Plinio Corrêa de Oliveira

 

Algumas reflexões sobre a posição da TFP ante a Igreja (sociedade espiritual) e o Estado (sociedade temporal)

 

 

9 de abril de 1983, conferência proferida para sócios, cooperadores e vários Sacerdotes simpatizantes da TFP, sede de Jasna Gora

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

[Quem desejar aprofundar o tema, bastará consultar a obra do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira “Guerreiros da Virgem – A RÉPLICA DA AUTENTICIDADE – A TFP sem segredos”, Cap. IX, 3. O que a TFP pensa de si mesma e do papel que lhe caberá no Reino de Maria, Editora Vera Cruz, São Paulo, Dezembro de 1985]


 

Qual é a posição da TFP entre Igreja e o Estado? O tema é enorme.  Se eu devesse dar a essa exposição um título, não seria “Igreja e Estado: posição da TFP”, mas seria: “Algumas reflexões sobre a posição da TFP ante a Igreja e o Estado.”

Uma vez que a TFP toma a posição que toma perante a Igreja, a tal ponto que ela tem traços de uma entidade religiosa, mas, de outro lado, como ela trata de matéria sobretudo temporal à luz da doutrina da Igreja e com intuito de servir a Igreja, o fundo de quadro para se saber qual é a posição da TFP é perguntar qual é o papel da sociedade temporal nos planos da Providência. Esclarecido este ponto, deu-se uma contribuição para se compreender melhor a posição da TFP.

Então é preciso afastar alguns assuntos que eu dou por sabido e que não vão ser analisados aqui. Não vou refutar aqui a tese dos ateus que imaginam que nos planos da Providência não existe nenhum papel para a sociedade temporal.

Poderíamos apontar, no extremo oposto disso, uma certa tendência - não uma posição definida e cristalizada - mas uma certa tendência ao extremo oposto, que é o seguinte: Deus constituiu Sua Igreja de tal maneira como uma sociedade perfeita - que Ela é mesmo! - que Ela não precisa da sociedade temporal em nada e a vida temporal da sociedade, enquanto sociedade, não lhe interessa em nada para a realização de sua própria missão. E, portanto, o assunto não vêm à baila.

São duas posições quase correlatas e ambas erradas, não se pode aceitar nenhuma das duas. Mas eu não vou refutar essas duas posições porque o erro que há aí é evidente. Não vou perder tempo com isso.

Depois, também não vou reafirmar aqui e demonstrar aquilo que todos os bons sabem, que é a seguinte [concepção errada]: que a sociedade temporal tem uma finalidade logística para a sociedade espiritual. Quer dizer, ela faz da terra um alojamento na qual podem viver a Igreja e os filhos dEla, portanto. E ela não faz outra coisa para a sociedade espiritual do que faz o dono de hotel para seus hóspedes. O dono de hotel não se imiscui na vida dos hóspedes, não quer saber nada dos hóspedes. Ele, simplesmente, o que faz é oferecer cama, casa, comida, roupa lavada e engomada para os que estão no hotel. O resto, cada hóspede leva a vida que quer. Então a sociedade temporal prepararia isto, faria com que o mundo tivesse o mínimo de ordem, de fartura e de condições de existência temporal para que as almas, não pensando mais na existência temporal, cuidassem de salvar-se. Essa é uma posição evidentemente errada. A sociedade temporal não é um hotel da Igreja. Ela é mais do que um hotel da Igreja. Mas isso é tão evidente que também não vou tratar.

Também não vou expor a matéria, a tese verdadeira, bem conhecida, da matéria mista. Quer dizer, é a tese clássica: a Igreja é uma sociedade perfeita. Por perfeita se entende uma sociedade inteira, que é soberana e que tem até a disposição suprema de si mesma. A sociedade temporal também é uma sociedade perfeita, nesse sentido da palavra. Agora, elas têm relações, devem colaborar para o mesmo fim. E há entre elas uma matéria chamada “matéria mista”, que são as atividades da sociedade temporal enquanto analisadas do ponto de vista moral. Desde que elas não contenham nada de pecado, elas estão completamente sob o domínio da sociedade temporal, a Igreja não intervêm. A partir do momento em que ali se manifesta algo que interessa à observância dos Mandamentos, aí a Igreja tem uma palavra a dizer. É a matéria mista. Isso todo mundo conhece, nós todos sabemos, não vamos perder tempo analisando isso aqui.

Essas são, portanto, noções que eu pressuponho adquiridas e claras, ou rejeitadas ou aceitas, conforme as duas primeiras - rejeitadas - e a segunda aceita. Nós nos limitamos a dizer o seguinte: é verdade que a salvação eterna dos homens está à cargo da Igreja. Também é certo que, por desejo de Deus, a sociedade temporal é também a organizadora de uma hospedaria para a Igreja. Torna a terra habitável pelos homens e, por causa disso, capaz de levarem a sua vida e de praticarem os Mandamentos, de freqüentarem a Igreja, darem adesão à Igreja, se salvarem. E que existe a matéria mista. Essas são coisas que são inteiramente sabidas.

 

* * *

Qual é a tese para a qual eu quero chamar a atenção desde já?

A tese é a seguinte: a sociedade temporal - segundo esse conceito que eu acabo de dar aqui - se a sociedade temporal fosse uma mera hotelaria da Igreja, se fosse uma mera ordem de coisas que não deve pecar e acabou-se, com isso ela esgotou sua finalidade; se fosse isto, nós não teríamos dado, não teríamos reconhecido à Igreja aquilo à que a Igreja tem direito. Porque a sociedade temporal, embora uma sociedade perfeita no seu âmbito, ela existe para o serviço de Deus, e, portanto, para o serviço da Igreja. E ela tem, subordinada à Igreja, quer dizer, sujeita ao poder que a Igreja tem de ensinar, de governar e de santificar na esfera espiritual, a sociedade temporal tem uma missão, que essa missão concorre de um modo positivo e eficiente, sob a direção da Igreja, para a salvação das almas.

