Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

CAPÍTULO III

A Doutrina da Igreja

 

A Liturgia e a mortificação, segundo o ensinamento da Santa Sé

 O sumo respeito, que todos devemos à autoridade excelsa da Santa Sé, força-nos a completar o capítulo anterior com algumas refutações à doutrina que expusemos, e que infelizmente circula em certos meios da Ação Católica. Dispensamo-nos de considerações doutrinárias sobre o problema da graça e do livre arbítrio, problema esse pouco acessível à massa e colocado hoje em dia por certos doutrinadores em termos tão evidentemente contrários à doutrina tradicional da Igreja, que qualquer católico, por pouco versado que seja em questões teológicas, imediatamente o perceberá.

Citemos apenas, a título de documentação, alguns importantes textos pontifícios que desenvolvem o pensamento contido na carta “Magna Equidem” a que nos referimos na pág. 103 [vide capítulo anterior] e que demonstra que a Sagrada Liturgia não dispensa a cooperação do homem, nem os meios tradicionais de ascese, como a fuga das ocasiões de pecado, a mortificação, etc.:

“S. Cipriano não hesita em afirmar que “o Sacrifício do Senhor não é celebrado com a necessária santidade, se nossa própria oblação e nosso próprio sacrifício não corresponderem à Sua paixão”. Por esta razão ainda, o Apóstolo nos exorta a que levemos em nosso corpo a morte de Jesus, nos sepultemos com Jesus e nos enxertemos nEle pela semelhança de Sua morte, não só crucificando nossa carne com seus vícios e concupiscências e fugindo da corrupção e da concupiscência, que reinam no mundo, mas ainda manifestando a vida de Jesus em nossos corpos, e, unidos a seu eterno Sacerdócio, oferecendo assim dons e sacrifícios por nossos pecados. Quanto mais nossa oblação e nossos sacrifícios se parecerem com o de Cristo, quanto mais perfeita for a imolação de nosso amor próprio e de nossas concupiscências, quanto mais a crucifixão de nossa carne se aproximar desta crucifixão mística de que fala o Apóstolo, mais abundantes serão os frutos de propiciação e expiação, que colheremos por nós e pelos outros” (Pio XI, Encl. “Miserentissimus Redemptor”, de 8 de Maio de 1928).

Com efeito, jamais poderemos dispensar-nos de “completar em nossa carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu corpo (místico) que é a Igreja” (Col. 1, 24).

Mais ainda. Sem o espírito de penitência nada conseguiremos de Deus. Com efeito, o Santo Padre Leão XIII recomenda expressamente que, ao lado do espírito de oração, se peça a Deus o espírito de penitência, sem o qual não se aplaca a justiça divina: “aqui, nosso dever e nosso paternal afeto exigem que peçamos a Deus não só espírito de oração, mas ainda o espírito de santa penitência. Fazendo-o de todo o nosso coração, exortamos com a mesma solicitude todos e cada um que pratiquem esta última virtude, tão intimamente unida àquela: porque, se a oração tem por efeito alimentar a alma, armá-la de coragem, elevá-la às coisas divinas, a penitência nos dá a força de nos dominarmos, e, sobretudo, de governar o corpo, que, em conseqüência do pecado original, é o mais terrível inimigo da doutrina e da lei evangélicas” (Encl. “Octobri Mense”, de 22 de Setembro de 1891).

Eis como o mesmo Pontífice descreve a vida de penitência dos Santos: “Eles dirigiam e domavam continuamente seu espírito, seu coração e suas paixões; eles não determinavam sua vontade senão depois de ter conhecido claramente a vontade de Deus; eles reprimiam e quebravam os movimentos tumultuosos de sua alma; eles tratavam seus corpos duramente e sem piedade; eles levavam a virtude a ponto de se absterem de coisas agradáveis e até de prazeres inocentes. Poder-se-lhes-ia aplicar o que disse S. Paulo: – “Para nós, nossa vida está nos céus”, e é por isto que suas orações eram tão eficazes para aplacar a cólera de Deus”. (Encl. cit.).

