Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

CAPÍTULO III 

A verdadeira natureza do mandato da Ação Católica

 

Há diferença essencial entre o mandato dado à Hierarquia por N. S. e o mandato dado pela Hierarquia à A. C.

  Como vimos nos capítulos anteriores, o mandato recebido pela Ação Católica não origina qualquer diferença entre sua essência jurídica e a das outras organizações de apostolado. A esta altura, caberia uma pergunta: então, nenhuma diferença substancial existe também entre o mandato indiscutível dado por Deus à Hierarquia e a atividade desenvolvida pelos fiéis?

No que esta diferença não consiste

Evidentemente, existe uma imensa diferença entre uma e outra coisa, mas haveria grave erro em imaginar que essa diferença decorre toda ela do fato de ter a Hierarquia recebido uma missão imperativa enquanto os fiéis têm desenvolvido uma ação sobretudo de conselho. Com efeito, se o caráter imperativo fosse a nota distintiva do apostolado hierárquico, todo apostolado exercido mediante mandato seria hierárquico. Neste caso, poder-se-ia afirmar que uma Religiosa que age por mandato de sua Superiora, obrigada em nome da santa obediência, estaria desenvolvendo uma ação hierárquica. Ora, tal não se dá, e nenhum comentador de Direito Canônico ousaria afirmá-lo.

Características do mandato recebido pela Hierarquia

O que diferencia o mandato hierárquico de outros mandatos é a fonte imediata, a natureza e a extensão dos poderes impostos. E, fato curioso, não podemos omitir ai a circunstância de que a importância deste mandato está também, em muito larga escala, em seu caráter exclusivo. Querendo proporcionar a todo o gênero humano a distribuição dos frutos da Redenção, deliberou o Divino Salvador que desta tarefa ficassem incumbidos os Doze e seus sucessores. E de tal maneira o fez que a tarefa ficou pertencendo exclusivamente a eles, de forma que ninguém pudesse chamá-la a si, ou simplesmente nela colaborar, sem consentimento, dependência ou união com eles.

Daí decorre que só a Sagrada Hierarquia é distribuidora dos frutos da Redenção, que em nenhuma outra igreja, seita ou escola se podem encontrar. E é nesta verdade que se funda a afirmação, que em todas as véras de nossos corações de fiéis devemos reverenciar e amar: fora da Igreja não há salvação.

É nesta verdade também que se funda o principio de que toda atividade apostólica exercida pelos fiéis está potencialmente colocada sob a plena direção da Hierarquia, que pode avocar a si, na medida em que bem entenda, quaisquer poderes, ou a totalidade dos poderes de direção, até os últimos pormenores de execução, de qualquer obra de apostolado privado, à qual tivesse sido dada, com uma simples permissão de funcionar, uma plena autonomia. Não se pode conceber nem admitir, na Santa Igreja, uma obra fundada em virtude de um pretenso direito natural dos fiéis que daria aos mesmos a mais ampla faculdade de agir no campo do apostolado, como bem entendessem, sem interferência da Santa Igreja, desde que não ensinassem o erro ou praticassem o mal.

Em que sentido pode a Hierarquia utilizar colaboradores?

Dizendo que esta obra pertence, por divina imposição, à Hierarquia e só a ela, fazemos algumas afirmações que é bom tornar explícitas:

1) – esta missão, reservados os direitos de Deus, e consideradas apenas as relações da Hierarquia com terceiros, é uma propriedade da Hierarquia que sobre ela exerce a plenitude de poderes que tem o senhor sobre a coisa possuída;

2) – só a Hierarquia tem esta propriedade;

3) – a palavra “só” se entende no sentido de que cabe à Hierarquia, e só a ela, a iniciativa e a realização da tarefa, como só ao proprietário de um terreno cabe a iniciativa e o direito de plantar e aproveitar o terreno;

4) – a expressão “só” compreende, entretanto, no caso concreto da Hierarquia, mais um sentido, que não é necessariamente inerente ao direito de propriedade: – os direitos da Hierarquia são de tal maneira só dela, que são inalienáveis, o que não ocorre com o direito de propriedade comum;

5) – entretanto, este “só” não exclui a possibilidade de a Hierarquia recorrer a elementos a ela estranhos, para os encargos da execução de uma parte de sua tarefa, precisamente como, sem alienação ou renúncia ao direito de propriedade, o senhor pode empregar braços de terceiro para o cultivo do campo; do mesmo modo, um pintor que assuma o compromisso de confeccionar determinado trabalho, não deixa de ser o autor dele, caso empregue, para tarefas secundárias como a mistura das tintas ou mesmo a pintura de figuras meramente circunstanciais e de nenhuma importância, a outrem, reservando para si a imediata direção de todo o serviço;

6) – assim, a distinção entre o trabalho hierárquico e o trabalho da pessoa estranha à Hierarquia se firma e define com toda a clareza.