Não é, portanto, apenas não pecar, não é portanto apenas não violar os Mandamentos, mas a sociedade temporal tem uma função apostólica, uma função de serviço da Igreja. E essa função é uma alta função dela, muito mais do que a função logística. E quem entende bem essa função tem mais facilidade em entender a TFP. De maneira que então eu gostaria de explanar alguma coisa a respeito disso.

Para desenvolver essa tese, eu começo por lembrar, muito rapidamente, algumas coisas: primeiro, que a sociedade temporal é a obra-prima da criação visível. Não considero aqui a Igreja. Eu digo: quando Deus criou a ordem natural, dentro da ordem natural, a obra-prima de Deus é a sociedade temporal. A sociedade temporal é, portanto, uma criatura excelente.

Donde é que vêm o fato da sociedade temporal ser assim uma obra-prima de Deus? Vem antes de tudo da nobreza do homem. O homem é o rei da criação. Sendo [o homem] rei da criação, a sociedade temporal, que se compõe desses reis, é mais excelente do que cada rei individualmente falando.

Se Deus, considerando o Universo, viu que cada coisa era boa e o conjunto era ainda melhor; considerando cada homem, cada homem tem a excelência de sua natureza, dados os descontos do pecado original, evidentemente. Mas o conjunto dos homens, que vem a ser a sociedade temporal, é mais excelente do que cada homem individualmente. E se o homem é o que há de melhor na criação, dentro da ordem humana o que há de melhor é a sociedade temporal, considerada enquanto suprema. Ou seja, os países, cada país constitui, neste sentido, uma coisa excelente, suprema, como conjunto de homens.

Ora, seria surpreendente que uma criatura tão excelente, quanto é a ordem temporal, não tenha uma relação com o mais alto fim da criação que é a salvação das almas. Seria uma coisa de espantar se, logo ela, não tivesse uma alta função para a salvação das almas. O natural, o normal é que ela tenha um papel, uma colaboração a prestar a isso que é a razão de ser da criação, que vem a ser a salvação das almas para a glória de Deus.

Então, não se trata aqui, nessa finalidade, de algo logístico, mas de “removens prohibens” antes de tudo. Quer dizer, a sociedade temporal tem meios de impedir que certos obstáculos tolham o livre exercício da missão da Igreja. Esses meios são específicos dela, são próprios dela. Ela tem obrigação de remover ou proibir aquilo que serve de obstáculo ao desenvolvimento da ação da Igreja.

Assim, por exemplo, os reis dos vários reinos em que se dividia a Espanha no tempo da Reconquista. Destes reis, o mais característico foi São Fernando de Castela. Eles lutaram, enquanto reis, e esses reinos lutaram enquanto reinos, para a libertação da Espanha do jugo mouro. Nós vemos aí monarquias que, dentro de sua esfera temporal, se julgavam obrigadas a prestar à Igreja esse serviço. Não era apenas um serviço patriótico, nem eles viam isso assim. A idéia de pátria, naquele período da Idade Média, era bem diferente da idéia de pátria de hoje. Não havia propriamente uma pátria hispânica. A Espanha acabou de se unificar com Fernando e Isabel de Castela, já no fim da Idade Média, na orla dos tempos modernos. Antes disso eram vários reinos.

E um rei de Múrcia ou um rei de Castela, de Leão ou de Aragão se julgavam tão estrangeiros um para o outro quanto qualquer um deles se julgava estrangeiro para o rei de Navarra, para o rei da França ou para o rei de Portugal. Eram reinos completamente compartimentados.

Por que um rei de Leão queria ajudar a expulsar os mouros de Castela? Ou melhor ainda, um rei de Castela expulsar os mouros de Leão ou de Aragão?

Queria não era porque era uma só Espanha. É porque é uma só Igreja. E incumbia a ele, rei do país A, prestar socorro ao seu irmão, rei do país B, na comum tarefa de expulsar os mouros que prejudicavam a salvação das almas.

Isto foi praticado, foi aceito pela Igreja largamente, com aplausos, com indulgências, com bênçãos. Eram as Cruzadas, desenvolvidas na Espanha, contra hereges, contra os mouros que eram mais do que hereges, era uma espécie de gentilidade.

Notem que aí há uma diferença, para os efeitos que nos ocupam, há uma diferença histórica em relação às Cruzadas. Nas Cruzadas, a 1a. Cruzada foi pregada por Urbano II e foram convidados todos os reis católicos para ela. Nesse fluxo geral de católicos, também reis aderiram. E os reis levaram então os seus respectivos cavaleiros, os seus respectivos Estados.

Na Espanha, não. É muito característico. Os Estados, enquanto tais, independentes de bula de convocação de Cruzadas que depois vieram, puseram-se na defensiva, e defensiva de sua própria sobrevivência, mas reconquista! Sua própria sobrevivência – era direito natural – estava na missão deles. Reconquista dos reinos vizinhos e de todo território espanhol. Mais ainda: planos de penetrar na África e de dominar a África, e de expulsar os mouros da África para chegar até o Santo Sepulcro, com missão apostólica do Estado.

Pio XII, num documento posterior à Segunda Guerra Mundial - ele, aliás, quase todo o pontificado dele é posterior à Segunda Guerra – declarou que, se quisesse, poderia convocar uma Cruzada para derrubada do comunismo. Que ele não faria porque não queria. Bem, isso, ele poderia convocar, apenas indivíduos; ele poderia, ao meu ver, convocar Estados: tal Estado venha, tal Estado venha. Ele não faria porque são Estados laicos ou quase completamente laicos e que não atenderiam à convocação. Ele não iria, portanto, lançar um ato inoperante na ordem concreta das coisas. Mas, direito ele tinha. Isso constitui um serviço que o Estado, na ordem temporal, deve prestar à ordem espiritual, que é a Igreja.