Finalmente, a prece, até litúrgica, feita de modo indigno só pode atrair a cólera de Deus contra quem a faz: “É em vão que esperamos ver descer sobre nós a abundância das bênçãos do céu, se nossa homenagem ao Altíssimo, em lugar de subir como um perfume de suavidade, repõe, pelo contrário, nas mãos do Senhor os açoites, com os quais o Divino Redentor expulsou outrora do Templo seus indignos profanadores” (Motu Proprio de Pio X, de 22 de Novembro de 1903).

É bom jamais esquecer a ordem do Espírito Santo: – “Não ofereças a Deus donativos defeituosos, porque Ele não os receberá” (Eclesiástico, XXXV-14). A história do sacrifício de Caim tem a este respeito uma eloqüência decisiva.

A finalidade deste livro não consiste em refutar os erros do pseudo-liturgismo, mas apenas as conseqüências que dele se deduzem no campo da Ação Católica. Referindo-nos, portanto, a tais erros, não o fazemos senão porque de outra forma nos seria impossível apontar as verdadeiras raízes dos desmandos doutrinários que a respeito da Ação Católica se notam em alguns círculos de nosso laicato. Como, entretanto, os erros não devem jamais ser mencionados e descritos sem que se lhes faça a necessária impugnação, julgamos útil acrescentar a esta parte do livro alguns argumentos sumariamente enunciados, que, nós o esperamos, porão de sobreaviso contra certas inovações doutrinárias os espíritos dóceis à suprema e decisiva autoridade da Santa Sé. É bem evidente que uma refutação baseada em outros argumentos que não os da autoridade não se poderia fazer senão em obra particularmente destinada ao assunto, escrita por especialista, e não por mão de leigo. Mas o argumento de autoridade, se não esgota o assunto, basta ao menos para resolver o problema. E, por isto, estamos certos de fazer obra útil, com as citações e reflexões que passamos a transcrever.

Antes de entrar na matéria, quereríamos, entretanto, tornar meridianamente claro que, referindo-nos ao “pseudo-liturgismo” escolhemos intencionalmente a expressão a fim de manter longe de qualquer censura alguns esforços meritórios, feitos com a louvável intenção de incrementar a piedade em torno da Sagrada Liturgia.

Deixamos também de lado o problema da “Missa dialogada” e do uso exclusivo do Missal. Este problema nada tem que ver de modo direto com este livro, e transcende do campo de julgamento de um leigo. Não queremos deixar de acentuar, entretanto, que os exageros evidentes a que se têm entregue neste terreno certos “pseudo-liturgistas” iludem mesmo a muitos espíritos precavidos. Com efeito, o mal mais grave dessa tendência não está aí, mas em certas doutrinas que ela professa mais ou menos veladamente, sobre a piedade e sobre o chamado “sacerdócio passivo” dos leigos que ela exagera enormemente, deformando o ensino da Igreja, que aliás reconhece tal sacerdócio. Tratemos apenas dos erros sobre piedade que dizem respeito mais de perto, à Ação Católica, se bem que também aí o assunto seja superior a nossa competência.

Não podem ser atacadas devoções que têm a aprovação da Igreja

Quando a Santa Sé aprova uma prática de piedade, ela declara implicitamente que os objetivos visados por tal prática são santos, os meios em que ela consiste são lícitos e adequados ao fim. Conseqüentemente afirma que o emprego desses meios é apto a concorrer para o incremento da piedade e a santificação dos fiéis. Isto posto, a ninguém é lícito afirmar o contrário, alegando que a prática de tais atos implica a aceitação de princípios contrários aos da Igreja, e é radicalmente ineficaz para facilitar a santificação das almas.