 

Em que sentido pode a A. C. colaborar com a Hierarquia?

Apliquemos esta noção a uma outra esfera, e ela se tornará mais clara. Um professor tem em aula, por direito próprio, inerente ao cargo que exerce, a função de lecionar. Entretanto, para maior perfeição de seu trabalho, pode incumbir certos alunos de, em círculos de estudo ou em “seminários”, ou ainda em explicações públicas feitas em aula, esclarecer as dúvidas dos colegas. A situação do aluno não deixa, por isto, de ser substancialmente idêntica à dos demais colegas, quer perante estes, quer perante o professor:

1) – o professor tem o magistério, isto é, cabe-lhe definir e promulgar a doutrina, ao passo que o aluno repetidor, enquanto ensina o que aprendera, é um mero veículo, oficial embora, mas mero veículo de doutrina alheia, em relação à qual ele mesmo é um discípulo;

2) – por isto, é em tudo igual a seus colegas, todos em posição de inferioridade em relação ao mestre;

3) – enquanto a autoridade do professor é autônoma, o aluno repetidor exerce suas atividades sob direção de terceiro.

Características do mandato dos leigos

Basta aplicar este exemplo ao problema das relações entre a Hierarquia e os leigos, para que o assunto se elucide. Com efeito, Deus deu à Hierarquia um encargo análogo ao que os pais dão ao professor: – A Hierarquia dá aos leigos um encargo análogo ao que o professor dá ao aluno repetidor.

Há na Igreja mandatos além daquele que a Hierarquia recebeu?

É ao mandato outorgado pelo Divino Redentor, o mais augusto e grave dos mandatos, que a terminologia eclesiástica reservou por excelência a designação de mandato. E neste especialíssimo sentido, só a Hierarquia tem mandato. Mas, empregado o termo no sentido etimológico de “ordem imperativa”, é óbvio que a Hierarquia pode também dar mandatos, e que, em certos casos particulares, Deus dá diretamente a certas pessoas uma ordem ou mandato para fazer apostolado. É o que vimos quando mencionamos a obrigação moral, de que Deus é Autor, e que impõe certos atos de apostolado (pais, mestres, patrões, etc.).

Aliás, se bem que este mandato direto tenha Deus por Autor, deve ser exercido sob a direção, autoridade e desvelos da Hierarquia. Assim, à pergunta: “tem a A. C. mandato”, respondemos: – 1 ) – sim, se por mandato entendermos uma obrigação de apostolado imposta pela Hierarquia; 2) – não, se por mandato entendermos que a A. C. é elemento de qualquer maneira integrante da Hierarquia e tem portanto parte no mandato direta e imediatamente imposto por Nosso Senhor à Hierarquia.

Para boa compreensão de tudo quanto expusemos sobre o problema do “mandato”, a intelecção do sentido preciso deste termo é de importância capital. Com efeito, há duas distinções fundamentais, que se devem estabelecer.

O grande Mandato hierárquico – os vários mandatos dos súditos:

a) – no que são iguais

1ª distinção – Há dois sentidos para a palavra “mandato”. Um, é o sentido genérico que indica ordem imperativa de autoridade legítima a súdito. Outro, é o sentido restritíssimo do mandato que Nosso Senhor deu à Hierarquia. Como é fácil ver, há mil mandatos possíveis, quer na ordem civil quer na eclesiástica. Um senhor que impõe uma tarefa a seu servidor dá-lhe um mandato ou mandamento. Uma Superiora que dá uma ordem a uma Religiosa, impõe-lhe um mandato ou mandamento. Nosso Senhor também impôs à Hierarquia um mandato ou mandamento, isto é, deu-lhe a obrigação de exercer os poderes que lhe conferiu.

Entra aí uma consideração importantíssima. Uma coisa são os poderes que Nosso Senhor conferiu à Hierarquia, e outra o “mandamento”, obrigação ou “mandato” que lhe impôs, de exercer estes poderes. Como o próprio ato de comunicação de poderes foi imperativo, dá-se-lhe o nome de mandato. Mas a natureza e extensão dos poderes nada tem a ver, em si, com a forma imperativa do dever de os exercer. Assim, dois mandatos dados pelo mesmo senhor ao mesmo servo podem conferir poderes muito diversos.

b) – no que se diferenciam

2ª distinção – O mandamento imposto por Nosso Senhor à Hierarquia é um mandamento. O mandamento imposto pela Hierarquia à Ação Católica como aliás também a outras organizações, é um mandamento. Mas nem por isto se deve imaginar que há uma identidade substancial dos direitos comunicados em um e outro caso.