Num terreno muito menor, mas onde isso se pode ver também: a liberdade de culto. Os Srs. sabem que pela doutrina católica, as religiões não católicas não tem direito a existir. Elas podem ser toleradas para evitar algum mal maior. Mas elas não tem direito de existir.

Para não alegar outros exemplos históricos mais insignes, mas já que estamos no Brasil, demos um exemplo da História do Brasil:  no Brasil a Igreja era unida ao Estado no tempo do Império. A Constituição, por exemplo,  proibia que as igrejas, os edifícios de culto das religiões não católicas tivessem a forma exterior de templo. Podiam ter a forma exterior de uma casa de moradia, de uma barraca, do que for. De templo, só da Igreja Católica. Para exprimir aos olhos do povo, com o consenso prestigioso do Estado e fazer entrar para a sensibilidade o que a fé ensina: que a única religião verdadeira é a religião católica. Mas uma coisa é o direito de viver. Outra coisa é arrastar ingloriamente uma existência apenas tolerada.

Uma vez que Nosso Senhor Jesus Cristo fundou a Igreja, a sociedade temporal que tem um fim dado pela Providência - que nós já vimos -, o fim natural se encaminha para a Igreja. A Igreja é um fato sobrenatural, criado por Nosso Senhor, não está na ordem natural. Mas uma vez que existe a Igreja, a finalidade de servir a Deus que a sociedade temporal tem por ordem natural, tem como polo de atração a Igreja que é o Corpo Místico de Cristo. Então, daí vêm a idéia do serviço da Igreja.

Agora, vou tratar um aspecto da sociedade temporal que importa muito, que é o ponto delicado da questão: a sociedade temporal não serve apenas a Igreja como “removens, prohibens”, nem dando verbas orçamentárias para facilitar as obras da Igreja. Quando ela faz isso, faz uma coisa boa, é um dever dela, está perfeitamente bem.

Ela tem, na própria formação das almas, um papel que nós temos que considerar. E esse é o ponto sensível, porque a formação das almas é, por excelência o papel da Igreja. A sociedade temporal, como tudo que existe, tem sua finalidade própria, mas tem um significado simbólico aos olhos dos homens.

Por exemplo: se eu imagino um homem fumando e do seu cigarro se desata uma espiral, essa espiral às vezes toma movimentos, ou se desenvolve segundo uma linha que lembra certas atitudes do espírito humano. E essas atitudes do espírito humano, por sua vez, lembram a Deus. E, nesse sentido, uma simples fumaça de cigarro pode simbolizar algo de Deus.

No seguinte sentido: é que a coisa tem uma aparência sensível, a fumaça. Essa aparência sensível, num bicho, que não é dotado de inteligência, não significa nada. Mas as aparências sensíveis, quando bem estudadas, todas elas dão alguma analogia com o mundo do espírito, com algo da inteligência humana, com algum estado de espírito do homem, com algo que diz respeito à alma do homem. Enquanto tal esta analogia, indiretamente, conduz a alma até Deus.

Para fazer minhas orações, tomei uma estrada nos arredores de São Paulo e tive que atravessar o cinturão de fábricas. Infelizmente havia uma fábrica funcionando, com uma chaminezona e uma fumaça grossa que saía de dentro. Essa fumaça se expandia muito densa e carregava uma determinada parte do horizonte. O dia estava muito sem vento, a atmosfera muito parada, de maneira que a fumaça ficava ali e não se movia e carregava aquela zona. E constituía uma espécie de atmosfera carregada parada, feia, suja, pairando sobre umas casinholas de “banlieue”, de arredores, engraçadinhas, com uma hortazinha... Alguém diria: a vidinha de todos os dias, inocente, de dois ou três agricultores, já longe da grande cidade, mas sob os quais paira a ameaça!

Bom, são certas situações da vida humana. Podiam significar perfeitamente uma ameaça do mal, de um infortúnio ruim, desencadeado pelo demônio, pelas circunstâncias más do pecado sobre pessoas que vão ser provadas para a maior glória de Deus... Aquele contraste entre a fumaça, as casinholas e a hortazinha bonitinha, arranjadinha ali, etc.

Neste sentido essa fumaça simbolizava algo do demônio, mas simbolizava algo do pecado que, à contragolpe, faz lembrar a cólera de Deus, da punição, na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, na luta dos anjos no Céu, etc., etc., de um modo sensível. Não é apenas uma evocação intelectiva que caberia perfeitamente e que eu respeito muito, mas é uma evocação sensível.

Neste sentido, a sociedade temporal bem ordenada é um símbolo de Deus e da ordem posta por Deus no Universo. E, como tal, ela concorre para tornar as almas mais receptivas à virtude. Ela presta, portanto, um serviço que é útil à Igreja e à salvação das almas. Serviço que, enquanto tal, eu poderia de algum modo chamar de apostólico, neste sentido que ela faz o bem, promove o bem ajudando a Igreja.

Como, a uma coisa temporal como é a sociedade, atribuir uma função dessas? Nós temos exemplos na Revelação que escachoam. Por exemplo, a família é uma sociedade temporal que já havia antes mesmo de ser instituído o sacramento do matrimônio por Nosso Senhor Jesus Cristo. Quantas e quantas vezes Deus, no Antigo e no Novo Testamento, para fazer entender aos homens o Seu afeto, se intitula Pai?