O Santo Rosário e a Via Sacra são devoções inúmeras vezes aprovadas pela Santa Igreja, recomendadas pelos Pontífices, cumuladas de indulgências, incorporadas de tal maneira à piedade comum, que várias associações se estabeleceram, com todas as bênçãos da Igreja, para a sua difusão, várias Ordens e Congregações religiosas têm como ponto de honra e obrigação solene propagá-las, e o Código de Direito Canônico preceitua ao Bispo que estimule em seus clérigos a devoção ao Santo Rosário. S. Santidade o Papa Leão XIII tornou obrigatória a recitação do Terço durante a Sagrada Missa, no mês de outubro, por ato de 20 de agosto de 1885. É óbvio, pois, que se revolta contra a autoridade da Santa Sé quem não tributa a essas devoções todo o alto e respeitoso apreço, que tantos e tão louváveis atos da Igreja suscitam.

Seria inteiramente vão alegar que estas práticas, em nossos dias, estão antiquadas. É certo que podem surgir práticas de piedade tão admiráveis quanto estas; mas isto não impede que todos os motivos dos quais decorre o valor do Rosário e da Via Sacra se fundem de tal maneira na doutrina imutável da Igreja e nas características inalteráveis da psicologia humana, que seria errôneo afirmar que tais práticas perderão algum dia sua atualidade.

Ser frio para com devoções que a Igreja recomenda com calor, passar sob silêncio devoções a respeito das quais a Igreja fala continuamente, é prova de que não se pensa, não se age, não se sente com a Igreja.

*  *  *

Não se pode admitir contradições entre a espiritualidade das várias Ordens Religiosas

O mesmo se deve dizer da espiritualidade própria a cada Ordem ou Congregação religiosa. Cada uma das famílias religiosas existentes na Igreja tem seus fins especiais, suas devoções particulares, e seu teor de vida aprovados pela Santa Sé como irrepreensíveis e em tudo conformes à doutrina católica. Quem, portanto, se levanta contra uma determinada Ordem religiosa ataca a própria Igreja, e se insurge contra a Santa Sé.

Assim, é simplesmente insuportável a ojeriza professada por certos elementos contra a Companhia de Jesus, baseada muitas vezes em argumentos que são reedição das críticas formuladas pela Maçonaria ou pelos protestantes. A espiritualidade da Companhia de Jesus é inatacável, como a de qualquer outra Ordem religiosa, e, implicitamente, os “tesouros espirituais”, os Exercícios Espirituais, o exame de consciência várias vezes ao dia, não podem ser atacados por quem quer que seja, como recursos espirituais dos quais podem livremente lançar mão as almas, que notarem que com isto progridem na virtude.

Mais insuportável ainda é a odiosa pretensão de atirar altar contra altar, forjando fictícias incompatibilidades entre as espiritualidades das diversas Ordens. Há variantes entre elas, e dessas variantes se ufana a Igreja como “uma rainha de vestido ornado de várias cores”. Mas tal diversidade jamais implicou nem implicará senão em harmonia profunda, como a que resulta da variedade de notas de um mesmo acorde.

As Ordens e as Congregações Religiosas “se dedicam ao serviço de Deus cada qual segundo modalidades próprias, e procuram obter todas a maior glória de Deus e proveito do próximo através de objetivos próprios, utilizando obras de caridade e de amor do próximo diferentes. Esta tão grande variedade de Ordens Religiosas – como árvores de essências diferentes, plantadas no campo do Senhor – produz frutos muito variados e todos eles muito abundantes para salvação do gênero humano. Não há certamente coisa mais agradável de se ver, e mais bela, do que a homogeneidade, a harmoniosa diversidade destes institutos: todos tendem para o mesmo fim e não obstante cada qual possui obras especiais de zelo e de atividade, diversas das dos outros institutos sob algum ponto de vista especial. É método habitual da Providência Divina corresponder a cada nova necessidade da Igreja com a criação e desenvolvimento de um novo instituto religioso” (Pio XI, Carta Apostólica “Unigenitus Dei Filius”, de 19 de Março de 1924).

Por isso, consideramos abominável que, em sua legítima predileção por esta ou aquela Ordem religiosa, pretenda o fiel colocar-se em oposição com as demais, não encontrando outro meio para dar vasa a sua admiração, por uma, senão diminuindo as outras. Diminuir uma ordem religiosa, é diminuir todas elas, é diminuir a própria Igreja Católica.

