta esdrúxula noção de liberdade aparece também nesta outra
sentença: "um país comunista tem direito à autodeterminação, a menos que
as ações empreendidas segundo este critério coloquem em risco os
interesses dos outros países comunistas". Em outros termos, a nenhum
país de obediência soviética é lícito ter interesses nacionais opostos
aos da URSS. Esse artigo, de inspiração governamental, é uma espécie de
regulamento para as infelizes nações do "bloco". Ele explica a ocupação
da Tchecoslováquia e enuncia a resolução do Kremlim de tratar de igual
maneira outros países que se mostrem recalcitrantes. Constitui assim a
violência moral da ameaça, depois da violência material que foi a
invasão da pátria de São Venceslau.
2 –
Em Havana, Fidel Castro fez uma de suas famosas arengas, na Praça da
Revolução. Depois de haver denunciado uma onda de terrorismo
anticomunista, que estaria sacudindo a pobre nação martirizada e
inconformada, o ditador subiu ao terreno dos princípios, e manifestou,
em nome da ideologia que professa, seu repúdio à Tchecoslováquia: "Em
Cuba, disse ele, não se tolerará uma reedição do problema da
Tchecoslováquia, com prostituição, parasitismo e ideologia quebrantada,
uma vez que somos socialistas coletivistas comunistas". Depois de
algumas tiradas contra os desmandos reais ou supostos de alguns
"melenudos" cubanos, ele invoca novamente os princípios: "Que desejam
estes jovens? Julgam que vivemos em um regime liberal burguês?" E, à
guisa de resposta, acrescentou: "Enganam-se. De liberais não temos nada.
Somos comunistas. Senão o entendem pela persuasão, será necessário usar
outros métodos". Logo em seguida, ameaçou com o serviço militar todos os
alunos de ambos os sexos, que abandonassem a escola no período de onze
(!) a dezesseis anos. Em síntese, a ilha dominada pela violência, se
revolta. Uma nova onda de violência ameaça esmagar essa revolta. E, de
cambulhada, a juventude das escolas é ameaçada com um trato brutal. Tudo
isto em nome de princípios que importam, por assim dizer, na canonização
da violência.
Estes fatos, li-os há pouco na imprensa diária. Constituem eles, a meu
ver, exemplos arquetípicos não só de violência, como de violência
institucionalizada. Digo institucionalizada, porque praticada pelo Poder
Público ou sob a inspiração dele, em nome dos princípios que ele
oficialmente professa.
*
* *
Isto
posto, volto a atenção da esfera mundial, para a América do Sul. No
Brasil, a campanha recentemente levada a efeito pela TFP não constituía
senão o exercício pacífico da livre manifestação do pensamento social e
religioso, não só nosso, mas de um milhão e meio de brasileiros que
assinaram nossas listas. A bem dizer, de Norte a Sul, entretanto, fomos
objeto de agressões de pequenas minorias de esquerdistas fanáticos, que
recusavam o diálogo com nossos jovens e iam diretamente às vias de fato.
Aliás, nem todas as manifestações de intolerância, a nosso respeito,
partiram de arruaceiros. Tenho em mãos um recorte de jornal em que d.
José Maria Pires, arcebispo de João Pessoa, assevera que a TFP "não
aceita de forma nenhuma o diálogo". E acrescenta: "O diálogo com eles
(da TFP) seria simplesmente aceitar a posição deles" ("Diário da Noite",
24-9-68). De que grau de paixão precisa estar imbuído o Prelado para
dizer isto de uma organização como a TFP, rica em obras doutrinárias
largamente difundidas, das quais cada uma é um sereno e cortês convite
ao diálogo?
Observado isto apenas de passagem, voltamos ao fio de nosso assunto. A
exemplo da Conferência de Medellin, não vejamos nossos problemas em
escalas meramente nacional. Olhemos para os países irmãos. Do Chile,
escreve-me Patrício Larraín, presidente da Sociedad Chilena de Defensa
de la Tradición, Familia y Propiedad que os militantes daquela futurosa
e brilhante organização foram várias vezes atacados na rua, sendo dois
deles seriamente feridos por baderneiros que – observo também de
passagem – a Polícia de Frei não puniu. De seu lado, Cosme Beccar Varela
Hijo – uma das mais vigorosas afirmações da juventude platina e
presidente da TFP argentina – acaba de me contar que, por ocasião do
encerramento da campanha em Buenos Aires, dois jovens bem trajados
invadiram a sede da organização, disparando dez tiros de revólver e
ferindo covardemente um sócio que, desarmado lhes barrava a porta de
entrada. Cito todos estes fatos para mostrar até que ponto um clima de
violência impregna o Brasil, a América, o mundo.
* * *
Quis
mostrar isto, também, para realçar que é este, mais do que nunca, o
momento de amarmos os métodos não violentos, e velarmos pela paz. E este
zelo pela paz nos leva a observar que, no presente clima de violência,
brincar com o conceito de violência parece tudo quanto há de mais
contra-indicado. E, a meu ver, o movimento "Ação, Justiça e Paz"
entregou-se, desde o começo, a este triste e perigoso brinquedo.
Fê-lo, antes de tudo, quando, ao clamar contra a violência
institucionalizada que existiria em todo o nosso País, por culpa dos
capitalistas, não levantou clamor ainda maior contra o comunismo, que se
agita de Norte a Sul para implantar aqui a violência institucionalizada,
insuperavelmente terrível, que campeia tanto no bloco soviético, como em
Cuba ou na China. Chamar, o que existe no Brasil de violência
institucionalizada, e não aplicar, a fortiori, igual epíteto ao
que existe no mundo comunista, conclamar melodramaticamente os
brasileiros a acabar com esta violência e não lhes abrir os olhos para
perigo palpável, concreto, sério, mil vezes maior, não é realmente
brincar?
Fê-lo também quando, no ato inaugural de Recife, D. Helder Câmara falou
sobre o caráter não violento de sua organização, lançada, por sinal, sob
a égide de Gandhi. (Preferiram-no a S. Francisco de Assis, cuja festa
seria dois dias depois da data comemorativa do hindu: por que esta
preferência, Santo Deus?) Segundo um matutino paulista, uma faixa
ostentada no local tinha os seguintes dizeres: "Ação, Justiça e Paz,
último recurso legal". Isto significa que se o Brasil não se deixar
modelar passivamente por esse movimento o remédio será apelar para
recursos ilegais. Ou seja segundo as aspirações do Pe. Comblin – uma
minoria os imporá, então, sua tirania populista. Ora, que é isto senão
uma ameaça de violência? E não é brincar com a palavra "violência",
proclamar-se não-violenta uma organização que não manda enrolar a faixa
subversiva, nem contra ela protesta de público?
Aliás, independente dos dizeres da faixa, a própria natureza do
movimento suscita um problema de fundo, sobre o qual os seus porta-vozes
precisam pronunciar-se desde já, em termos que dêem todas as garantias
ao povo brasileiro. O problema é este: se o Brasil não se deixar
persuadir pelo movimento, e recusar as reformas (tão drásticas quão
nebulosas...) que ele julga indispensáveis, o movimento continuará a
condenar a violência?
Enquanto esta definição não vier, impossível será tomar a sério sua
pregação não-violenta.