Mais ainda: não precisa ser a sociedade temporal. Esse valor simbólico das coisas criadas por Deus vai tão alto que até mesmo coisas animais simbolizam a Deus. Nosso Senhor, falando de Si mesmo, quando chorou sobre Jerusalém, disse: “Quantas vezes Eu quis te reunir junto a mim como a galinha reúne os pintainhos”, indicando claramente que a galinha com os seus pintainhos é um símbolo do amor de Deus para com os homens. Se uma galinha que reúne em torno de si os seus pintainhos simboliza Deus, um rei,  que na ordem da virtude reúne em torno de si os seus súditos não simboliza Deus? Eu teria muita dificuldade em não admitir isso. Só se me provassem que a Igreja ensina que isso não é assim.

Se uma galinha simboliza Nosso Senhor Jesus Cristo, Carlos Magno reunindo aqueles povos todos, por que não? Quer dizer, é um símbolo.

Aliás, a própria Escritura também elogia isso. “Céus e terras, bendizei ao Senhor”, e vendo todo o elenco de criaturas que devem glorificar a Deus. Glorificar a Deus é manifestar sua condição de imagem ou de semelhança de Deus, é o efeito que volta à sua Causa, é aquele que é criado que obedece ao seu Criador e faz o que o Criador ordena. Essa é a idéia da glória de Deus.

Se o céu com suas estrelas, seus astros, etc., dá uma tal glória a Deus, ou então as águas, isso, aquilo, aquilo outro, quanto mais deve dar glória a Deus o conjunto dos homens. E são símbolo de Deus como o céu é símbolo de Deus. E eu olho para o céu e o vejo, e um pensamento que eu gosto de ter é esse: como seria mais belo, para dar glória a Deus, um Sacro Império Romano Alemão que envolvesse todas as nações da Cristandade!

Agora, nós podemos nos lembrar, para este efeito, de uma sociedade que se constituísse segundo Santo Tomás de Aquino lembra que é a fórmula ideal, forma de governo ideal: a forma de governo monárquica, mas temperada - temperada não quer dizer, na linguagem dele o nosso temperado, quer dizer, alguma coisa da qual se tirou o sabor, ou da qual se puseram sabores alienígenas, não - enriquecida de sabor por um traço aristocrático e um traço democrático. Bem, ele considera isto a forma de governo perfeita. Ele pressagia assim os ensinamentos de Leão XIII mais tarde. Mas, para me reportar a Santo Tomás, é o que ele ensina.

Nesta forma de governo assim, quem não vê, por exemplo, que esta ordem – que é uma ordem natural, que faz com que as relações humanas se estabeleçam naturalmente como devem ser – que nesta ordem as almas são capazes, recebem um incentivo para compreender e amar melhor a organização da própria Igreja, monárquica na pessoa suprema do Sumo Pontífice? Depois, aristocrática no que Ela tem de elementos de instituição divina e de instituição eclesiástica, constituindo um todo harmônico: Sacro Colégio dos Cardeais, Episcopados, os Clérigos, etc., e depois, abaixo, a plebe fiel que são os simples católicos, que somos nós.

Quer dizer, não forma bem aquela sociedade de desiguais, uns instituídos para ensinarem, para governarem, para santificarem, que é a hierarquia? Depois, outros feitos para serem ensinados, serem governados, serem santificados, que são os fiéis? É bem o que ensina São Pio X.

Mas esta organização perfeita da sociedade que tem a Igreja, a organização perfeita da sociedade temporal prepararia para compreender e para amar. Mas, notem bem: como a Igreja é obra de Nosso Senhor Jesus Cristo, e através da obra se compreende melhor o espírito do artífice, amando a forma de governo que Deus deu à Igreja, para a Igreja, ama-se e compreende-se melhor o próprio espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os Srs. tem bem presente aí como, a partir de uma obra temporal bem constituída, se desdobra uma ação, uma concatenação de efeitos preciosíssima para que a Igreja atraia para si as almas e para que Ela desenvolva sua missão sobre as almas. Isso é um exemplo que eu dou do que eu chamava a finalidade ministerial do Estado, nas mãos da Igreja. Minister no sentido de que é servidor. Não é no sentido contemporâneo de Ministro de Estado. É servidor, é aquele que serve. O Estado tem um serviço a prestar à Igreja, a ordem temporal tem um serviço a prestar à Igreja.

 

* * *

 

Os Srs. encontram um reflexo disso na doutrina de Revolução e Contra-Revolução sobre a Revolução tendencial e a Revolução sofística. A Revolução tendencial e a Revolução sofística podem perfeitamente nascer da sociedade temporal, a propósito de problemas da sociedade temporal, e constituírem erros que acabam empestando a Igreja. Por exemplo, as piores tendências do progressismo moderno são uma emanação direta, pelo menos, do espírito da Revolução Francesa. Pelo menos! Ora, o que foi a Revolução Francesa? De si ela não é mencionada por tratadistas, a não ser como um turbilhão que soprava na ordem do Estado e que, em certo momento, deitou uns ventos para dentro da Igreja. Mas os ventos, sob que forma? Perturbações no Pontificado de Pio VI e Pio VII. Acabou a Revolução, acabaram as perturbações.

Mas Revolução Francesa nasceu de circunstâncias tendenciais, ela nasceu de circunstâncias sofísticas que formaram uma concepção de vida temporal entrando nas fileiras do Clero.

[Esta explicitação e dedicação constitui] um serviço à Igreja, porque esta reta ordenação tem um feitio formador dos espíritos e que torna os espíritos acessíveis, propensos, amigos da Igreja, que caminham para Ela ao menor aceno dEla; que estão preparados para perceber a beleza, o verum-bonum-pulchrum, o divinum dEla. No primeiro olhar já correm para Ela!