É lícito, sem dúvida, e até normal que os fiéis se sintam atraídos a praticar, de preferência, a espiritualidade de uma dessas Ordens. Jamais, porém, lhes seria lícito desviar de outros caminhos também santíssimos almas orientadas para a espiritualidade de outras Ordens. No jardim, que é a Santa Igreja de Deus, ninguém nos pode tolher, sem criminosa injustiça, o direito de colher as flores da santidade, no canteiro onde nos chama o Espírito Santo.

Amando filialmente a Igreja e todas as Ordens que nela existem, não poderíamos deixar de nesta veneração afetuosa atribuir lugar particularmente sensível à Ordem de São Bento. Pela admirável sabedoria de sua Regra, pelos extraordinários frutos espirituais que produziu, produz e produzirá sempre na Igreja, pela sua primazia histórica em relação a todas as Ordens do Ocidente, pelo papel que desempenharam na formação da sociedade e da cultura medievais os filhos de São Bento, ocupam eles em nosso coração um lugar de escol, tanto mais firmemente acentuado quanto em suas fileiras contamos alguns dos melhores amigos que tenhamos tido em nossa vida. Por tudo isto, enche-nos de indignação o rumor de que tais erros se possam identificar, ou de qualquer maneira filiar ao espírito de São Bento, sob o pretexto de Liturgia.

Não amar a Liturgia, que é a voz da Igreja orante, é ser, quando nada, suspeito de heresia. Entender que o esforço desenvolvido pela Ordem Beneditina em prol de uma mais profunda compreensão da Liturgia e de sua exata localização na vida espiritual dos fiéis possa trazer inconvenientes, é um absurdo. E, por tudo isto, reputamos caluniosa qualquer identificação que circunstâncias fortuitas, quiçá inexistentes, possam sugerir, entre espírito beneditino e espírito litúrgico autêntico, de um lado, e de outro lado, a estratégia modernista que vimos combatendo e os exageros do “hiper-liturgismo”. A este respeito, é perfeitamente elucidativo o magnífico artigo que o Exmo. Revmo. sr. D. Lourenço Zeller, Bispo titular de Doriléa e Arqui-Abade da Congregação Beneditina do Brasil publicou no “Legionário” de 13 de Dezembro de 1942. É leitura importantíssima para quantos desejam orientar-se nesse ponto.

Quanto à gloriosa e invicta Companhia de Jesus, por ocasião do seu recente centenário, o Santo Padre Pio XII publicou uma Encíclica tão elogiosa aos Estatutos e espiritualidade dessa ínclita milícia, que verdadeiramente não sabemos o que resta da adesão filial à Santa Sé em quem depois disto persevera nas criticas que lhe fez. Com referência aos Exercícios Espirituais, disse Pio XI que “Santo Inácio aprendeu da própria Mãe de Deus como devia combater os combates do Senhor. Foi como que de sua mão que ele recebeu este código tão perfeito – é o nome que em toda a verdade lhe podemos dar – de que todo soldado de Jesus Cristo se deve servir, isto é, os Exercícios Espirituais. Nos Exercícios organizados segundo o método de Sto. Inácio tudo se dispõe com tanta sabedoria, tudo está em tão estreita coordenação que, se não se opõe resistência à graça divina, eles renovam o homem até suas profundezas e o tornam perfeitamente submisso à divina autoridade. Declaramos Sto. Inácio de Loiola, patrono celeste dos Exercícios Espirituais.

“Se bem, que, como já dissemos, não faltem outros métodos de fazer os Exercícios, é entretanto certo que o método de Santo Inácio possui uma verdadeira excelência, e que, sobretudo, pela esperança mais segura, que proporciona, de vantagens sólidas e duráveis, eles são objeto de uma aprovação mais abundante da Santa Sé” (Pio XI, Carta Apostólica, de 3 de Dezembro de 1922).

À vista desta afirmação, a alternativa é clara: ou Pio XI estava eivado de individualismo antropocêntrico, o que é absurdo, ou os adversários dos Exercícios de Santo Inácio estão em declarada oposição ao espírito da Igreja, neste assunto vital.

 


 

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