Manda a Igreja que os presidentes de Congregação governem os Congregados Marianos, as Federações Marianas exerçam certa autoridade geral sobre as Congregações Marianas, etc., etc.. Mas este ato imperativo, mandamento ou mandato, não comunica aos Presidentes de Congregação, etc., etc., qualquer poder intrinsecamente participante do poder hierárquico da Igreja.

Assim, confundir substancialmente o Mandato por excelência, da Hierarquia, com os outros mandatos existentes na Santa Igreja, é positivamente praticar o sofisma chamado de “anfibologia”, pelo qual se dão dois sentidos diversos a uma mesma palavra e se passa gratuitamente de um para outro sentido.

Quanto aos poderes dos Presidentes da Ação Católica, de Congregação Mariana, etc., talvez seja importante dar também algum esclarecimento.

Os dirigentes da A. C. têm incontestavelmente uma autoridade: não se pode pretender que essa autoridade é de substância idêntica à da Hierarquia

A A. C. tem uma autoridade efetiva sobre seus membros e, mais ainda, sobre terceiros, no que diz respeito à realização de seus fins. Ela foi incumbida de uma tarefa de colaboração instrumental pela Hierarquia, e, assim, aqueles que a dirigem segundo as intenções da Hierarquia, o fazem por autoridade desta. E tanto os membros da A. C. quanto terceiros não podem violar a autoridade dos dirigentes da A. C. sem, implicitamente, atingirem a autoridade da Hierarquia. Quer isto dizer que a A. C. se incorpora à Hierarquia? Não. Ela exerce uma função de súdita, precisamente como o chefe de uma turma de operários, que em suas atividades na propriedade do amo dirige os trabalhadores, nem por estes, nem por terceiros pode ser turbado no exercício de sua autoridade. Não quer isto dizer que ele participe do direito de propriedade, mas que ele age em virtude da autoridade do proprietário.

O mesmo que se diz da A. C. se diz também dos dirigentes de qualquer outra obra ordenada pela Igreja, como seja a “Obra de Preservação da Fé” ordenada por Leão XIII.

Como vimos, a transgressão dos poderes do colaborador instrumental será tanto mais grave quanto mais terminante e solene for a expressão da vontade do senhor. Assim, é menos grave transgredir a autoridade dos que agem por mero conselho. Mas ainda aí há uma transgressão de autoridade. Assim, ninguém, a não ser a própria Hierarquia, pode legitimamente impedir um Presidente de Congregação de governar seu sodalício, precisamente como acontece na A. C.. Os membros do sodalício, que contra ele se insurgirem, insurgem-se “ipso facto” contra a Hierarquia. E os terceiros que levantarem obstáculo à legítima atividade de uma Congregação, Ordem Terceira, etc., se levantam, em última análise, contra a própria Hierarquia. A diferença está apenas em que, sempre que a obra de uma Associação religiosa for simplesmente aconselhada ou permitida, a transgressão será menos grave do que quando for imperada.

 

Resumo geral dos capítulos precedentes

A vista destes esclarecimentos complementares, e resumindo em alguns itens todas as conclusões dos últimos capítulos, temos que:

1) – Mandato é toda e qualquer ordem imposta legitimamente por um superior a um súdito;

2) – Neste sentido genérico tanto é mandato o encargo que Nosso Senhor impôs à Hierarquia, como o mandato que a Hierarquia impôs à A. C., bem como já tem imposto a diversas obras anteriores ou posteriores à criação desta, numerosos e solenes mandatos;

3) – A analogia entre as formas imperativas de ambos os cometimentos de tarefa não exclui uma substancial diversidade dos poderes conferidos num e outro caso. De Nosso Senhor, recebeu a Hierarquia o encargo de governar. Da Hierarquia receberam os leigos, não funções governamentais, mas tarefas essencialmente próprias a súditos;

4) – Com efeito, a alegação de que o caráter imperativo do mandato recebido pelos leigos lhes comunica qualquer autoridade hierárquica é ridícula, pois que, neste caso, jamais poderia alguém exercer autoridade sem implicitamente conferi-la ao súdito sobre quem a exerce;

5) – O poder de governar, que a Hierarquia possui, provêm de um ato de vontade de Nosso Senhor, que também poderia ter sido dado sem forma imperativa, a título de mera concessão ou faculdade de agir; e assim se prova que não é o caráter imperativo do mandato a fonte essencial dos poderes da Hierarquia;

6) – Por isto, a sabedoria de nossos canonistas jamais entendeu que o mandato imposto a organizações outras que a A. C. elevaria estas organizações da condição de súdito para a de governo, e nenhuma razão existe para que o mandato imposto à A. C., essencialmente idêntico aos demais, tivesse esse efeito.

 


 

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