É, portanto, um serviço eminente, uma verdadeira obra de apostolado, se eu tenho como intenção, se eu faço isso por amor de Deus e por amor à Igreja. Mas é uma obra de apostolado de leigos. Por que? Porque não é normal que os reis dos povos sejam sacerdotes. Nosso Senhor fez distinção entre a Igreja e o Estado. Um sacerdote pode, per accidens, ser rei, como no caso de D. Henrique, rei de Portugal. Mas não é a ordem normal das coisas. Nós não podemos imaginar todas as terras de todos os países do mundo governadas por Cardeais, por bispos. Isso feito por princípio, seria baralhar a distinção entre a Igreja e o Estado que Nosso Senhor Jesus Cristo estabeleceu.

Então, a tarefa de conduzir a sociedade temporal, embora sob a inspiração da Igreja, é do Estado, é da sociedade temporal. E para fazer esta eminente obra de apostolado, o homem deve ser leigo com a intenção de fazer essa obra.

Até bons tratadistas de direito natural, do século XIX  se esqueciam que a sociedade temporal tem realmente como cúpula o Estado, mas que ela não é só Estado. A ordem temporal é uma sociedade da qual o Estado é o ordenamento supremo. Mas ela tem algo - Pio XII tem ensinamentos muito bons a esse respeito, por exemplo o princípio de subsidiariedade - ela é algo que em alguma coisa se distingue do Estado.

Então, todos os corpos constituídos dentro de um Estado: diretores de colégio, reitores de faculdades, pais de família, presidentes de Academias de Letras, homens que dirigem sindicatos, que dirigem todas as atividades comuns, temporais, constituem a sociedade. E, se cada um deles organizar seu ramo, os seus subordinados na linha da boa organização natural e conforme a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, se ele fizer isto, ele presta também este serviço simbólico a Deus, porque, cada sociedade assim - vamos dizer, uma repartição pública, um escritório de datilografia, ou de fotografia, ou de xerografia, ou do que quiserem - bem organizada, exprimindo a ordem natural, segundo a verdadeira moral, que é a moral católica, a moral cristã, ele tem uma perfeição e uma excelência onde a rutilação da alma humana se apresenta inteira. E, pela alma humana, a gente sobe até Deus.

Um fazendeiro - o exemplo é banal de tão característico - com seus colonos e com sua família, com administrador, os funcionários administrativos da fazenda. Ele pode formar uma como que aldeiazinha que seja tão, tão, tão católica que seja uma miniatura do Reino de Maria. É uma minúscula sociedadezinha temporal, encaixada na sociedade muito maior, é uma célula viva da sociedade temporal. 

São Paulo disse isso: quem tem alguma virtude, alguma qualidade que não tenha relação com o amor de Deus, não tem amor de Deus, essa qualidade não vale nada. Então, é diretamente para a “qualité maîtresse”, fundamental que vem orientada essa ação simbólica. Eu apresento, portanto, a ação do apostolado na ordem temporal, num ângulo que não é muito tratado - ao menos eu não conheço - e que é, ao seu modo, capital.

Eu me lembro daquele trecho famoso de Santo Agostinho: imaginemos "um exército constituído de soldados como os forma a doutrina de Jesus Cristo, governadores, maridos, esposos, pais, filhos, mestres, servos, reis, juizes, contribuintes, cobradores de impostos como os quer a doutrina cristã! E ousem (os pagãos) ainda dizer que essa doutrina é oposta aos interesses do Estado! Pelo contrário, cumpre-lhes reconhecer sem hesitação que ela é uma grande salvaguarda para o Estado, quando fielmente observada" (Epíst. CXXXVIII al. 5 ad Marcellinum, cap. II, n. 15).

Não há quem leia aquele trecho e não tenha uma pulsação de coração mais ardente. É impossível! Por que? Porque ele evoca, com aquele talento agostiniano no qual há, evidentemente, cintilações da graça também, não é só um grande gênio - aquilo não é talento, é gênio. Mas no meio do gênio, cintilações da graça - e que cintilações! - há qualquer coisa que coloca a gente diante de uma figura de uma sociedade idealmente católica, e a pessoa se extasia. Por que? Porque é um símbolo de Deus.

Bem, eu sei que há na sociedade temporal outros apostolados a fazer. Há, a propósito dela outras reflexões que também conduzem a Deus e há outros apostolados a fazer. Eu sei bem. Eu não posso tratar de tudo nessa reunião. Mas o essencial é dizer isso: que essa sociedade assim posta é uma sociedade que vista por seu ângulo, é toda ativada por leigos, colocados - homens, portanto, na sua imensíssima maioria casados, que é o estado normal, natural, habitual do leigo. Portanto, casados, com filhos, etc., e que, se eles todos fossem devidamente católicos, com intuito apostólico acionassem essa sociedade temporal, cientes de que não era para ganhar dinheiro para seus filhos, para sua mulher, para eles terem um status digno, de acordo com sua educação, com a tradição de seu nome, sei lá do que – também são fins secundários legítimos, necessários até - mas é principalmente para que o amor de Deus se espalhe pela terra. Esta seria uma sociedade em status habitualmente apostólico, na sua condição temporal.

Por exemplo, outro serviço que o leigo presta: uma igreja matriz considerada na sua paróquia - para usar uma imagem banal de tão verdadeira - pode comparar-se a um coração com o corpo. A pulsação e toda a irrigação vem da matriz. A pessoa dirá: “ O Sr. concebe um sentido tão carregado ao apostolado leigo que não se entende bem qual é o papel da matriz. O que é o papel do Padre então aí?” 

Eu tenho vontade de dar risada. Eu tenho vontade de dizer: “Ele faz papel do Padre...!” Ele batiza, ele ensina, ele forma, ele dá os princípios, ele confessa, ele comunga, ele organiza, ou pode organizar - se quiser - associações que ajudem o leigo a fazer isto, ele é a alma disso. Se tirarem o padre, os leigos morrem por inanição! É a mesma coisa do que alguém que descrevesse longamente o corpo humano a um cardiologista cioso das preeminências do coração e que dissesse: “E o que faz o coração se tal é o papel - não sei - dos braços?!” Eu posso dizer que um homem sem braços morre de fome. Se ninguém o ajuda, ele acaba morrendo de fome. Ele só come as frutas que lhe caem dentro da boca. Então dirá um cardiologista ciumento: “E o que faz o coração?” O coração é a vida do homem! Tira o coração e o homem está morto!

É tão grandiosa a descrição de uma sociedade temporal assim que uma pessoa poderia dizer: “Eu não vejo o papel do clero.” Eu diria: é mais ou menos como a gente ver uma linda hera  que cubra toda a casa, a gente não vê a raiz. Corte a raiz. O que fica daquela hera?

O leigo que não seja das almas mais fervorosas, que freqüentam associações religiosas, ele vai à Igreja receber os Sacramentos, vai no domingo, ouve a prática do Evangelho. Vamos dizer que ele comungue diariamente, que ele reze seu Rosário, etc., etc., 80% de sua vida, pelo menos, se passa dentro da sociedade temporal. É uma questão de marcar no relógio, a vida de qualquer um deles é isso. 

Bem, e as dificuldades que ele vai encontrar na batalha para preservar o que o padre lhe deu, para utilizar o que o padre lhe deu, para tornar fecundo o que o padre lhe deu, são dificuldades nascidas na sociedade temporal. O perigo para ele está na sociedade temporal. Nessa sociedade temporal aonde o padre, por desígnio da Igreja, não deve viver muito misturado. É do espírito da Igreja que os padres tenham contato com a sociedade temporal, mas que eles vivam plutôt entre eles. O padre mundano, tipo Cardeal às vésperas da Revolução Francesa que ia assistir baile e dançava minueto, não é uma coisa aprovada pela Igreja, é uma coisa censurada. Uma coisa é a vida civil, até com seus aspectos sociais, etc., outra coisa é a vida eclesiástica.

Quem vai ajudar as almas que periclitam na hora do perigo? Estará a serviço do pároco, porque vai ajudar o homem a fazer o que o pároco mandou; a serviço dos Sacramentos, porque vai ajudar o homem a ser fiel aos Sacramentos que ele recebeu. Na hora do perigo é quem está ali no perigo. Quem é? É o amigo leigo dele, é o parente leigo dele, que está ali presente, que luta contra as mesmas dificuldades e que o ajuda.

 

* * *

 

Se esse é o teor das relações entre as duas sociedades, o que vem a ser a TFP?

Tomando em consideração o apostolado dos leigos, na ordem natural das coisas, e, a fortiori, numa ordem anormal das coisas como é a de hoje — quer dizer, mesmo no Reino de Maria, um apostolado de leigos no mundo leigo seria indispensável — mas ainda mais na sociedade profundamente corrompida de hoje em dia ele é necessário. Tomado neste sentido, do homem que entra na sociedade dos leigos para ajudar os leigos, começaram, já no tempo de São Pio X, a aparecer congregações religiosas constituídas de leigos, obedecendo esta idéia: que eles não sendo clérigos poderiam acumular as duas circunstâncias. Privadamente, levar a vida de um religioso, mas pelas suas ocupações, estarem misturados a fundo na vida leiga. E ali servirem de estímulo aos leigos, não religiosos, que como chefes de família, nas várias ocasiões, devem cumprir o seu apostolado.

Imaginem o departamento jurídico de uma grande empresa. Nele trabalham 50 advogados, dos quais um é membro de uma congregação religiosa de leigos. Ele não é frade. Sendo leigo, estudou direito, conhece, advoga. Estando ali dentro, pode observar quais são os bons, e desenvolver um apostolado especialmente ardoroso junto aos bons, para que façam desse departamento jurídico o que ele deve ser. Ele é uma longa manus da Hierarquia ali dentro, é uma extensão dos desígnios da Igreja ali dentro.

É a necessidade de uma presilha, de um agrafe entre uma coisa e outra, para que melhor a influência da sociedade espiritual pudesse perpetuar-se, prolongar-se dentro de sociedade temporal.

Daí o Opus Dei, que tem essa característica. Exatamente muitos leigos - tem também sacerdotes, mas os sacerdotes são mais bem capelães desses leigos do que a matéria prima da Ordem. Como, aliás, nas Ordens de Cavalaria, os capelães eram integrantes da Ordem. Na Opus Dei o leigo faz de tudo.

Como isso é diferente, por exemplo, da concepção que havia no tempo dos meus avós a respeito da relação entre clero e laicato! Mas, naquele tempo a sociedade tinha sido - ao menos no Brasil - muito menos devastada pela Revolução. Ela era, na sua substância, carregada de tradições católicas recebidas de Portugal. Ela era, ela mesma, um instrumento de salvação. Não era necessário, ou ao menos não era indispensável ali, essa modalidade.

Na sociedade de hoje essa modalidade se torna indispensável.

Eu sei que alguém poderia me dizer: “Indispensável, não. Indispensável é só aquilo que Jesus Cristo instituiu.” Não vamos brincar com as palavras. A palavra “indispensável” tem suas aplicações. Por exemplo, alguém poderia me dizer: “Os Apóstolos conquistaram o mundo sem essas organizacõezinhas em que você está pensando.”

Eu respondo: os Apóstolos também conquistaram o mundo sem universidades católicas. São Paulo não era reitor de universidade católica, nem nada. Nós não vamos dizer, por causa disso, que nas condições de hoje, entendida a palavra “indispensável” num certo sentido da palavra, não seja indispensável haver uma Universidade católica, diametralmente diferente das que temos, é uma coisa indispensável. Quer dizer, não vamos fazer, não vamos brincar com as palavras. Nós estamos fazendo um esforço sério. Isso é sofisma farisaico, é chicana farisaica. Não quero tomar o tempo dos Srs. com coisas dessas.

Agora, se há uma tendência a estabelecer agrafes dessas, que espécie de agrafe é a TFP e o que a TFP pretende ser?

Eu já disse aos Srs. que nós conhecemos uma política: é a política da verdade. É verdade que a política da verdade, a qual nós gostaremos que esteja sempre unida, pelo favor de Nossa Senhora, a inocência da pomba não esteja separada a astúcia da serpente! Saudamos como uma virtude evangélica. Mas, a verdade é essa: qual é o papel próprio, específico da TFP?

Está no feitio de nossos espíritos, está na inclinação de nossas almas, está na curiosidade de nossas inteligências, está em todos os movimentos dentro de nós a seguinte tendência, a seguinte propensão: a sociedade temporal, tomada como um todo, ela resulta do equilíbrio de duas influências: uma é a influência dos homens, de cada homem sobre o todo. A sociedade temporal é feita de homens que não são robots. Cada homem é ele mesmo um pequeno mundo, um pequeno universo. E tem uma certa forma de autonomia, de privacy, de privatum próprio que é inesgotável e insondável.

Bem, é da projeção desses mil fachos de luzes individuais que se forma essa luz conjunta que nós diríamos que é a mentalidade da sociedade temporal.

De outro lado é verdade que o homem não pode ser comparado com um facho de luz, a não ser com muito cuidado. Porque se é verdade que o olho humano às vezes brilha, tanto que ele pode ser comparado com um facho de luz, um facho de luz não vê e o olho humano, quanto mais brilha, às vezes é porque mais ele está vendo.

Quer dizer, existe no homem algo que não é apenas o por onde ele influencia, mas por onde ele vê as coisas e as coisas influenciam a ele. E essa luz somada, da projeção dos mil fachos individuais, os mil fachos individuais a vêem e ela repercute sobre eles. E há assim um comercium.

Essa circulação faz com que a sociedade temporal, tomada no seu conjunto, impressione profundamente o homem. E que um dos melhores meios de atuar sobre o homem para que ele ame a Deus e seja propenso, proclive à Igreja, um dos melhores meios é de agir sobre a opinião pública, ou seja, o conjunto desses fachos de luz procedentes de baixo, para que projetem sobre esses fachos de luz uma imagem orientada.

Se desejarem, posso me explicar melhor. A gente, às vezes, querendo encurtar, às vezes alonga. Eu estou querendo encurtar e, por isso estou usando de metáforas uma em cima da outra. Mas se quiserem posso me alongar, me estender mais um pontinho.

Eu imagino isto que eu vi, que eu senti e percebi, muitos dos Srs. terão talvez sentido e percebido (alguns terão sentido e não terão percebido; ninguém deixou de sentir): a gente vai andando por uma grande cidade moderna e, de repente, encontra assim, num ângulo, onde há um pouco de visão, um prédio muito alto. Em cima, uma coisa que acende e apaga. E diz, por exemplo, “dentifrício tal!” Numa luz azul néon, depois uma luz vermelha néon, depois uma luz verde, depois roda, uma roda com azul, vermelho e verde, e sai de dentro uma outra coisa que diz: dentifrício tal.

Quando eu vejo isso eu fico com minha alma partida. Por que? Porque por uma coisa tão alto naquela evidência é conferir-lhe uma certa glória. Conferir essa glória a um dentifrício é colocar os homens de quatro como se fossem animais! E depois é isso mesmo. Porque não é o que está dito ali, para quem analisa com um mínimo de subtileza - mas nem é subtileza - para quem não tem uma carapaça diante dos olhos, o que percebe é outra coisa. O que está dito ali é o seguinte: dinheiro, dinheiro, dinheiro. Olha a forma de glória que obtêm as coisas que o dinheiro quer tocar para a frente. É isso.

O que está dito ali de outro modo é: “saúde, saúde, saúde. Gaste dinheiro com sua saúde, porque sua saúde é um bem supremo”. Bios e Mamon! Os dois ídolos do homem moderno!

A gente vê passar ao pé disso - eu vi isto assim, eu vi assim na Rua XV de Novembro, quando eu tinha escritório lá, quando o centro velho bom era lá, na Rua XV de Novembro, quando eu saía, era habitualmente cerca das 20:00 horas, eu descia de automóvel e percebia, eu cheguei uma vez ficar na janela para ver melhor a cena: a rua muito - os paulistas sabem disso - muito movimentada por automóveis, à essa hora todo mundo vai jantar, etc., rua muito movimentada. Hoje parece que não tem automóveis, tem calçadão lá. Os automóveis não descem por lá. Naquele tempo os automóveis passavam por lá. Eu via uma velhinha, com cabelo grisalho pouco abundante, que formava assim uma pobre trancinha aqui atrás da cabeça. Ela, à distância, me dava a impressão de bem ordenadinha. Pobrezinha que atravessava a rua, andando numa cadeira - coitada! - que não era uma cadeira de rodas, mas era uma cadeirazinha dessas de palha que ela ia movendo uma perna, outra, outra, ela atravessava a rua e sumia numa rua pequena que tinha ali perto.

Diante daquela pobreza e daquela indigência eu fiquei com a impressão de que era uma pessoa só, que não tinha mais filhos, não tinha descendentes, não tinha quem cuidasse dela. E que essa pessoa estava naquele estado, ia com certeza se arrastar até um lugar onde tinha para ela alguma comidinha. E que depois ela voltava e encontrava, talvez, no elevador de um e de outro prédio, uma alma piedosa que parava o elevador no lugar para ela descer - quando muito!

Bem, quanto poderia caber de resignação...!

Passava ali perto automóveis reluzentes, passava gente de um lado para outro, de todas as classes sociais, dos mais ricos aos mais pobres, ninguém ajudou a velha. Uma vez eu vi uma reportagem sobre essa velha, no jornal. A reportagem não indicava o endereço da velha para ser ajudada. Dava até fotografia dela atravessando a rua. Agora, coisa dura: é legítimo que da alma dos Srs. brade uma exclamação: “E o Sr., por que não ajudou? Por que o Sr. não desceu de elevador e não foi ajudar a essa velha?”

Precisamente quando dei conta disso, eu estava num período de campanha contra a Reforma Agrária, que o Brasil podia ficar comunista ou não ficar, conforme o êxito dessa campanha. E eu estava dando de tal maneira minhas forças para que nem para uma outra senhora anciã que eu tinha em casa [Nota: refere-se à Sra. sua mãe, Da.  Lucilia] eu não tinha tempo de fazer outra coisa do que um agradinho distraído. Para o bem comum, aí sim, tive que sacrificar o bem individual dela.

Quando a campanha passou, eu a procurei. Eu julguei que ela tivesse morrido porque não passou mais. Eu não sabia donde ela vinha, nem para onde ela ia. Eu soube que ela não tinha morrido porque me caiu, per accidens, um jornal que não dizia o endereço dela. Se eu soubesse, eu teria ido procurá-la.   

Mas então, era o caso ali, eu tinha diante de mim isto: no ângulo, uma casa de comércio - não era muito alta - oferecendo chocolates: “chocolate tal – chocolate tal – chocolate tal”... dinheiro, dinheiro, dinheiro. Embaixo aquela velhinha se arrastando daquele jeito!

Não há uma inversão de valores? Não há uma coisa que uiva e que não deveria ser assim? Evidentemente que é isso, entra pelos olhos que é isso. Eu não tenho nada que dizer a esse respeito. Mas é o que? É a má ordenação das coisas temporais que, tomada como natural, embrutece as pessoas e eles não se incomodam mais com Deus. É isso.

Mas é o que? É o papel embrutecedor - aqui estou focalizando especialmente - do anúncio luminoso em contraste com outros aspectos da vida: o gozo, aquela coisa assim. E se não é o gozo é o lucro, é o comércio, a fama.

* * *

O que deve fazer a TFP?

Ela deve conhecer, ela deve formar a subtileza necessária para perceber essas coisas e montar o conjunto das ações nefastas que se exercem sobre uma sociedade [Nota: vide os artigos escritos pelo prof. Plinio e que se encontram na seção Ambientes, Costumes e Civilizações]. É a Revolução tendencial à qual ela deve opor a Contra-Revolução tendencial. Ela deve favorecer o quanto ela possa, e promover o quanto ela possa a Contra-Revolução sofística. Ela, se puder, deve colocar homens em cargos públicos, em situações públicas onde eles possam colaborar para a direção do Estado, numa determinada orientação que sirva a esses ideais. Esse é o trabalho da TFP, esse é o objetivo da TFP.

Mas com um ponto especial: é que tudo isso não é dirigido difusamente contra toda espécie de erro e de mal. Mas especificamente é dirigido contra uma forma, uma quintessência de mal e de erro que é a Revolução. A qual, eu estou certo disso, continuará até no Reino de Maria. Quer dizer, células revolucionárias continuarão a existir e piores ainda do que as de hoje. Parece impossível, mas será. Porque a rejeição das graças do Reino de Maria fará homens sempre piores do que se é hoje. 

* * * 

Agora vai a última pergunta: o que fazem aí a Igreja e o Estado? É uma pergunta diante da qual eu não fujo. Essa pergunta pode causar um certo mal estar. Mas nada é pior para o bem estar do que as perguntas não respondidas. É melhor a gente responder as perguntas. É a política da verdade.

A TFP pode aceitar, eventualmente, de colocar numa ou noutra situação um homem, numa ou noutra situação temporal eminente, um homem a ela pertencente.

Não está na índole da TFP ocupar a generalidade ou a maior parte dos cargos, nem na esfera temporal, nem na esfera espiritual. Porque se ela precisa de lei, decreto e regulamento para formar opinião, ela perdeu a razão de ser. Lei, decreto, regulamento é de quem tem autoridade.

Nós, o que podemos fazer é aconselhar os que tem autoridade, se eles quiserem ouvir o nosso conselho. Nós não temos o direito de impor que nos ouçam, nem na ordem espiritual, nem na ordem temporal.

Mas, consultados, devemos, de bom grado, oferecer os nossos conselhos resultantes de uma atenção contínua, de um desejo contínuo de servir, de uma fidelidade contínua. Se não quiserem aceitar, a responsabilidade perante Deus é deles. Nós não cuidamos disso.

Nós temos nosso próprio meio de fazer alguma coisa que só pode ser grata à toda autoridade legítima: é ordenar as almas por estas formas e deste meio, à praticarem a lei de Deus e a lei da Igreja, amarem a Deus sobre todas as coisas. Está acabado.

É o que eu teria a dizer, numa reunião que se estendeu bastante. Mas, enfim, o tema não se poderia desenvolver com menos tempo. Há uns restos de coisas por aqui que eu já coloquei em outras prateleiras que já estão tratadas.

Eu compreendo muito bem, antes de tudo, que os sacerdotes aqui presentes – “mestres em Israel” – me corrigissem em algo que não estivesse certo, ou me dessem alguma precisão em algo que esteja confuso. Compreendo bem que meus amigos, meus irmãos - a outros eu quase diria meus filhos - fizessem objeções, fizessem ponderações, pedissem explicações, etc., etc. Eu não julgo ter dito aos Srs. nada de novo, mas a ordenação acrescenta algo e é extremamente útil.

Com isto estaria dito o que eu teria a lhes dizer, se não houver alguma pergunta. Se houver, eu estou à disposição.


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